Catarina Marcelino: "Quem tem o poder nunca quer largá-lo"

15-02-2016
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Catarina Marcelino, secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, destaca o efeito positivo que a imposição de quotas de género nas listas para o Parlamento teve na implementação de políticas públicas. E acredita que o país está pronto para o próximo passo: a imposição de quotas nas administrações das empresas.

Pela primeira vez, um terço do Parlamento é ocupado por mulheres. É cedo para fazer uma avaliação do impacto que isso está a ter?

Atingimos aquilo que é o limiar da paridade e isso, evidentemente, tem efeitos práticos. O mais prático é a situação do Bloco de Esquerda. A liderança da Catarina Martins torna evidente que a participação de mulheres no BE lhes dá um palco político que permite um caminho mais facilitado para chegarem a lugares de poder.

O CDS é outra situação, se calhar até mais evidente do que a do BE, porque as quotas não eram aplicadas internamente pelo partido. O caso da candidata Assunção Cristas a líder do partido é bem a prova de que as quotas têm uma eficácia muito interessante do ponto de vista daquilo que é o objetivo.

E a lei tem importância noutra perspetiva: havendo mais mulheres na decisão, podemos influenciar políticas públicas e agenda política. Sem dúvida que mais mulheres na decisão traz para a agenda política matérias que têm a ver com as suas vivências. Ser homem ou mulher influencia a vida das pessoas. As mulheres têm preocupações que têm a ver com o seu papel social.

O facto de haver mais mulheres faz com que haja mais convergência (ou, pelo menos, mais diálogo) entre diferentes partidos, relativamente a alguns temas?

Temos vindo a assistir a um alargamento da preocupação em função daquilo que é o espectro político. Dantes, as questões da igualdade eram muito da esquerda. Hoje, podemos dizer que a preocupação com estas questões não tem uma marca de esquerda ou de direita. A forma como olhamos para as políticas é que diverge. O caso da Interrupção Voluntária de Gravidez (IVG) é bem um exemplo de como a visão da esquerda e da direita é muito diferente, assim como as questões LGBTI.

Mas há uma preocupação alargada. Julgo que, à direita, esse efeito é muito notório. A última votação para as questões da adoção por casais do mesmo sexo denota que até à direita há uma abertura maior. O número de deputados e deputadas do PSD que votaram a favor foi muito expressivo, o que denota uma tendência de abertura. A direita também tem a sua vertente liberal.

Quando é que o governo avança com a imposição de quotas de género nos conselhos de administração das empresas do Estado e das empresas cotadas? Em que moldes vai assentar essa legislação?

Essa legislação está a ser construída na ótica da diretiva comunitária. Esta diretiva está a ser discutida já há algum tempo, mas há um impasse porque há um grupo de países que não dão luz verde, com argumentos que se escondem em questões formais. Na verdade, é uma questão de preconceito relativamente a esta matéria, porque os argumentos são muito frágeis. O governo português decidiu avançar com legislação própria. Achamos que é altura de olhar também para o setor empresarial.

Vamos fazer uma legislação que proteja as pequenas e médias empresas, porque temos consciência de que esta é uma realidade que não pode ter uma lei cega. Mas, ao nível das empresas cotadas em Bolsa, e tal como já se fez noutros países, achamos que é momento de avançar. O país tem condições para isso. Vamos dar prazos de adaptação e as regras serão aplicadas às cotadas e ao setor empresarial do Estado, porque entendemos que o Estado não pode impor regras ao privado sem que essas regras também sejam aplicadas ao setor público. E será para breve. Muito breve.

Quais são os prazos que vão dar?

Estamos a pensar em 2018 para o setor empresarial do Estado e em 2020 para as cotadas.

Que reação espera das empresas?

Estas leis são sempre difíceis, porque implicam mudanças profundas do ponto de vista das sociedades, dos conceitos sociais e da forma como as comunidades vivem. Além de que são questões, às vezes, muito subjetivas, e a subjetividade é mais difícil de combater do que a objetividade. Mas a realidade é que temos um país com um nível de mulheres qualificadas mais elevado do que o de homens. Na década de 80, dizia-se que estes problemas das diferenças salariais e de chegar ao poder seriam resolvidos naturalmente, porque as mulheres estavam a qualificar-se rapidamente. E o facto é que estamos em 2016 e essa não é a realidade.

Portanto, há que ter medidas para impor essa realidade. Quem tem o poder nunca quer largar o poder. Esse é uma coisa muito simples de se perceber. Dentro dos princípios republicanos, aplicamos medidas que permitam que todos e todas possam aceder ao poder, ou o poder ficará sempre nas mãos dos mesmos.

Há estudos de várias consultoras que dizem que a existência de mais mulheres nos conselhos de administração melhora os desempenhos das empresas. São formas diferentes de olhar para o mercado e isso é vantajoso do ponto de vista competitivo. As empresas deviam olhar para a questão desta perspetiva, e não duma perspetiva apenas do poder pelo poder. Julgo que, para a economia do país, para o bem da nossa sociedade, para o bem da nossa comunidade, uma legislação destas é importante porque é um avanço significativo naquilo que nós queremos para o desenvolvimento da nossa sociedade.

Não seria também de avançar com quotas para etnias? Há, claramente, uma grande parte da população portuguesa que não está representada nos cargos de poder.

Há uma questão prévia. Em todos os grupos, há sempre homens e mulheres. Se olharmos para um grupo de pessoas de etnia cigana, há homens e mulheres. Num grupo de pessoas deficientes, há homens e mulheres. A questão do género é transversal. Todos esses grupos, para além dos problemas, das especificidades étnicas ou das suas deficiências, têm sempre a questão de género.

Por outro lado, há um caminho que tem de ser feito antes da questão das quotas. O Observatório das Migrações fez, há pouco tempo, um congresso onde um dos workshops era sobre a participação política dos emigrantes. A verdade é que os partidos não têm, nas suas bases, muitas pessoas de etnias diferentes.

Temos de melhorar a cultura de participação política dos emigrantes. Devem criar-se projetos para esse fim. Apostar em programas de formação que criem interesse para a participação cívica e política nos emigrantes é fundamental para atingirmos o objetivo de termos melhor representatividade no parlamento. Quanto mais diversidade, melhor.

Não é só uma questão de emigrantes. Uma grande parte da população é portuguesa e não é branca. E não está representada.

Sim, sem dúvida. Quando falo dos emigrantes, é uma expressão. Mas obviamente que todas essas pessoas devem ser chamadas à participação.

No programa de governo, falam em compromissos com os parceiros sociais para promover a igualdade. Que compromissos?

As questões das desigualdades de género no mercado de trabalho são muito mais complexas no que toca a legislar e ter resultados. Veja-se o exemplo da parentalidade e das alterações ao Código de Trabalho, que tiveram um efeito positivíssimo em 2009, quando se permitiu a partilha da licença entre pai e mãe. Há aqui uma questão de conceito que se alterou profundamente. Hoje, a licença é do pai e da mãe, partilham-na como entenderem.

A propósito disso, por que não obrigar a que a licença seja igualmente repartida, tirando o fardo exclusivo da mãe?

A desvalorização da vida privada em função da valorização da vida pública é um grande problema, , achar que aquilo que é privado, cuidar, neste caso de crianças e de idosos, é um fardo. É a visão errada e, enquanto a visão for essa, é difícil conseguir fazer a mudança.

Mas a questão de uma maior partilha é muito importante e o que defendemos é que devemos caminhar para um aumento da licença do pai. Contudo, defendemos que a partilha deve ser decidida pela família. Estamos a falar da vida privada das pessoas, da sua organização privada. O que está no programa do governo é aumentar o tempo de licença do pai e ir procurando esse caminho. Quando fizemos a alteração em 2009, houve efeitos muito positivos no número de homens que partilharam a licença. Aumentou de cerca de 600 homens para 75 mil. Foi um aumento muito grande, mas longe de atingir os 100%.

No entanto, não basta impor na lei e depois ter os resultados. Precisamos, e isto vai à questão que me colocou, de um trabalho com os parceiros sociais. É dentro da concertação social que estes temas têm de ser debatidos, aceites e incorporados. Se não o forem, os resultados vão ficar sempre aquém do esperado. Precisamos de tempo para preparar esse trabalho, estamos há dois meses no governo. Mas a ideia é ter um pacote de propostas para a concertação social nestas áreas.

O que gostaríamos mesmo era de conseguir fazer alterações ao nível da contratação coletiva. Essa é uma área muito importante e onde faltam mulheres como negociadoras. Os sindicatos têm poucas mulheres negociadoras e isso é fundamental. É por isto que, às vezes, há contratos coletivos de trabalho que têm coisas já obsoletas e que a lei já ultrapassou há muito.

Portugal foi o país da UE onde as disparidades salariais mais aumentaram com a crise. Que medidas vão ser tomadas para reverter isso?

A crise mostra que há mais fragilidade no emprego feminino. Aliás, se olharmos para o tipo de contratação, chegamos a esta conclusão facilmente. Mas também há razões que se prendem com tudo o que falámos antes. Na base das carreiras, a diferença entre salários é menor do que entre as pessoas mais qualificadas. Aí, a diferença dispara por causa das questões da conciliação. As mulheres, quando têm filhos - lá está a importância da partilha -, passam a dedicar mais tempo à família e dão menos tempo à carreira. Isto só se resolve com um compromisso da sociedade, não se faz por decreto.

É verdade que esta disparidade acontece pela falta de mulheres em cargos de topo. Mas também há a situação “salários diferentes para cargos iguais”. Há medidas concretas para esta questão?

Há medidas que se podem tomar, mas não são medidas legislativas. A Autoridade para as Condições do Trabalho tem de ser mais ativa na forma como fiscaliza estas questões. Também tem de haver mais proatividade na denúncia das situações, porque não podemos ter um inspetor da ACT em cada empresa atrás de cada trabalhador ou trabalhadora.

A matéria da desigualdade salarial não pode ser resolvida por lei, porque a lei já diz que não pode haver desigualdade salarial. Temos é de agir socialmente. Mas não pode ser só numa atitude securitária, ou seja, de ter a ACT com o inspetor nas empresas, até porque há muitas formas de camuflar estas questões. Quando há prémios, esta desigualdade aumenta em relação aos salários base, exatamente porque é aí que se pode jogar de uma forma pouco explícita a questão. A questão passa por um trabalho muito sério, quer junto da concertação social, quer junto da comunidade.

Como é que se explica que mesmo as startups sejam fundadas maioritariamente por homens? E o que é preciso fazer neste campo? É preciso começar pela educação?

Exatamente. É mesmo por aí. O facto de as startups serem maioritariamente masculinas não me surpreende nada, porque tem a ver com a forma como nós educamos rapazes e raparigas. Começa no pré-escolar. É incrível vermos crianças com três anos, que ainda mal começaram a falar, a dizer já que as meninas gostam de rosa e os meninos de azul. Ou que os senhores fazem as estradas e as senhoras fazem a comida. Este tipo de estereótipos demonstra como nem sequer é uma questão de educação em casa, é a sociedade que influencia fortemente as crianças neste sentido.

Como é que se reverte isto? Julgo que é pela educação. Temos a grande vantagem de ter uma escola pública universal, mas que, desde o 25 de Abril, nunca foi suficientemente explorada nestas áreas. Explorou-se muito a educação formal, mas nunca se explorou a escola como motor de promoção da cidadania.

Um dos objetivos que temos, e o Ministério da Educação está muito vocacionado nesse sentido, é ter um projeto para a cidadania nas escolas que seja muito abrangente, que trabalhe as competências pessoais e sociais. É disso que estamos a falar. Temos de ter competências para empreender. Não basta que uma pessoa queira ser, tem de ter as competências para ser. E as mulheres precisam de ter mais competências que as ajudem a ser mais empreendedoras.

Como se traduz esse projeto? Em disciplinas?

Não. Está mais do que provado e estudado que ter disciplinas de cidadania não funciona. O que funciona é ter projetos. Houve um momento em que acho que este trabalho melhorou muito nas escolas, que foi quando havia Área de Projeto. Não digo que se vá retomar exatamente aquele modelo. Mas a Área de Projeto permitia que as escolas se envolvessem e que tivessem tempo letivo para desenvolver este trabalho. Mais importante do que ter uma disciplina é haver tempos letivos para desenvolver projetos, incluir a comunidade escolar e os professores naquilo que têm de passar aos alunos, para incorporarem estes valores e estes princípios, que são fundamentais para a formação das pessoas.

Catarina Marcelino, secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, destaca o efeito positivo que a imposição de quotas de género nas listas para o Parlamento teve na implementação de políticas públicas. E acredita que o país está pronto para o próximo passo: a imposição de quotas nas administrações das empresas.

Pela primeira vez, um terço do Parlamento é ocupado por mulheres. É cedo para fazer uma avaliação do impacto que isso está a ter?

Atingimos aquilo que é o limiar da paridade e isso, evidentemente, tem efeitos práticos. O mais prático é a situação do Bloco de Esquerda. A liderança da Catarina Martins torna evidente que a participação de mulheres no BE lhes dá um palco político que permite um caminho mais facilitado para chegarem a lugares de poder.

O CDS é outra situação, se calhar até mais evidente do que a do BE, porque as quotas não eram aplicadas internamente pelo partido. O caso da candidata Assunção Cristas a líder do partido é bem a prova de que as quotas têm uma eficácia muito interessante do ponto de vista daquilo que é o objetivo.

E a lei tem importância noutra perspetiva: havendo mais mulheres na decisão, podemos influenciar políticas públicas e agenda política. Sem dúvida que mais mulheres na decisão traz para a agenda política matérias que têm a ver com as suas vivências. Ser homem ou mulher influencia a vida das pessoas. As mulheres têm preocupações que têm a ver com o seu papel social.

O facto de haver mais mulheres faz com que haja mais convergência (ou, pelo menos, mais diálogo) entre diferentes partidos, relativamente a alguns temas?

Temos vindo a assistir a um alargamento da preocupação em função daquilo que é o espectro político. Dantes, as questões da igualdade eram muito da esquerda. Hoje, podemos dizer que a preocupação com estas questões não tem uma marca de esquerda ou de direita. A forma como olhamos para as políticas é que diverge. O caso da Interrupção Voluntária de Gravidez (IVG) é bem um exemplo de como a visão da esquerda e da direita é muito diferente, assim como as questões LGBTI.

Mas há uma preocupação alargada. Julgo que, à direita, esse efeito é muito notório. A última votação para as questões da adoção por casais do mesmo sexo denota que até à direita há uma abertura maior. O número de deputados e deputadas do PSD que votaram a favor foi muito expressivo, o que denota uma tendência de abertura. A direita também tem a sua vertente liberal.

Quando é que o governo avança com a imposição de quotas de género nos conselhos de administração das empresas do Estado e das empresas cotadas? Em que moldes vai assentar essa legislação?

Essa legislação está a ser construída na ótica da diretiva comunitária. Esta diretiva está a ser discutida já há algum tempo, mas há um impasse porque há um grupo de países que não dão luz verde, com argumentos que se escondem em questões formais. Na verdade, é uma questão de preconceito relativamente a esta matéria, porque os argumentos são muito frágeis. O governo português decidiu avançar com legislação própria. Achamos que é altura de olhar também para o setor empresarial.

Vamos fazer uma legislação que proteja as pequenas e médias empresas, porque temos consciência de que esta é uma realidade que não pode ter uma lei cega. Mas, ao nível das empresas cotadas em Bolsa, e tal como já se fez noutros países, achamos que é momento de avançar. O país tem condições para isso. Vamos dar prazos de adaptação e as regras serão aplicadas às cotadas e ao setor empresarial do Estado, porque entendemos que o Estado não pode impor regras ao privado sem que essas regras também sejam aplicadas ao setor público. E será para breve. Muito breve.

Quais são os prazos que vão dar?

Estamos a pensar em 2018 para o setor empresarial do Estado e em 2020 para as cotadas.

Que reação espera das empresas?

Estas leis são sempre difíceis, porque implicam mudanças profundas do ponto de vista das sociedades, dos conceitos sociais e da forma como as comunidades vivem. Além de que são questões, às vezes, muito subjetivas, e a subjetividade é mais difícil de combater do que a objetividade. Mas a realidade é que temos um país com um nível de mulheres qualificadas mais elevado do que o de homens. Na década de 80, dizia-se que estes problemas das diferenças salariais e de chegar ao poder seriam resolvidos naturalmente, porque as mulheres estavam a qualificar-se rapidamente. E o facto é que estamos em 2016 e essa não é a realidade.

Portanto, há que ter medidas para impor essa realidade. Quem tem o poder nunca quer largar o poder. Esse é uma coisa muito simples de se perceber. Dentro dos princípios republicanos, aplicamos medidas que permitam que todos e todas possam aceder ao poder, ou o poder ficará sempre nas mãos dos mesmos.

Há estudos de várias consultoras que dizem que a existência de mais mulheres nos conselhos de administração melhora os desempenhos das empresas. São formas diferentes de olhar para o mercado e isso é vantajoso do ponto de vista competitivo. As empresas deviam olhar para a questão desta perspetiva, e não duma perspetiva apenas do poder pelo poder. Julgo que, para a economia do país, para o bem da nossa sociedade, para o bem da nossa comunidade, uma legislação destas é importante porque é um avanço significativo naquilo que nós queremos para o desenvolvimento da nossa sociedade.

Não seria também de avançar com quotas para etnias? Há, claramente, uma grande parte da população portuguesa que não está representada nos cargos de poder.

Há uma questão prévia. Em todos os grupos, há sempre homens e mulheres. Se olharmos para um grupo de pessoas de etnia cigana, há homens e mulheres. Num grupo de pessoas deficientes, há homens e mulheres. A questão do género é transversal. Todos esses grupos, para além dos problemas, das especificidades étnicas ou das suas deficiências, têm sempre a questão de género.

Por outro lado, há um caminho que tem de ser feito antes da questão das quotas. O Observatório das Migrações fez, há pouco tempo, um congresso onde um dos workshops era sobre a participação política dos emigrantes. A verdade é que os partidos não têm, nas suas bases, muitas pessoas de etnias diferentes.

Temos de melhorar a cultura de participação política dos emigrantes. Devem criar-se projetos para esse fim. Apostar em programas de formação que criem interesse para a participação cívica e política nos emigrantes é fundamental para atingirmos o objetivo de termos melhor representatividade no parlamento. Quanto mais diversidade, melhor.

Não é só uma questão de emigrantes. Uma grande parte da população é portuguesa e não é branca. E não está representada.

Sim, sem dúvida. Quando falo dos emigrantes, é uma expressão. Mas obviamente que todas essas pessoas devem ser chamadas à participação.

No programa de governo, falam em compromissos com os parceiros sociais para promover a igualdade. Que compromissos?

As questões das desigualdades de género no mercado de trabalho são muito mais complexas no que toca a legislar e ter resultados. Veja-se o exemplo da parentalidade e das alterações ao Código de Trabalho, que tiveram um efeito positivíssimo em 2009, quando se permitiu a partilha da licença entre pai e mãe. Há aqui uma questão de conceito que se alterou profundamente. Hoje, a licença é do pai e da mãe, partilham-na como entenderem.

A propósito disso, por que não obrigar a que a licença seja igualmente repartida, tirando o fardo exclusivo da mãe?

A desvalorização da vida privada em função da valorização da vida pública é um grande problema, , achar que aquilo que é privado, cuidar, neste caso de crianças e de idosos, é um fardo. É a visão errada e, enquanto a visão for essa, é difícil conseguir fazer a mudança.

Mas a questão de uma maior partilha é muito importante e o que defendemos é que devemos caminhar para um aumento da licença do pai. Contudo, defendemos que a partilha deve ser decidida pela família. Estamos a falar da vida privada das pessoas, da sua organização privada. O que está no programa do governo é aumentar o tempo de licença do pai e ir procurando esse caminho. Quando fizemos a alteração em 2009, houve efeitos muito positivos no número de homens que partilharam a licença. Aumentou de cerca de 600 homens para 75 mil. Foi um aumento muito grande, mas longe de atingir os 100%.

No entanto, não basta impor na lei e depois ter os resultados. Precisamos, e isto vai à questão que me colocou, de um trabalho com os parceiros sociais. É dentro da concertação social que estes temas têm de ser debatidos, aceites e incorporados. Se não o forem, os resultados vão ficar sempre aquém do esperado. Precisamos de tempo para preparar esse trabalho, estamos há dois meses no governo. Mas a ideia é ter um pacote de propostas para a concertação social nestas áreas.

O que gostaríamos mesmo era de conseguir fazer alterações ao nível da contratação coletiva. Essa é uma área muito importante e onde faltam mulheres como negociadoras. Os sindicatos têm poucas mulheres negociadoras e isso é fundamental. É por isto que, às vezes, há contratos coletivos de trabalho que têm coisas já obsoletas e que a lei já ultrapassou há muito.

Portugal foi o país da UE onde as disparidades salariais mais aumentaram com a crise. Que medidas vão ser tomadas para reverter isso?

A crise mostra que há mais fragilidade no emprego feminino. Aliás, se olharmos para o tipo de contratação, chegamos a esta conclusão facilmente. Mas também há razões que se prendem com tudo o que falámos antes. Na base das carreiras, a diferença entre salários é menor do que entre as pessoas mais qualificadas. Aí, a diferença dispara por causa das questões da conciliação. As mulheres, quando têm filhos - lá está a importância da partilha -, passam a dedicar mais tempo à família e dão menos tempo à carreira. Isto só se resolve com um compromisso da sociedade, não se faz por decreto.

É verdade que esta disparidade acontece pela falta de mulheres em cargos de topo. Mas também há a situação “salários diferentes para cargos iguais”. Há medidas concretas para esta questão?

Há medidas que se podem tomar, mas não são medidas legislativas. A Autoridade para as Condições do Trabalho tem de ser mais ativa na forma como fiscaliza estas questões. Também tem de haver mais proatividade na denúncia das situações, porque não podemos ter um inspetor da ACT em cada empresa atrás de cada trabalhador ou trabalhadora.

A matéria da desigualdade salarial não pode ser resolvida por lei, porque a lei já diz que não pode haver desigualdade salarial. Temos é de agir socialmente. Mas não pode ser só numa atitude securitária, ou seja, de ter a ACT com o inspetor nas empresas, até porque há muitas formas de camuflar estas questões. Quando há prémios, esta desigualdade aumenta em relação aos salários base, exatamente porque é aí que se pode jogar de uma forma pouco explícita a questão. A questão passa por um trabalho muito sério, quer junto da concertação social, quer junto da comunidade.

Como é que se explica que mesmo as startups sejam fundadas maioritariamente por homens? E o que é preciso fazer neste campo? É preciso começar pela educação?

Exatamente. É mesmo por aí. O facto de as startups serem maioritariamente masculinas não me surpreende nada, porque tem a ver com a forma como nós educamos rapazes e raparigas. Começa no pré-escolar. É incrível vermos crianças com três anos, que ainda mal começaram a falar, a dizer já que as meninas gostam de rosa e os meninos de azul. Ou que os senhores fazem as estradas e as senhoras fazem a comida. Este tipo de estereótipos demonstra como nem sequer é uma questão de educação em casa, é a sociedade que influencia fortemente as crianças neste sentido.

Como é que se reverte isto? Julgo que é pela educação. Temos a grande vantagem de ter uma escola pública universal, mas que, desde o 25 de Abril, nunca foi suficientemente explorada nestas áreas. Explorou-se muito a educação formal, mas nunca se explorou a escola como motor de promoção da cidadania.

Um dos objetivos que temos, e o Ministério da Educação está muito vocacionado nesse sentido, é ter um projeto para a cidadania nas escolas que seja muito abrangente, que trabalhe as competências pessoais e sociais. É disso que estamos a falar. Temos de ter competências para empreender. Não basta que uma pessoa queira ser, tem de ter as competências para ser. E as mulheres precisam de ter mais competências que as ajudem a ser mais empreendedoras.

Como se traduz esse projeto? Em disciplinas?

Não. Está mais do que provado e estudado que ter disciplinas de cidadania não funciona. O que funciona é ter projetos. Houve um momento em que acho que este trabalho melhorou muito nas escolas, que foi quando havia Área de Projeto. Não digo que se vá retomar exatamente aquele modelo. Mas a Área de Projeto permitia que as escolas se envolvessem e que tivessem tempo letivo para desenvolver este trabalho. Mais importante do que ter uma disciplina é haver tempos letivos para desenvolver projetos, incluir a comunidade escolar e os professores naquilo que têm de passar aos alunos, para incorporarem estes valores e estes princípios, que são fundamentais para a formação das pessoas.

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