Amadora. Desalojados e sem direito a novo teto

24-04-2017
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Estão no Bairro 6 de Maio e não sabem o dia em que as retroescavadoras vão derrubar a casa onde moram (mas sabem que não falta muito tempo). A Câmara Municipal da Amadora disse-lhes que não têm direito a realojamento nem apoio financeiro para adquirir ou arrendar casa.

Suleimane Bamba é um dos que “não têm direito”. Serviu nas Forças Armadas portuguesas durante a guerra da independência da Guiné-Bissau. A bala que tem alojada na anca é uma prova. Está em Portugal desde 1987 e, tal como a grande maioria dos imigrantes de ex-colónias portuguesas, instalou-se num bairro precário, construído pelas próprias pessoas. As rendas elevadas no centro de Lisboa e a recusa por parte de alguns senhorios em arrendar um quarto ou um apartamento a negros com baixos níveis de instrução e qualificação profissional contribuíram para que, a partir da década de 70, terrenos junto a antigas estradas militares e outros locais nas periferias da Grande Lisboa se transformassem em áreas de residência de imigrantes. O Bairro 6 de Maio é o exemplo disso, habitado na maioria por cabo-verdianos.

Suleimane é dos poucos que não são de Cabo Verde: é guineense mas desde 1991 que também tem nacionalidade portuguesa. Com 73 anos, e com a família toda na Guiné, vê-se agora na situação de desalojado. “Para que é que jurei a bandeira se agora não tenho direito a nada?” A casa onde vive vai ser demolida e na Câmara Municipal da Amadora já lhe disseram que não tem direito a ser realojado, nem a receber dinheiro para arrendar uma habitação.

“As pessoas para terem um contrato de arrendamento com a autarquia ou beneficiarem de um programa habitacional têm que estar recenseadas no Programa Especial de Realojamento, não podem ter alternativa habitacional e têm que ter residido sempre no mesmo bairro”, esclarece ao Expresso a presidente da Câmara da Amadora, Carla Tavares. “Eu fui o primeiro a fazer o recenseamento, sempre vivi aqui. Fui à Guiné ao funeral da minha mãe e quando voltei a Câmara disse-me que não tenho direito.”

Segundo Suleimane, a Câmara da Amadora disse-lhe que estava fora do programa de realojamento por ter estado três meses na Guiné, aquando da morte da mãe, em 2001.

O Expresso pediu esclarecimentos no sentido de perceber as razões que levaram a que fosse excluído, mas a Câmara recusou-se a comentar casos concretos. Como Suleimane, existem mais 23 famílias do Bairro 6 de Maio que não estão no PER, revela a presidente da autarquia.

António Pedro Ferreira

Recenseamento tem 23 anos

O Programa Especial de Realojamento foi criado em 1993 pelo Governo com o objetivo de erradicar os bairros de barracas nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, realojando as pessoas em bairros sociais ou dando-lhes apoio financeiro para a construção, aquisição ou arrendamento de habitações. O problema é que muitas pessoas chegaram aos bairros depois de 1993, data em que foi feito o recenseamento dos agregados familiares para entrarem no PER. Da mesma forma, muitos morreram e outros nasceram nos bairros.

Durante estes 23 anos, o programa não foi revisto nem o recenseamento foi atualizado, daí que vários residentes fiquem de fora. O provedor de Justiça, José de Faria Costa, recomendou ao ministro do Ambiente, em setembro do ano passado, a revisão do PER “em prazo não superior a 180 dias”, considerando que se trata de “um instrumento manifestamente desatualizado”.

Este mês completaram-se seis meses desde a sua recomendação. Todos os partidos políticos aprovaram por unanimidade, no mês passado, uma recomendação ao Governo para que avance para um “novo programa nacional de realojamento que garanta o efetivo acesso ao direito à habitação”, o qual tenha atenção aos atuais moradores e salvaguarde uma solução habitacional alternativa ou apoio social. Mas até agora não se conhecem avanços além das recomendações.

A presidente da Câmara da Amadora admitiu em janeiro que vai prosseguir com a erradicação do Bairro 6 de Maio, mesmo depois de os deputados lhe terem pedido para suspender as demolições enquanto não se encontrar uma solução. Mas há quem ainda mantenha a fé. “Eu sei que Deus não nos vai deixar na rua”, pede Eugénia Ferreira a rezar para o céu. Vive com os netos de 14, 18 e 24 anos mas não sabe para onde vão quando a casa for abaixo.

No bairro há quase 21 anos, não estava em Portugal no ano do recenseamento. Familiares — além da filha que está detida — só tem uma irmã que também vive no bairro mas que vai ser realojada. Com 73 anos, e problemas de coração, os €400 de reforma têm que dar para comprar a medicação, pagar a luz e a renda, e ainda providenciar o sustento dos três netos. Não tem como alugar uma casa.

Amália está na mesma situação. A mulher cuja história apareceu nos jornais em fevereiro, por ameaça de despejo com uma neta recém-nascida, ainda permanece no bairro. Mas nada mudou: “Não tem direito”, é a resposta que a Câmara lhe dá. “A câmara quer tirar-nos daqui à força toda, não quer saber se temos sítio para ir”, queixa-se. Emigrou de Cabo Verde para Portugal em 2003 e ficou a viver na casa de uma prima que foi realojada. “Em 2007, a Câmara disse que me dava €14 mil e tal para uma casa, mas com a crise disseram-me que já não tinham dinheiro para me dar, só para os que estão no PER.” Está desempregada há seis meses, trabalhava como ajudante de cozinha e o patrão despediu-a ao recusar trabalhar à noite por causa dos filhos (um horário diferente do estipulado no contrato). É a pensão que o pai paga (€150) e os abonos do filho (€49) e da neta que os sustenta. “Até agora, visitei sete casas mas não consegui nenhuma.”

José Maria Varela também recebeu a mesma resposta da Câmara: “Não tem direito.” “Vim para o bairro em 1992 com 10 anos, foi quando conheci a minha mãe.” Viveu com ela até 2013, ano em que a casa foi demolida. A mãe recebeu dinheiro para arrendar uma habitação porque estava recenseada no PER mas, por motivos que José Maria diz desconhecer, ela não o recenseou. E sem o recenseamento não tem direito a ser realojado. Viu-se obrigado a ir viver com a irmã (fora do bairro) e mais tarde arrendou uma casa, mas ao ficar sem emprego e sem possibilidade de pagar a renda teve de voltar para o bairro.

“Estou numa casa que um amigo meu me arranjou, mas também vai abaixo a qualquer momento. E eu tenho dois bebés de 1 e 3 anos com problemas de saúde e não temos nenhum sítio para onde ir.” A mulher deixou de trabalhar para ficar a tomar conta das crianças, ambas com epilepsia, e José Maria arranjou um emprego recentemente. Recebe cerca de €600, a única fonte de rendimento para sustentar os quatro, comprar a medicação para os filhos e pagar as contas. Já andaram a procurar casa, mas o T1 mais barato que encontraram custa €350. De acordo com uma agência imobiliária a operar em Portugal, os valores médios das rendas dos apartamentos para arrendar no concelho da Amadora variam entre os €380 para um T1 e os €780 para um T4.

Que apoios sobram?

Quem não está abrangido no PER é chamado a consultas integradas com a Segurança Social e a Câmara Municipal da Amadora e, muitas vezes, com a presença das embaixadas. Depois de as casas serem demolidas, são encaminhados para centros de pernoita, aos quais só podem aceder nos primeiros 15 dias. Terminado esse tempo, têm de ter uma solução habitacional. No caso de não estarem a trabalhar e não terem uma prova de salário, é difícil arranjarem um fiador. A Câmara argumenta que “não tem competência nem o direito de saber se alguma família deixa de celebrar um contrato de arrendamento por dificuldade em encontrar fiador. São assuntos da vida privada.” Só com o contrato é que a Segurança Social ajuda com o pagamento da caução e/ou da renda, no máximo até três meses. A Habita, uma organização sem fins lucrativos que tem lutado contra os despejos de pessoas sem alternativas, queixa-se que os apoios oferecidos pela Segurança Social são de curto prazo e não ajudam de facto estes cidadãos.

Enquanto o Governo não avançar com um novo programa de realojamento ou medidas alternativas, Suleimane, Eugénia, Amália ou José Maria (e muitos outros, de outros bairros) vivem com o peso do medo de perderam a casa depois de as retroescavadoras chegarem.

Texto publicado na edição do Expresso de 22/04/2017

Estão no Bairro 6 de Maio e não sabem o dia em que as retroescavadoras vão derrubar a casa onde moram (mas sabem que não falta muito tempo). A Câmara Municipal da Amadora disse-lhes que não têm direito a realojamento nem apoio financeiro para adquirir ou arrendar casa.

Suleimane Bamba é um dos que “não têm direito”. Serviu nas Forças Armadas portuguesas durante a guerra da independência da Guiné-Bissau. A bala que tem alojada na anca é uma prova. Está em Portugal desde 1987 e, tal como a grande maioria dos imigrantes de ex-colónias portuguesas, instalou-se num bairro precário, construído pelas próprias pessoas. As rendas elevadas no centro de Lisboa e a recusa por parte de alguns senhorios em arrendar um quarto ou um apartamento a negros com baixos níveis de instrução e qualificação profissional contribuíram para que, a partir da década de 70, terrenos junto a antigas estradas militares e outros locais nas periferias da Grande Lisboa se transformassem em áreas de residência de imigrantes. O Bairro 6 de Maio é o exemplo disso, habitado na maioria por cabo-verdianos.

Suleimane é dos poucos que não são de Cabo Verde: é guineense mas desde 1991 que também tem nacionalidade portuguesa. Com 73 anos, e com a família toda na Guiné, vê-se agora na situação de desalojado. “Para que é que jurei a bandeira se agora não tenho direito a nada?” A casa onde vive vai ser demolida e na Câmara Municipal da Amadora já lhe disseram que não tem direito a ser realojado, nem a receber dinheiro para arrendar uma habitação.

“As pessoas para terem um contrato de arrendamento com a autarquia ou beneficiarem de um programa habitacional têm que estar recenseadas no Programa Especial de Realojamento, não podem ter alternativa habitacional e têm que ter residido sempre no mesmo bairro”, esclarece ao Expresso a presidente da Câmara da Amadora, Carla Tavares. “Eu fui o primeiro a fazer o recenseamento, sempre vivi aqui. Fui à Guiné ao funeral da minha mãe e quando voltei a Câmara disse-me que não tenho direito.”

Segundo Suleimane, a Câmara da Amadora disse-lhe que estava fora do programa de realojamento por ter estado três meses na Guiné, aquando da morte da mãe, em 2001.

O Expresso pediu esclarecimentos no sentido de perceber as razões que levaram a que fosse excluído, mas a Câmara recusou-se a comentar casos concretos. Como Suleimane, existem mais 23 famílias do Bairro 6 de Maio que não estão no PER, revela a presidente da autarquia.

António Pedro Ferreira

Recenseamento tem 23 anos

O Programa Especial de Realojamento foi criado em 1993 pelo Governo com o objetivo de erradicar os bairros de barracas nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, realojando as pessoas em bairros sociais ou dando-lhes apoio financeiro para a construção, aquisição ou arrendamento de habitações. O problema é que muitas pessoas chegaram aos bairros depois de 1993, data em que foi feito o recenseamento dos agregados familiares para entrarem no PER. Da mesma forma, muitos morreram e outros nasceram nos bairros.

Durante estes 23 anos, o programa não foi revisto nem o recenseamento foi atualizado, daí que vários residentes fiquem de fora. O provedor de Justiça, José de Faria Costa, recomendou ao ministro do Ambiente, em setembro do ano passado, a revisão do PER “em prazo não superior a 180 dias”, considerando que se trata de “um instrumento manifestamente desatualizado”.

Este mês completaram-se seis meses desde a sua recomendação. Todos os partidos políticos aprovaram por unanimidade, no mês passado, uma recomendação ao Governo para que avance para um “novo programa nacional de realojamento que garanta o efetivo acesso ao direito à habitação”, o qual tenha atenção aos atuais moradores e salvaguarde uma solução habitacional alternativa ou apoio social. Mas até agora não se conhecem avanços além das recomendações.

A presidente da Câmara da Amadora admitiu em janeiro que vai prosseguir com a erradicação do Bairro 6 de Maio, mesmo depois de os deputados lhe terem pedido para suspender as demolições enquanto não se encontrar uma solução. Mas há quem ainda mantenha a fé. “Eu sei que Deus não nos vai deixar na rua”, pede Eugénia Ferreira a rezar para o céu. Vive com os netos de 14, 18 e 24 anos mas não sabe para onde vão quando a casa for abaixo.

No bairro há quase 21 anos, não estava em Portugal no ano do recenseamento. Familiares — além da filha que está detida — só tem uma irmã que também vive no bairro mas que vai ser realojada. Com 73 anos, e problemas de coração, os €400 de reforma têm que dar para comprar a medicação, pagar a luz e a renda, e ainda providenciar o sustento dos três netos. Não tem como alugar uma casa.

Amália está na mesma situação. A mulher cuja história apareceu nos jornais em fevereiro, por ameaça de despejo com uma neta recém-nascida, ainda permanece no bairro. Mas nada mudou: “Não tem direito”, é a resposta que a Câmara lhe dá. “A câmara quer tirar-nos daqui à força toda, não quer saber se temos sítio para ir”, queixa-se. Emigrou de Cabo Verde para Portugal em 2003 e ficou a viver na casa de uma prima que foi realojada. “Em 2007, a Câmara disse que me dava €14 mil e tal para uma casa, mas com a crise disseram-me que já não tinham dinheiro para me dar, só para os que estão no PER.” Está desempregada há seis meses, trabalhava como ajudante de cozinha e o patrão despediu-a ao recusar trabalhar à noite por causa dos filhos (um horário diferente do estipulado no contrato). É a pensão que o pai paga (€150) e os abonos do filho (€49) e da neta que os sustenta. “Até agora, visitei sete casas mas não consegui nenhuma.”

José Maria Varela também recebeu a mesma resposta da Câmara: “Não tem direito.” “Vim para o bairro em 1992 com 10 anos, foi quando conheci a minha mãe.” Viveu com ela até 2013, ano em que a casa foi demolida. A mãe recebeu dinheiro para arrendar uma habitação porque estava recenseada no PER mas, por motivos que José Maria diz desconhecer, ela não o recenseou. E sem o recenseamento não tem direito a ser realojado. Viu-se obrigado a ir viver com a irmã (fora do bairro) e mais tarde arrendou uma casa, mas ao ficar sem emprego e sem possibilidade de pagar a renda teve de voltar para o bairro.

“Estou numa casa que um amigo meu me arranjou, mas também vai abaixo a qualquer momento. E eu tenho dois bebés de 1 e 3 anos com problemas de saúde e não temos nenhum sítio para onde ir.” A mulher deixou de trabalhar para ficar a tomar conta das crianças, ambas com epilepsia, e José Maria arranjou um emprego recentemente. Recebe cerca de €600, a única fonte de rendimento para sustentar os quatro, comprar a medicação para os filhos e pagar as contas. Já andaram a procurar casa, mas o T1 mais barato que encontraram custa €350. De acordo com uma agência imobiliária a operar em Portugal, os valores médios das rendas dos apartamentos para arrendar no concelho da Amadora variam entre os €380 para um T1 e os €780 para um T4.

Que apoios sobram?

Quem não está abrangido no PER é chamado a consultas integradas com a Segurança Social e a Câmara Municipal da Amadora e, muitas vezes, com a presença das embaixadas. Depois de as casas serem demolidas, são encaminhados para centros de pernoita, aos quais só podem aceder nos primeiros 15 dias. Terminado esse tempo, têm de ter uma solução habitacional. No caso de não estarem a trabalhar e não terem uma prova de salário, é difícil arranjarem um fiador. A Câmara argumenta que “não tem competência nem o direito de saber se alguma família deixa de celebrar um contrato de arrendamento por dificuldade em encontrar fiador. São assuntos da vida privada.” Só com o contrato é que a Segurança Social ajuda com o pagamento da caução e/ou da renda, no máximo até três meses. A Habita, uma organização sem fins lucrativos que tem lutado contra os despejos de pessoas sem alternativas, queixa-se que os apoios oferecidos pela Segurança Social são de curto prazo e não ajudam de facto estes cidadãos.

Enquanto o Governo não avançar com um novo programa de realojamento ou medidas alternativas, Suleimane, Eugénia, Amália ou José Maria (e muitos outros, de outros bairros) vivem com o peso do medo de perderam a casa depois de as retroescavadoras chegarem.

Texto publicado na edição do Expresso de 22/04/2017

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