Costa não é um autocrata (repita cinco vezes)

13-10-2018
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Não é a primeira vez que António Costa o faz. Quanto mais encurralado mais estimula a crispação e a troca de insultos acima do aceitável no debate parlamentar. Já devia estar à espera da pergunta de Fernando Negrão sobre as cinco vezes em que - inebriado na sua húbris -, jurou no Parlamento que o Infarmed ia para o Porto. Toda a gente estava à espera da questão. Devia ter previsto que o recuo do Governo fosse descrito como a palavra dada que não foi honrada: “Quem não tem palavra não tem credibilidade”, acusou o líder parlamentar do PSD, num tom que é normal na retórica do Parlamento. Mas António Costa não resistiu a dar um golpe abaixo da cintura: “Vou responder através de uma mensagem pessoal, porque não aceito lições suas sobre a palavra”, respondeu o primeiro-ministro. “Aguardo a sua carta, que divulgarei publicamente”, contrapôs Negrão. Aguardamos todos, com ansiedade, a divulgação pública da alegada mentira. Não é bonito, mas a curiosidade nem sempre se manifesta pelas melhores razões.

António Pedro Ferreira

Para já, só conhecemos o não cumprimento da promessa de Costa. O Infarmed já não vai para o Porto (ler esta frase cinco vezes). A decisão dependerá agora de um parecer da comissão técnica independente para a descentralização que funcionará na Assembleia da República, presidida por João Cravinho. É uma forma de o Governo alijar responsabilidades.

Apesar de se irritar facilmente com Assunção Cristas, foi perante a líder do CDS que Costa encontrou o tom certo para justificar o recuo na questão do Infarmed. Talvez aqui, sim, tenha pegado no guião que levara preparado para o debate. As frases são ótimas e de antologia:

“Eu não revogo o que disse, eu suspendo o que disse” - esta é mesmo boa, porque mostra humildade e um homem que não mente, mas volta atrás porque tem dúvidas e até se engana. É humano, uma espécie onde os políticos não abundam.

“Não se governa por caprichos” - ainda é melhor, porque parece dita pela oposição, uma vez que a decisão pareceu desde o início um capricho para compensar o Porto por ter perdido a Agência Europeia do Medicamento, porque não foi preparada, nem estudada, nem sequer a administração consultada.

Miguel A. Lopes / Lusa

“Se isto fosse uma autocracia do António Costa, o Infarmed já estava no Porto.” Esta é de altíssima qualidade, para comprovar a humildade democrática de um líder que tem a certeza de ter razão, mas admite as limitações do seu poder. Gostávamos, assim, de fazer o seguinte exercício: se isto fosse uma autocracia do António Costa, que decisões tinham sido tomadas nestes últimos três anos? Era só para percebermos o que estamos a perder, quais são os constrangimentos que lhe coloca a “geringonça”, as leis e etc., porque o Porto sabe que a democracia lhe fez perder o Infarmed.

No primeiro debate da rentrée, Costa apareceu como um político curado de um Síndrome de Húbris que afeta os políticos deslumbrados com o poder. “Quanto mais se explica mais se enterra”, acusou Fernando Negrão. Mas se Costa não convenceu - era um exercício impossível -, com habilidade conseguiu o recuo possível.

Com tantos temas polémicos na agenda depois de uns meses de jejum parlamentar, sobraram outros temas. No caso de Tancos, Costa arrumou um assunto e pôs outro estranhamente na mesa: o primeiro-ministro respondeu a Catarina Martins, sem fechar a porta, que agora não era o momento de se pensar na extinção da Polícia Judiciária Militar; mas numa resposta a Cristas sobre a demissão do ministro da Defesa, disse que mantinha tanto a confiança em Azeredo Lopes como na ministra da Justiça. “Como é público e notório, não só mantenho o meu ministro [da Defesa], como mantenho a minha ministra da Justiça. Mantenho todos os membros do Governo.” Não se percebe porquê a inclusão de Francisca Van Dunem no raciocínio, uma vez que ninguém lhe perguntou isso.

marcos borga

O debate aqueceu, sobretudo com a direita, também por causa das obras na ala de oncologia pediátrica do Hospital São João, no Porto. Embora Negrão tivesse colocado a questão com populismo à mistura, a resposta do primeiro-ministro não podia ser outra: não é possível contornar a lei e a contratação pública. De certa forma, a pergunta comportava alguma hipocrisia: se as regras tivessem sido contornadas, o Governo seria criticado por não estar a cumprir a lei para fazer ajustes diretos. Costa resolveu o repto do PSD com outro desafio: fazer aprovar uma lei que libertasse o São João dos constrangimentos legais. Negrão prometeu uma recomendação sobre o assunto. Será um tema a seguir.

Nota: ninguém falou da nomeação da nova PGR nem da não recondução de Joana Marques Vidal. Provavelmente, por cuidado: eventuais críticas ou elogios cairiam em cima da sucessora como uma forma de a condicionar. Afinal ainda temos políticos prudentes: a politização deste tema já fez estragos suficientes. Havia, porém, formas de abordar o assunto. Por exemplo, propor uma revisão da Constituição para estabelecer o mandato único. Era uma obrigação do PS falar disso ao PSD.

À esquerda, a “geringonça” manteve as tréguas, afinal estamos a poucas semanas da apresentação do Orçamento do Estado e convém não estragar as negociações. O Bloco voltou à lei de bases do SNS. E o PCP - pela voz de João Oliveira, porque Jerónimo de Sousa não esteve - apostou nos aumentos salariais da função pública. Costa voltou a repetir que preferia a contratação de mais funcionários públicos. E falou para João Oliveira, líder da bancada comunista, num tom que prenuncia, quem sabe, uma ambiente menos toldado no Orçamento: “Tenha confiança em si, homem! É capaz de fazer mais! Somos capazes de fazer mais” (vamos ler esta frase cinco vezes, porque com António Costa nunca se sabe, e o PCP pode até ser mesmo capaz de mais).

Não é a primeira vez que António Costa o faz. Quanto mais encurralado mais estimula a crispação e a troca de insultos acima do aceitável no debate parlamentar. Já devia estar à espera da pergunta de Fernando Negrão sobre as cinco vezes em que - inebriado na sua húbris -, jurou no Parlamento que o Infarmed ia para o Porto. Toda a gente estava à espera da questão. Devia ter previsto que o recuo do Governo fosse descrito como a palavra dada que não foi honrada: “Quem não tem palavra não tem credibilidade”, acusou o líder parlamentar do PSD, num tom que é normal na retórica do Parlamento. Mas António Costa não resistiu a dar um golpe abaixo da cintura: “Vou responder através de uma mensagem pessoal, porque não aceito lições suas sobre a palavra”, respondeu o primeiro-ministro. “Aguardo a sua carta, que divulgarei publicamente”, contrapôs Negrão. Aguardamos todos, com ansiedade, a divulgação pública da alegada mentira. Não é bonito, mas a curiosidade nem sempre se manifesta pelas melhores razões.

António Pedro Ferreira

Para já, só conhecemos o não cumprimento da promessa de Costa. O Infarmed já não vai para o Porto (ler esta frase cinco vezes). A decisão dependerá agora de um parecer da comissão técnica independente para a descentralização que funcionará na Assembleia da República, presidida por João Cravinho. É uma forma de o Governo alijar responsabilidades.

Apesar de se irritar facilmente com Assunção Cristas, foi perante a líder do CDS que Costa encontrou o tom certo para justificar o recuo na questão do Infarmed. Talvez aqui, sim, tenha pegado no guião que levara preparado para o debate. As frases são ótimas e de antologia:

“Eu não revogo o que disse, eu suspendo o que disse” - esta é mesmo boa, porque mostra humildade e um homem que não mente, mas volta atrás porque tem dúvidas e até se engana. É humano, uma espécie onde os políticos não abundam.

“Não se governa por caprichos” - ainda é melhor, porque parece dita pela oposição, uma vez que a decisão pareceu desde o início um capricho para compensar o Porto por ter perdido a Agência Europeia do Medicamento, porque não foi preparada, nem estudada, nem sequer a administração consultada.

Miguel A. Lopes / Lusa

“Se isto fosse uma autocracia do António Costa, o Infarmed já estava no Porto.” Esta é de altíssima qualidade, para comprovar a humildade democrática de um líder que tem a certeza de ter razão, mas admite as limitações do seu poder. Gostávamos, assim, de fazer o seguinte exercício: se isto fosse uma autocracia do António Costa, que decisões tinham sido tomadas nestes últimos três anos? Era só para percebermos o que estamos a perder, quais são os constrangimentos que lhe coloca a “geringonça”, as leis e etc., porque o Porto sabe que a democracia lhe fez perder o Infarmed.

No primeiro debate da rentrée, Costa apareceu como um político curado de um Síndrome de Húbris que afeta os políticos deslumbrados com o poder. “Quanto mais se explica mais se enterra”, acusou Fernando Negrão. Mas se Costa não convenceu - era um exercício impossível -, com habilidade conseguiu o recuo possível.

Com tantos temas polémicos na agenda depois de uns meses de jejum parlamentar, sobraram outros temas. No caso de Tancos, Costa arrumou um assunto e pôs outro estranhamente na mesa: o primeiro-ministro respondeu a Catarina Martins, sem fechar a porta, que agora não era o momento de se pensar na extinção da Polícia Judiciária Militar; mas numa resposta a Cristas sobre a demissão do ministro da Defesa, disse que mantinha tanto a confiança em Azeredo Lopes como na ministra da Justiça. “Como é público e notório, não só mantenho o meu ministro [da Defesa], como mantenho a minha ministra da Justiça. Mantenho todos os membros do Governo.” Não se percebe porquê a inclusão de Francisca Van Dunem no raciocínio, uma vez que ninguém lhe perguntou isso.

marcos borga

O debate aqueceu, sobretudo com a direita, também por causa das obras na ala de oncologia pediátrica do Hospital São João, no Porto. Embora Negrão tivesse colocado a questão com populismo à mistura, a resposta do primeiro-ministro não podia ser outra: não é possível contornar a lei e a contratação pública. De certa forma, a pergunta comportava alguma hipocrisia: se as regras tivessem sido contornadas, o Governo seria criticado por não estar a cumprir a lei para fazer ajustes diretos. Costa resolveu o repto do PSD com outro desafio: fazer aprovar uma lei que libertasse o São João dos constrangimentos legais. Negrão prometeu uma recomendação sobre o assunto. Será um tema a seguir.

Nota: ninguém falou da nomeação da nova PGR nem da não recondução de Joana Marques Vidal. Provavelmente, por cuidado: eventuais críticas ou elogios cairiam em cima da sucessora como uma forma de a condicionar. Afinal ainda temos políticos prudentes: a politização deste tema já fez estragos suficientes. Havia, porém, formas de abordar o assunto. Por exemplo, propor uma revisão da Constituição para estabelecer o mandato único. Era uma obrigação do PS falar disso ao PSD.

À esquerda, a “geringonça” manteve as tréguas, afinal estamos a poucas semanas da apresentação do Orçamento do Estado e convém não estragar as negociações. O Bloco voltou à lei de bases do SNS. E o PCP - pela voz de João Oliveira, porque Jerónimo de Sousa não esteve - apostou nos aumentos salariais da função pública. Costa voltou a repetir que preferia a contratação de mais funcionários públicos. E falou para João Oliveira, líder da bancada comunista, num tom que prenuncia, quem sabe, uma ambiente menos toldado no Orçamento: “Tenha confiança em si, homem! É capaz de fazer mais! Somos capazes de fazer mais” (vamos ler esta frase cinco vezes, porque com António Costa nunca se sabe, e o PCP pode até ser mesmo capaz de mais).

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