Caso Serralves. No reino da contradição

19-10-2018
marcar artigo

O nó continua atado. João Ribas, diretor demissionário do Museu de Serralves e o Conselho de Administração da Fundação, liderado por Ana Pinho, apresentaram - a expressão mais correta será, porventura, reafirmaram - versões diferentes, e em alguns pontos até contraditórias, na Assembleia da República. Ouvidos à vez na comissão parlamentar de Cultura, após terem sido entregues requerimentos pelos grupos parlamentares do PS e do Bloco de Esquerda, primeiro Ribas, depois Ana Pinho, que se fez acompanhar pelo restante conselho de administração [CA]; falaram de censura e do seu oposto, de prudência e falta dela, de tentações salomónicas de dar razões aos dois lados, de lealdade com e sem prefixo. Ribas disse que viveu uma situação insustentável; o CA definiu-se como perplexo com o diretor demissionário.

Falou-se ainda do papel de Serralves - “cosmopolita”, “ousado” - no panorama cultural do país e no mundo, principalmente na Europa; repetiu-se “liberty”, assim mesmo, em inglês; refletiu-se com mais ou menos adjetivos sobre o cariz da obra de Robert Mapplethorpe; discutiram-se as formas de aplicar sinaléticas em exposições - uma prática comum, usada por museus em todo o mundo até, por exemplo, se a as luzes da exposição ou instalação artística puder causar causar convulsões aos visitantes -; interpelou-se o trabalho de curadoria artística, e a lista não se finda nestes exemplos.

No meio do ruído - é verdade que os esclarecimentos nunca são ruído, mas hoje houve muitas abordagens que fugiam do ponto nevrálgico da discussão -, os deputados conseguiram ontem apurar se, afinal, houve ou não ingerência em Serralves? Está ou não em causa a continuidade - com a mesma força interpelativa e honestidade intelectual - deste baluarte da arte contemporânea em Portugal? Ora, a resposta é... Não vale a pena esperar sobre o final do texto, e aqui deixamos já um spoiler alert: não sabemos. Uma verdadeira “nuvem de contradições”, como lhe chamou Pacheco Pereira, que logo concluiu: “Temos vários documentos que mostram que essa nuvem não é nossa”.

Duas fotografias, um mistério Vamos por partes. Foi a segunda vez que João Ribas falou das razões que o levaram a demitir-se. Até aqui, apenas tinha reagido num comunicado enviado às redações na segunda-feira após a sua demissão, intitulado de “Verdade e Liberdade”, em que falou de “restrições e intervenções que criaram um ponto de rotura em termos de autonomia artística” e de ingerência da administração.

Desta vez, acentuou a tónica na censura: “Em bom latim censura é condenação ou reprovação de certas obras artísticas. Neste caso houve reprovação de duas obras, retiradas uma hora antes da conferência de imprensa e que não foi permitido serem expostas. São obras que não se permitiu que pudessem ser vistas pelo público - considero isso censura”, disse, depois de explicar que, durante a semana de montagens, foi forçado a redesenhar o circuito expositivo. “Estive até às 4 da manhã na noite anterior a montar a exposição dadas as exigências”, revelou, para depois sublinhar que, já estava a exposição “montada e finalizada”, quando chegou a imposição para serem retiradas duas imagens.

O CA rebateu, por todas as vezes, esta acusação . “A administração nunca pediu para ser retirada nenhuma obra da exposição em momento nenhum”, afirmou Ana Pinho, que iniciou quase todas as suas intervenções a realçar que censura era uma palavra que não cabia ao léxico de Serralves. “É um insulto tratar por censores Serralves (...). Não temos lições a receber nesta matéria”, afirmou logo numa declaração prévia que leu antes de responder às perguntas da comissão de inquérito.

Também Pacheco Pereira, que diz que esta é uma situação “injusta” para Serralves”, realçou que tal nunca tinha acontecido e registou a que a falta de coerência desta acusação. “É falso que foram retiradas duas obras, e as duas obras que foram referenciadas [Larry (1979) e Dennis Speight (1980)] como sendo retiradas são muito menos violentas do que as que estão expostas, por isso alguém me há-de explicar porque haveríamos de censurar estas mais pacíficas”, afirmou o administrador, que lá mais para a frente, revela que está verdadeiramente preocupado com “o abastardamento da palavra censura”, aqui usada para falar de “divergências”.

As versões da cronologia Durante a sua audição, João Ribas referiu a administração esteve nas montagens que começaram no dia 15 e que, no início da semana que antecedeu a exposição, logo na segunda-feira (17 de setembro), foi chamado pela “pela comissão executiva para construir um muro para separar partes da sala”, no dia 18 teve que refazer parte da exposição e que no dia seguinte - data em que os representantes da Fundação Mapplethorpe chegaram a Serralves - chegou a falar-se de cancelamento (aqui, João Ribas diz que não foi nem ele nem a administração a aventar esta hipótese). Finalmente, no dia 20, uma hora antes da inauguração, terá então chegado “gota de água”: a ordem de retirar as citadas obras, um momento ao qual que, diz, assistiram varias pessoas e terá inclusivamente sido capturado pelas câmaras de vigilância do local. Após isto, Ribas diz que, a pensar no público, preferiu fazer na mesma a visita guiada, abrir a exposição e só depois demitir-se.

Já o CA tem outra versão, mas admite que houve perda de confiança em Ribas - que dizem ter tido um comportamento “desleal” e que esse é um ponto essencial para toda esta história. A moeda virou na sexta-feira anterior, quando o ex-diretor e curador da exposição deu uma entrevista ao “Público” em que pulverizou tudo o que tinha acordado com a administração, inclusivamente sugestões que tinham sido da sua própria autoria. Segundo elencaram, foi o próprio João Ribas a sugerir uma “área reservada onde serão publicadas as obras mais polémicas, o que lhe quiserem chamar, e depois vai dizer a um jornal o contrário”. “Isto causou ao CA uma perda de confiança no diretor”, diz Ana Pinho que, depois da dita entrevista, resolve chamar João Ribas para perceber, afinal, o que se iria passar. “Na segunda-feira perguntamos e somos mais uma vez confrontados com explicações sem lógica [da parte de Ribas]”, diz, afirmando que o diretor demissionário usou expressões “os jornais sabe como é que são”, o que “acrescentou a nossa perplexidade”. “O que houve foi uma total contradição entre o que estava combinado e foi publicamente manifestado num jornal”, resume.

Já em relação ao cancelamento, Ana Pinho diz que o CA não “faz ideia” ao que Ribas se refere. Sobre a presença da administração na montagem da exposição, Ana Pinho revela que, nos quase nove anos que leva em Serralves, tal nunca tinha acontecido e que apenas o fizeram por convite de Ribas, posição secundada por Isabel Pires de Lima. “Essas idas à galeria a que o doutor João Ribas alude foram feitas a convite do senhor ex-diretor, não foram impostas pela administração. Fomos às galerias por convite dele, uma das vezes feito por email”, disse a ex-ministra da Cultura.

A administração não respondeu, no entanto, à deputada do PCP Ana Mesquita, que levantou questões sobre a atmosfera de trabalho em Serralves, aludindo a um alegado ambiente de opressão vivido na instituição e comparando, com um sorriso, as apertadas políticas de confidencialidade de uma casa onde, afinal, não se faz “espionagem industrial”.

E agora? Ouvidas as partes, ficam “duas posições muito distintas”, como notou o bloquista Jorge Campos. Também José Magalhães, deputado do Partido Socialista, resumiu que “em matéria de perplexidades há algumas que irão subsistir”.

O braço de ferro entre as partes está, no entanto, a macular Serralves - e, aqui, não se põe a velha máxima de que não há má publicidade. Há, está aqui. E quem perde são todos os que acreditam na arte como meio privilegiado para despertar consciências. “Esta questão veio de facto manchar o percurso que vinha sendo construído [em Serralves]”, afirmou a socialista Carla Sousa.

A administração diz que vai continuar a trabalhar para o sucesso do projeto Serralves. Já os próximos passos profissionais de João Ribas ainda não foram anunciados. A exposição de Mapplethorpe mantém-se até 6 de janeiro.

“Diria que a esta hora Mapplethorpe se está a rir em qualquer lado porque persiste o caráter contraditório da sua obra, até na Assembleia da República de Portugal”, atirou a deputada Ana Mesquita, durante a audição do diretor demissionário. A rir-se, estará. Esclarecido sobre o “caso Serralves” já é, passemos a redundância, menos claro.

O nó continua atado. João Ribas, diretor demissionário do Museu de Serralves e o Conselho de Administração da Fundação, liderado por Ana Pinho, apresentaram - a expressão mais correta será, porventura, reafirmaram - versões diferentes, e em alguns pontos até contraditórias, na Assembleia da República. Ouvidos à vez na comissão parlamentar de Cultura, após terem sido entregues requerimentos pelos grupos parlamentares do PS e do Bloco de Esquerda, primeiro Ribas, depois Ana Pinho, que se fez acompanhar pelo restante conselho de administração [CA]; falaram de censura e do seu oposto, de prudência e falta dela, de tentações salomónicas de dar razões aos dois lados, de lealdade com e sem prefixo. Ribas disse que viveu uma situação insustentável; o CA definiu-se como perplexo com o diretor demissionário.

Falou-se ainda do papel de Serralves - “cosmopolita”, “ousado” - no panorama cultural do país e no mundo, principalmente na Europa; repetiu-se “liberty”, assim mesmo, em inglês; refletiu-se com mais ou menos adjetivos sobre o cariz da obra de Robert Mapplethorpe; discutiram-se as formas de aplicar sinaléticas em exposições - uma prática comum, usada por museus em todo o mundo até, por exemplo, se a as luzes da exposição ou instalação artística puder causar causar convulsões aos visitantes -; interpelou-se o trabalho de curadoria artística, e a lista não se finda nestes exemplos.

No meio do ruído - é verdade que os esclarecimentos nunca são ruído, mas hoje houve muitas abordagens que fugiam do ponto nevrálgico da discussão -, os deputados conseguiram ontem apurar se, afinal, houve ou não ingerência em Serralves? Está ou não em causa a continuidade - com a mesma força interpelativa e honestidade intelectual - deste baluarte da arte contemporânea em Portugal? Ora, a resposta é... Não vale a pena esperar sobre o final do texto, e aqui deixamos já um spoiler alert: não sabemos. Uma verdadeira “nuvem de contradições”, como lhe chamou Pacheco Pereira, que logo concluiu: “Temos vários documentos que mostram que essa nuvem não é nossa”.

Duas fotografias, um mistério Vamos por partes. Foi a segunda vez que João Ribas falou das razões que o levaram a demitir-se. Até aqui, apenas tinha reagido num comunicado enviado às redações na segunda-feira após a sua demissão, intitulado de “Verdade e Liberdade”, em que falou de “restrições e intervenções que criaram um ponto de rotura em termos de autonomia artística” e de ingerência da administração.

Desta vez, acentuou a tónica na censura: “Em bom latim censura é condenação ou reprovação de certas obras artísticas. Neste caso houve reprovação de duas obras, retiradas uma hora antes da conferência de imprensa e que não foi permitido serem expostas. São obras que não se permitiu que pudessem ser vistas pelo público - considero isso censura”, disse, depois de explicar que, durante a semana de montagens, foi forçado a redesenhar o circuito expositivo. “Estive até às 4 da manhã na noite anterior a montar a exposição dadas as exigências”, revelou, para depois sublinhar que, já estava a exposição “montada e finalizada”, quando chegou a imposição para serem retiradas duas imagens.

O CA rebateu, por todas as vezes, esta acusação . “A administração nunca pediu para ser retirada nenhuma obra da exposição em momento nenhum”, afirmou Ana Pinho, que iniciou quase todas as suas intervenções a realçar que censura era uma palavra que não cabia ao léxico de Serralves. “É um insulto tratar por censores Serralves (...). Não temos lições a receber nesta matéria”, afirmou logo numa declaração prévia que leu antes de responder às perguntas da comissão de inquérito.

Também Pacheco Pereira, que diz que esta é uma situação “injusta” para Serralves”, realçou que tal nunca tinha acontecido e registou a que a falta de coerência desta acusação. “É falso que foram retiradas duas obras, e as duas obras que foram referenciadas [Larry (1979) e Dennis Speight (1980)] como sendo retiradas são muito menos violentas do que as que estão expostas, por isso alguém me há-de explicar porque haveríamos de censurar estas mais pacíficas”, afirmou o administrador, que lá mais para a frente, revela que está verdadeiramente preocupado com “o abastardamento da palavra censura”, aqui usada para falar de “divergências”.

As versões da cronologia Durante a sua audição, João Ribas referiu a administração esteve nas montagens que começaram no dia 15 e que, no início da semana que antecedeu a exposição, logo na segunda-feira (17 de setembro), foi chamado pela “pela comissão executiva para construir um muro para separar partes da sala”, no dia 18 teve que refazer parte da exposição e que no dia seguinte - data em que os representantes da Fundação Mapplethorpe chegaram a Serralves - chegou a falar-se de cancelamento (aqui, João Ribas diz que não foi nem ele nem a administração a aventar esta hipótese). Finalmente, no dia 20, uma hora antes da inauguração, terá então chegado “gota de água”: a ordem de retirar as citadas obras, um momento ao qual que, diz, assistiram varias pessoas e terá inclusivamente sido capturado pelas câmaras de vigilância do local. Após isto, Ribas diz que, a pensar no público, preferiu fazer na mesma a visita guiada, abrir a exposição e só depois demitir-se.

Já o CA tem outra versão, mas admite que houve perda de confiança em Ribas - que dizem ter tido um comportamento “desleal” e que esse é um ponto essencial para toda esta história. A moeda virou na sexta-feira anterior, quando o ex-diretor e curador da exposição deu uma entrevista ao “Público” em que pulverizou tudo o que tinha acordado com a administração, inclusivamente sugestões que tinham sido da sua própria autoria. Segundo elencaram, foi o próprio João Ribas a sugerir uma “área reservada onde serão publicadas as obras mais polémicas, o que lhe quiserem chamar, e depois vai dizer a um jornal o contrário”. “Isto causou ao CA uma perda de confiança no diretor”, diz Ana Pinho que, depois da dita entrevista, resolve chamar João Ribas para perceber, afinal, o que se iria passar. “Na segunda-feira perguntamos e somos mais uma vez confrontados com explicações sem lógica [da parte de Ribas]”, diz, afirmando que o diretor demissionário usou expressões “os jornais sabe como é que são”, o que “acrescentou a nossa perplexidade”. “O que houve foi uma total contradição entre o que estava combinado e foi publicamente manifestado num jornal”, resume.

Já em relação ao cancelamento, Ana Pinho diz que o CA não “faz ideia” ao que Ribas se refere. Sobre a presença da administração na montagem da exposição, Ana Pinho revela que, nos quase nove anos que leva em Serralves, tal nunca tinha acontecido e que apenas o fizeram por convite de Ribas, posição secundada por Isabel Pires de Lima. “Essas idas à galeria a que o doutor João Ribas alude foram feitas a convite do senhor ex-diretor, não foram impostas pela administração. Fomos às galerias por convite dele, uma das vezes feito por email”, disse a ex-ministra da Cultura.

A administração não respondeu, no entanto, à deputada do PCP Ana Mesquita, que levantou questões sobre a atmosfera de trabalho em Serralves, aludindo a um alegado ambiente de opressão vivido na instituição e comparando, com um sorriso, as apertadas políticas de confidencialidade de uma casa onde, afinal, não se faz “espionagem industrial”.

E agora? Ouvidas as partes, ficam “duas posições muito distintas”, como notou o bloquista Jorge Campos. Também José Magalhães, deputado do Partido Socialista, resumiu que “em matéria de perplexidades há algumas que irão subsistir”.

O braço de ferro entre as partes está, no entanto, a macular Serralves - e, aqui, não se põe a velha máxima de que não há má publicidade. Há, está aqui. E quem perde são todos os que acreditam na arte como meio privilegiado para despertar consciências. “Esta questão veio de facto manchar o percurso que vinha sendo construído [em Serralves]”, afirmou a socialista Carla Sousa.

A administração diz que vai continuar a trabalhar para o sucesso do projeto Serralves. Já os próximos passos profissionais de João Ribas ainda não foram anunciados. A exposição de Mapplethorpe mantém-se até 6 de janeiro.

“Diria que a esta hora Mapplethorpe se está a rir em qualquer lado porque persiste o caráter contraditório da sua obra, até na Assembleia da República de Portugal”, atirou a deputada Ana Mesquita, durante a audição do diretor demissionário. A rir-se, estará. Esclarecido sobre o “caso Serralves” já é, passemos a redundância, menos claro.

marcar artigo