Aqui, o dia da “matrícula” não tem direito a praxe. Deputados são “acolhidos” no Parlamento

23-10-2015
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Domicilia Costa acabou de chegar à Assembleia da República e ainda não conhece os cantos à casa. Eleita pelo Bloco de Esquerda (BE) no círculo do Porto, a doméstica de 69 anos percorreu esta quinta-feira os corredores do Parlamento ao lado do ainda líder parlamentar do partido, Pedro Filipe Soares, que lhe ia apontando os caminhos e fazendo notas de rodapé: a sala do grupo parlamentar, aqui do lado esquerdo, mais à frente o bar, ali os acessos à sala do plenário, as casas de banho mais à frente, quem é quem e como funciona. O ar é de espanto, todas as caras são novas e o clima é de “ambientação”. “Ainda nos estamos a conhecer uns aos outros”, ouve o Observador à porta da sala do grupo parlamentar bloquista. É que, entre os 19 deputados eleitos pelo BE, só quatro transitaram da legislatura anterior. Todos os outros são estreantes.

É este o clima que se sente nos corredores da Assembleia da República na véspera do primeiro dia de aulas: olhar à volta para conhecer os cantos à casa, tirar dúvidas com os assessores e fazer fila para os balcões de atendimento. Ou, melhor, de “acolhimento”, onde 50 funcionários da Assembleia, organizados em escalas de trabalho, recebem nos próximos dias os 230 deputados que se vão “matricular”.

Por isso, quem entra no edifício velho da Assembleia da República por estes dias vê a palavra “Acolhimento” escrita por toda a parte. Ora na portaria, ora à saída do elevador. Em cada esquina uma placa e uma seta para ninguém se perder. As indicações vão dar ao salão nobre da Assembleia, onde desde esta quinta-feira e até à sexta-feira da próxima semana, está montada uma autêntica linha de balcões de atendimento aos deputados. Com o início da nova legislatura marcado para esta sexta-feira, às 10h00, vários foram os que não quiseram esperar e que foram de véspera conhecer o seu novo local de trabalho e “despachar” a matrícula, para entrarem no primeiro dia da sessão legislativa com o pé direito (ou será esquerdo?) e com a papelada toda em ordem.

Uma estreia no lado de dentro do edifício

Para muitos é a estreia absoluta na “casa da democracia”. Para outros é apenas a estreia absoluta no lado de dentro do edifício. Luís Monteiro, do Bloco de Esquerda, tem 22 anos e é o mais jovem dos deputados eleitos. Já conhecia bem a Assembleia da República do lado de fora, em particular a escadaria que tantas vezes foi palco de manifestações na legislatura que passou. Mas, do lado de dentro, nem por isso. “Só tinha vindo cá uma ou duas vezes e estou a ambientar-me ao espaço”, diz.

“Conhecia mais a escadaria dos dias de protestos, do 11 de março, do 15 de setembro, das manifestações relacionadas com o ensino superior, agora vejo a Assembleia de outra perspetiva”, admite o agora deputado que chega a Lisboa vindo de Vila Nova de Gaia, e que promete levar o “ativismo e a força da luta” que o fez estar no lado de fora do Parlamento para dentro das quatro linhas. “É outra responsabilidade”, acrescenta, sublinhando que pretende representar dentro de portas “todos aqueles que emigraram porque não tinham trabalho, os que perderam as bolsas de estudo, todos os que foram de alguma forma vítimas da austeridade dos últimos quatro anos”.

Além de ser uma das caras novas que circulam nos corredores de tapete vermelho, Luís Monteiro é também o benjamim dos deputados eleitos e, talvez por isso, dá mais nas vistas. Ao início da tarde, antes mesmo de abrir o horário de “acolhimento” aos deputados, já o jovem circulava nos corredores ao lado de um dos assessores do BE que lhe mostrava, um por um, os cantos da casa.

Não tiraram senha, mas foram os primeiros a chegar

Se houvesse senhas para tirar, Jorge Gomes e Luís Testa, do PS, tinham provavelmente ficado com os números 1 e 2. As portas do salão nobre só abriam às 15h00, mas às 14h30 já estavam preparados para entrar, com medo de “haver filas” e de atrasar o resto do dia. À 17h00 tinham a primeira reunião do grupo parlamentar.

Pode até vir a sentar-se nas últimas filas do plenário, mas para já, foi dos primeiros a chegar. Ao Observador, Luís Testa, que foi eleito pelo círculo de Portalegre, explica porque não quis deixar a burocracia para mais tarde, em cima dos trabalhos parlamentares: é que há vários “obstáculos” que têm de ser tirados do caminho, nomeadamente ao nível das autorizações para o estacionamento no parque da Assembleia ou da elaboração do cartão que o identifica enquanto deputado – quanto mais rápidos os formalismos informáticos forem tratados, melhor.

Também Jorge Gomes, que é secretário nacional do PS para a organização, foi dos primeiros a chegar e aos jornalistas notou que, apesar de ser uma cara “importante” no partido, “no Parlamento ninguém [o] conhece”. Quis chegar bem cedo para “não perder muito tempo” nos formalismos da inscrição, mas acabou por ter de perder tempo a esperar mais de meia hora para ser “atendido”. Ou “acolhido”.

O deputado socialista demorou mais uma hora entre os quatro postos de atendimento: primeiro a fotografia, depois os registos pessoais, a inserção de dados no sistema informático e o preenchimento da declaração de interesses e da inexistência de incompatibilidades. Quando ficou despachado, levava um saco na mão – presente dos serviços da Assembleia – contendo o regimento da Assembleia, a Constituição e toda a legislação e documentos relativos ao funcionamento da Assembleia da República. Para estudar em casa.

O entusiasmo é próprio de um primeiro dia de aulas, ou do dia em que se organiza o material para não faltar nada. Jorge Gomes faz o paralelismo: “Só faltou ser praxado”, diz, elogiando a organização dos serviços parlamentares que se parecem em tudo com os serviços académicos no período de matrículas.

“Motivados”, “entusiasmados”, são as palavras mais repetidas. Todos sabem que os tempos são “animados”, numa altura em que ainda não havia governo e se assistia de perto à possibilidade de, pela primeira vez em Portugal, o primeiro-ministro sair de um partido que não foi o partido mais votado nas eleições. “Estamos a assistir a uma revolução no sistema partidário português que serve não só para esta legislatura mas para todas as legislaturas futuras”, nota o também estreante Tiago Barbosa Ribeiro, socialista que preside à concelhia do PS no Porto, referindo-se ao facto de os partidos tradicionalmente de protesto, o BE e o PCP, estarem a alinhar na viabilização de um eventual Governo liderado pelo PS. “Agora, todos os deputados contam”, sublinha, e isso é visto à esquerda como um fator de entusiasmo acrescido.

Embora tenha havido uma predominância de deputados do PS e do Bloco de Esquerda, que esta tarde tinham reuniões dos respetivos grupos parlamentares, houve também caras novas do PSD e do CDS a quererem ir conhecer a sua nova casa logo no primeiro dia. Foi o caso de Ana Rita Bessa, a nova aquisição do grupo parlamentar centrista, que lamentou que os tempos da nova legislatura não fossem “tão tranquilos” como gostaria, mas que se mostrou entusiasmada para a nova etapa. “A grande vantagem de se ser nova é que vai ser tudo diferente”, disse, desvalorizando as singularidades que estão a marcar este início de legislatura – e que caracterizou como “dores de crescimento” da democracia.

Também a recém-eleita deputada do PSD pelo círculo da Madeira, Sara Madruga, esteve presente no primeiro dia, que marca a sua “estreia no Parlamento nacional, depois de há seis meses ter sido eleita deputada da Assembleia Regional da Madeira”. É um “momento histórico”, o que se vive, disse, remetendo para a “conjuntura de instabilidade” que “preocupa” os deputados que agora tomam posse. Luís Montenegro e Nuno Magalhães, líderes parlamentares na anterior legislatura, de resto, também marcaram presença.

50 funcionários para receber 230 deputados

Todos os serviços do Parlamento estão destacados para tratar do acolhimento dos deputados. Fazem escalas para dividir tarefas e horários mas “nenhum serviço” fica de fora, explica Cláudia Ribeiro, responsável pelos serviços de apoio parlamentar: todos os “cerca de 50 funcionários” da AR vão estar entre esta quinta-feira e a próxima sexta-feira, dia 30, destacados em permanência para “matricular” os 230 deputados eleitos, e responder às suas dúvidas.

Como o cartão de deputado só é válido para uma legislatura, não é só para os cerca de 80 estreantes que se dirige o trabalho administrativo, mas aqueles que são repetentes também têm de passar pelo processo. Começa com uma fotografia, depois passa para os registos biográficos e o preenchimento do cartão de deputado, culminando numa novidade: a videobiografia, da responsabilidade da AR TV.

É o último passo da formalidade: gravar um pequeno vídeo para ser incluído no site do Parlamento, falando sobre “os interesses de cada um e as suas motivações”. O objetivo é o de “aproximar o deputado de quem chega a ele através da página do Parlamento”, explica o responsável pelo canal Parlamento, que se mostrava entusiasmado pela adesão dos deputados ao vídeo. A meio da tarde, cerca de uma dezena tinha dado o seu contributo. Mas, surpreendentemente, eram todos repetentes.

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Domicilia Costa acabou de chegar à Assembleia da República e ainda não conhece os cantos à casa. Eleita pelo Bloco de Esquerda (BE) no círculo do Porto, a doméstica de 69 anos percorreu esta quinta-feira os corredores do Parlamento ao lado do ainda líder parlamentar do partido, Pedro Filipe Soares, que lhe ia apontando os caminhos e fazendo notas de rodapé: a sala do grupo parlamentar, aqui do lado esquerdo, mais à frente o bar, ali os acessos à sala do plenário, as casas de banho mais à frente, quem é quem e como funciona. O ar é de espanto, todas as caras são novas e o clima é de “ambientação”. “Ainda nos estamos a conhecer uns aos outros”, ouve o Observador à porta da sala do grupo parlamentar bloquista. É que, entre os 19 deputados eleitos pelo BE, só quatro transitaram da legislatura anterior. Todos os outros são estreantes.

É este o clima que se sente nos corredores da Assembleia da República na véspera do primeiro dia de aulas: olhar à volta para conhecer os cantos à casa, tirar dúvidas com os assessores e fazer fila para os balcões de atendimento. Ou, melhor, de “acolhimento”, onde 50 funcionários da Assembleia, organizados em escalas de trabalho, recebem nos próximos dias os 230 deputados que se vão “matricular”.

Por isso, quem entra no edifício velho da Assembleia da República por estes dias vê a palavra “Acolhimento” escrita por toda a parte. Ora na portaria, ora à saída do elevador. Em cada esquina uma placa e uma seta para ninguém se perder. As indicações vão dar ao salão nobre da Assembleia, onde desde esta quinta-feira e até à sexta-feira da próxima semana, está montada uma autêntica linha de balcões de atendimento aos deputados. Com o início da nova legislatura marcado para esta sexta-feira, às 10h00, vários foram os que não quiseram esperar e que foram de véspera conhecer o seu novo local de trabalho e “despachar” a matrícula, para entrarem no primeiro dia da sessão legislativa com o pé direito (ou será esquerdo?) e com a papelada toda em ordem.

Uma estreia no lado de dentro do edifício

Para muitos é a estreia absoluta na “casa da democracia”. Para outros é apenas a estreia absoluta no lado de dentro do edifício. Luís Monteiro, do Bloco de Esquerda, tem 22 anos e é o mais jovem dos deputados eleitos. Já conhecia bem a Assembleia da República do lado de fora, em particular a escadaria que tantas vezes foi palco de manifestações na legislatura que passou. Mas, do lado de dentro, nem por isso. “Só tinha vindo cá uma ou duas vezes e estou a ambientar-me ao espaço”, diz.

“Conhecia mais a escadaria dos dias de protestos, do 11 de março, do 15 de setembro, das manifestações relacionadas com o ensino superior, agora vejo a Assembleia de outra perspetiva”, admite o agora deputado que chega a Lisboa vindo de Vila Nova de Gaia, e que promete levar o “ativismo e a força da luta” que o fez estar no lado de fora do Parlamento para dentro das quatro linhas. “É outra responsabilidade”, acrescenta, sublinhando que pretende representar dentro de portas “todos aqueles que emigraram porque não tinham trabalho, os que perderam as bolsas de estudo, todos os que foram de alguma forma vítimas da austeridade dos últimos quatro anos”.

Além de ser uma das caras novas que circulam nos corredores de tapete vermelho, Luís Monteiro é também o benjamim dos deputados eleitos e, talvez por isso, dá mais nas vistas. Ao início da tarde, antes mesmo de abrir o horário de “acolhimento” aos deputados, já o jovem circulava nos corredores ao lado de um dos assessores do BE que lhe mostrava, um por um, os cantos da casa.

Não tiraram senha, mas foram os primeiros a chegar

Se houvesse senhas para tirar, Jorge Gomes e Luís Testa, do PS, tinham provavelmente ficado com os números 1 e 2. As portas do salão nobre só abriam às 15h00, mas às 14h30 já estavam preparados para entrar, com medo de “haver filas” e de atrasar o resto do dia. À 17h00 tinham a primeira reunião do grupo parlamentar.

Pode até vir a sentar-se nas últimas filas do plenário, mas para já, foi dos primeiros a chegar. Ao Observador, Luís Testa, que foi eleito pelo círculo de Portalegre, explica porque não quis deixar a burocracia para mais tarde, em cima dos trabalhos parlamentares: é que há vários “obstáculos” que têm de ser tirados do caminho, nomeadamente ao nível das autorizações para o estacionamento no parque da Assembleia ou da elaboração do cartão que o identifica enquanto deputado – quanto mais rápidos os formalismos informáticos forem tratados, melhor.

Também Jorge Gomes, que é secretário nacional do PS para a organização, foi dos primeiros a chegar e aos jornalistas notou que, apesar de ser uma cara “importante” no partido, “no Parlamento ninguém [o] conhece”. Quis chegar bem cedo para “não perder muito tempo” nos formalismos da inscrição, mas acabou por ter de perder tempo a esperar mais de meia hora para ser “atendido”. Ou “acolhido”.

O deputado socialista demorou mais uma hora entre os quatro postos de atendimento: primeiro a fotografia, depois os registos pessoais, a inserção de dados no sistema informático e o preenchimento da declaração de interesses e da inexistência de incompatibilidades. Quando ficou despachado, levava um saco na mão – presente dos serviços da Assembleia – contendo o regimento da Assembleia, a Constituição e toda a legislação e documentos relativos ao funcionamento da Assembleia da República. Para estudar em casa.

O entusiasmo é próprio de um primeiro dia de aulas, ou do dia em que se organiza o material para não faltar nada. Jorge Gomes faz o paralelismo: “Só faltou ser praxado”, diz, elogiando a organização dos serviços parlamentares que se parecem em tudo com os serviços académicos no período de matrículas.

“Motivados”, “entusiasmados”, são as palavras mais repetidas. Todos sabem que os tempos são “animados”, numa altura em que ainda não havia governo e se assistia de perto à possibilidade de, pela primeira vez em Portugal, o primeiro-ministro sair de um partido que não foi o partido mais votado nas eleições. “Estamos a assistir a uma revolução no sistema partidário português que serve não só para esta legislatura mas para todas as legislaturas futuras”, nota o também estreante Tiago Barbosa Ribeiro, socialista que preside à concelhia do PS no Porto, referindo-se ao facto de os partidos tradicionalmente de protesto, o BE e o PCP, estarem a alinhar na viabilização de um eventual Governo liderado pelo PS. “Agora, todos os deputados contam”, sublinha, e isso é visto à esquerda como um fator de entusiasmo acrescido.

Embora tenha havido uma predominância de deputados do PS e do Bloco de Esquerda, que esta tarde tinham reuniões dos respetivos grupos parlamentares, houve também caras novas do PSD e do CDS a quererem ir conhecer a sua nova casa logo no primeiro dia. Foi o caso de Ana Rita Bessa, a nova aquisição do grupo parlamentar centrista, que lamentou que os tempos da nova legislatura não fossem “tão tranquilos” como gostaria, mas que se mostrou entusiasmada para a nova etapa. “A grande vantagem de se ser nova é que vai ser tudo diferente”, disse, desvalorizando as singularidades que estão a marcar este início de legislatura – e que caracterizou como “dores de crescimento” da democracia.

Também a recém-eleita deputada do PSD pelo círculo da Madeira, Sara Madruga, esteve presente no primeiro dia, que marca a sua “estreia no Parlamento nacional, depois de há seis meses ter sido eleita deputada da Assembleia Regional da Madeira”. É um “momento histórico”, o que se vive, disse, remetendo para a “conjuntura de instabilidade” que “preocupa” os deputados que agora tomam posse. Luís Montenegro e Nuno Magalhães, líderes parlamentares na anterior legislatura, de resto, também marcaram presença.

50 funcionários para receber 230 deputados

Todos os serviços do Parlamento estão destacados para tratar do acolhimento dos deputados. Fazem escalas para dividir tarefas e horários mas “nenhum serviço” fica de fora, explica Cláudia Ribeiro, responsável pelos serviços de apoio parlamentar: todos os “cerca de 50 funcionários” da AR vão estar entre esta quinta-feira e a próxima sexta-feira, dia 30, destacados em permanência para “matricular” os 230 deputados eleitos, e responder às suas dúvidas.

Como o cartão de deputado só é válido para uma legislatura, não é só para os cerca de 80 estreantes que se dirige o trabalho administrativo, mas aqueles que são repetentes também têm de passar pelo processo. Começa com uma fotografia, depois passa para os registos biográficos e o preenchimento do cartão de deputado, culminando numa novidade: a videobiografia, da responsabilidade da AR TV.

É o último passo da formalidade: gravar um pequeno vídeo para ser incluído no site do Parlamento, falando sobre “os interesses de cada um e as suas motivações”. O objetivo é o de “aproximar o deputado de quem chega a ele através da página do Parlamento”, explica o responsável pelo canal Parlamento, que se mostrava entusiasmado pela adesão dos deputados ao vídeo. A meio da tarde, cerca de uma dezena tinha dado o seu contributo. Mas, surpreendentemente, eram todos repetentes.

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