No debate de seis contra seis, Costa pôs-se no centro do sistema

30-09-2019
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O debate nas rádios entre os seis líderes dos partidos com representação parlamentar podia ter redundado num confronto de cinco contra um - António Costa é o incumbente, poderia ter polarizado todas as críticas, vindas da esquerda e da direita. Podia ter sido assim, mas não foi. Foram duas horas de fogo cruzado, em que Costa foi praticamente tão visado como Rui Rio, pelo meio de ataques de todos contra todos.

Costa acabou por não ser o alvo central de qualquer animosidade, e optou também por não a provocar. Literalmente ao centro (estava na cadeira do meio, com os contendores dispostos em semi-círculo), o secretário-geral do PS colocou-se também politicamente ao centro, assumindo nas rádios o papel que quer assumir no país: o partido-charneira, que representa a moderação, o centrismo e a capacidade de estabelecer diálogos com um lado e com o outro. Apresentou-se pedagógico, explicando as medidas do Governo para desviar ataques concretos, às vezes denotou enfado (como quando respondeu a questões sobre a reforma do sistema político, apesar de considerar que não é uma prioridade - “Estou aqui para responder ao que me perguntam”...), e só engatilhou em verdadeiro confronto com um dos rivais, Assunção Cristas - nem mais nem menos, a líder do único partido com quem não haverá probabilidade de vir a trabalhar na próxima legislatura, se lhe faltar a maioria absoluta.

Costa aguentou sem ripostar as ferroadas de Catarina Martins, trocou argumentos com André Silva, contestou com bonomia algumas ideias de Rui Rio (sobretudo, o seu conteúdo vago), trocou amenidades com Jerónimo de Sousa - aliás, Jerónimo de Sousa parecia ali estar para trocar amenidades várias com toda a gente, limitando-se a pouco mais do que os serviços mínimos na defesa das posições do PCP.

Esquerda vs direita na Segurança Social

Os moderadores das três rádios (Renascença, Antena 1 e TSF) organizaram o debate em três partes, que corresponderam a três grandes temas (mais uma parte final, com variedades): Segurança Social, reforma do sistema político e Justiça e corrupção. Não coincidem com os temas considerados mais importantes nos estudos de opinião (o último barómetro do Expresso, só a corrupção estava no topo das preocupações, acompanhada da saúde, do emprego e da economia), mas são assuntos em que poderiam sobressair as diferenças. Por coincidência, são também as três áreas que Rui Rio tem identificado como aquelas em que mais são necessárias grandes reformas estruturais.

A Segurança Social foi o tema em que as divergências esquerda/direita ficaram mais claras. Com a esquerda a apontar o trabalho dos últimos quatro anos como sendo decisivo para a sustentabilidade do sistema nas próximas décadas, e a recusar ideias de plafonamento ou outras alterações de fundo como defendem a direita e o PAN.

Rui Rio, que tem levantado a bandeira da reforma da Segurança Social, reiterou essa “obrigação” de se fazerem os “ajustamentos possíveis” e ”necessários”. Defendeu que as fontes de financiamento da Previdência têm de ser diversificadas, para não “repousar exclusivamente sobre o fator trabalho”, puxando pela proposta do PSD para taxar o “valor acrescentado das empresas”. Foi a única ideia concreta que adiantou, traçando um registo que repetiria várias vezes: declarações ambiciosas sobre grandes reformas, mas sem detalhe, nem pormenor sobre o que propõe, e até admitindo soluções diferentes daquelas de que tem falado. Por exemplo, apesar de não assumir o plafonamento dos descontos, admitiu ir por aí. “Não estou a dizer que numa reforma que se venha fazer não se possa plafonar”, é um “modelo que também pode estar em cima da mesa”, concedeu, embora ressalvando que não é essa a sua ideia.

Costa haveria de aproveitar essa tática vaga de Rio para o atacar noutra parte do debate. Mas quando se debatia a Segurança Social optou por puxar os galões ao trabalho desta legislatura: explicou que a diversificação de receitas proposta pelo PSD já foi feita, e que graças ao crescimento da economia, do emprego e das remunerações, a sustentabilidade do sistema está garantida por mais “22 anos”, graças ao dinheiro que entrou no fundo de estabilização financeira da Segurança Social.

“A calamidade de 10 milhões de desempregados”

Rio foi ao despique: “A sustentabilidade que António Costa diz não está garantida”, por causa do envelhecimento demográfico. “O fundo aguenta dois anos”, e não 22, disparou. “Dois anos, se ninguém contribuísse nada”, ripostou Costa, notando que ninguém prevê “essa calamidade de termos dez milhões de desempregados” que Rio estava a pôr em cima da mesa.

Cristas não entrou pelo cenário apocalítico de Rio, mas insistiu na necessidade de garantir, mais do que o sistema, o valor das pensões - o caminho para evitar que a reforma signifique uma grande quebra de rendimento, diz a líder do CDS, passa por sistemas complementares de poupança, nomeadamente um sistema complementar público opcional.

O argumento de que o sistema ficou “mais robusto” com a 'geringonça' foi reforçado pelos líderes do BE e do PCP, e Catarina Martins concentrou a sua atenção da proposta “de direita” que tem sido avançada pelo PAN: estabelecer um teto para as pensões que são pagas pela Previdência. Ora, lembrou Catarina, não se pode cortar na pensão sem cortar na contribuição que é paga enquanto o trabalhador está no ativo - isso significa plafonamento. E quem ganha mais passa a descontar menos para o sistema público, e com isso quem perde são os mais pobres, porque descapitaliza a Segurança Social. “Há ideias aqui que são perigosas”, denunciou Catarina.

André Silva jurou que não, que não é de plafonamento que fala - a sua ideia é manter os níveis de descontos mais altos, mas cortar na pensão que depois lhes é paga. Só não explicou como conseguirá essa quadratura do círculo.

Jerónimo encolheu os ombros. “Não estamos aqui perante grandes novidades”, esta proposta “tem sido recorrente”, “sempre com o mesmo objetivo que é a privatização de segmentos da Segurança Social”. Para o líder comunista, quem o propõe, como o PAN, “não está a pensar naqueles que vão ter reformas muito altas, mas na contribuição que esse trabalhador dá à Segurança Social, com a ideia de retirar esses descontos mais altos para fazer uma Segurança Social de pobrezinhos”.

O líder do PAN insistiu que a sua proposta não era a da direita. “Parece mesmo a ideia da direita”, contrapôs Catarina Martins… Num debate em que o PAN nunca esteve nas suas zonas de conforto da ecologia e animalismo, André Silva teve bastantes mais dificuldades, tendo, muitas vezes de ler em direto passagens do programa do seu partido, para exasperação dos moderadores. Ao ponto de, a dado passo, ter levado uma canelada de Cristas: “Não vou ler o meu programa porque o conheço de cor”.

A reforma do sistema político como “conversa de café”

Se André Silva se agarrava ao texto do seu programa para enumerar medidas concretas, Rio fazia sempre o contrário: não lia, mas também não concretizava. Voltou a ser assim na reforma do sistema político, outra das suas grandes bandeiras que ocupou boa parte do tempo deste debate. Curiosamente, só Rio e André Silva empolaram a importância dessa eventual reforma, enquanto os outros líderes - sobretudo Costa e Cristas - avisavam que as grandes preocupações dos portugueses são outras.

Rio, que neste assunto estava particularmente em casa, fez as honras. Apresentou todo um argumentário para uma reforma do sistema político, considerando que a “forma como os partidos funcionam, a começar pelo meu, não é credibilizadora para a democracia”. “Temos de ser criativos, inventar”. Falou de hipóteses - criar círculos mais reduzidos, fazer um sistema misto tipo alemão - mas apesar do entusiasmo com que expôs o seu caso, Rio não respondeu à pergunta que lhe fizeram: de que forma reduzir o número de deputados, como o PSD defende, aproxima mais os eleitos dos eleitores? Não explicou, perdendo-se em considerações sobre haver “margem para reduzir” o número de deputados.

“As reformas não se discutem em abstrato, discutem-se em concreto”, disparou Costa. “Não podemos tratar de temas institucionais como se estivessemos numa conversa de café”. O líder socialista avisou logo: “Se a reforma do sistema político para o PSD é reduzir o número de deputados, não estou disponível, porque não conheço vantagens. E fez uma comparação: os três deputados de Évora não estão mais próximos dos eleitores do que os oito deputados de Viseu. A reforma de Rio, acusou, “só tem um único efeito, é reduzir a proporcionalidade”.

Rio não sabe se as suas propostas são as melhores

O líder do PSD garantiu que não quer distorcer a proporcionalidade, que “é fácil” garantir a proporcionalidade matematicamente, mas todos os outros partidos lhe fizeram a mesma acusação. “Não há nenhum estudo científico que diga que círculos uninominais aproximam os representantes dos cidadãos”, avisou André Silva, propondo o contrário da ideia do PSD: em vez de menos deputados eleitos por círculos mais pequenos, fazer círculos maiores (nove, em vez dos atuais 22), para que deixe de haver tantos votos “desperdiçados” que não elegem ninguém nas circunscrições pequenas.

Sob fogo de diversas frentes, Rio ensaiou uma espécie de recuo. Desmentiu que a reforma do sistema político seja uma “das principais bandeiras” da sua campanha, mas reconheceu que sente “a obrigação de fazer alguma coisa para que isto acabe”. Seja com estas propostas, seja com outras. “Se as propostas que eu faço são as melhores ou não são as melhores, eu não sei”, declarou, num insólito reconhecimento em direto e à frente dos adversários.

“Estamos com o foco errado”, protestou Cristas. “Nenhuma destas questões resolve estruturalmente os problemas do país. Há mais vida para além do estado, do sistema eleitoral e político”, avisou. Mas deixou uma farpa para Rio ( “Percebo que quem tem um grupo parlamentar de 89 deputados, ache que tem deputados de sobra”) e um desejo ao bloco central: “Quando se reunirem condições [para o debate sobre o sistema político], espero que não seja entre PS e PSD”. Costa sossegou-a e garantiu que esse não será um debate a dois.

Também Catarina corrigiu o foco. A questão, disse, não é de engenharia eleitoral, mas de ética e atitude: garantir mais transparência e exclusividade na representação e um período de nojo maior para quem sai da política e quer entrar nas empresas. “O grande problema”, denunciou, “é que as pessoas não se sentem representadas”, pois os “partidos maioritários estão em boa medida cooptados pelo poder económico”.

Foi a deixa para Rio fazer uma vigorosa defesa da honra. “Eu feito com os interesses de poder económico? Nem com o poder económico nem com poder nenhum. Se há coisa que me atacam é enfrentar os poderes instalados. É das principais coisas que me move.” Catarina não lhe deu troco.

O plano de Costa para três legislaturas

Desta parte do debate ficou ainda uma ideia concreta de António Costa para rever os salários dos políticos. Todos os líderes foram questionados sobre se os políticos ganham pouco, e nenhum admitiu que sim - cada um fugiu ao tema conforme pôde.

O secretário-geral do PS apontou para um problema de contexto: num país onde os salários são baixos, os políticos não se podem preocupar com o que ganham antes de subir o rendimento dos outros cidadãos. “Caso contrário, corremos o risco de aumentar a fratura entre o sistema político e os cidadãos”.

Embora sem dizer preto-no-branco que é preciso pagar mais aos políticos, apresentou um plano para que os salários sejam revistos a médio prazo, num processo ao longo de três legislaturas. Na primeira, cria-se uma comissão de vencimentos dos políticos, como há nas empresas privadas, para que não sejam os beneficiários a decidir sobre os seus ordenados. Na legislatura seguinte, essa comissão define os níveis salariais. Na terceira legislatura, esse vencimentos entram em vigor. “Tem a vantagem de já não ser para mim”, rematou. Ninguém apoiou nem contestou.

Costa vs Cristas e quem dá lições a quem

A terceira parte do debate foi sobre Justiça e corrupção que, a julgar pelas declarações dos seis líderes, é questão prioritária para todos os partidos. A questão é como.

Houve quem apostasse sobretudo em alterações legislativas - o PAN bateu-se por uma espécie de delação premiada, beneficiando também quem praticou crimes, o que por momentos fez de André Silva o saco de pancada do debate; PCP e BE insistem na criminalização da riqueza injustificada dos decisores públicos -, mas Assunção Cristas pôs o foco na necessidade de mais meios. “E que meios é que foram dados no seu Governo?”, questionou Costa. “Bem mais do que no seu”, respondeu Cristas. “Não é verdade”, ripostou o PM.

Foi um dos momentos mais tensos do debate, com Cristas a questionar-se por que razão o Governo decidiu só agora, ao fim de quatro anos, questões tão importantes como a nova legislação do Ministério Público ou da Polícia Judiciária. Costa, que se irrita com Cristas como não se irrita com mais ninguém, reagiu duramente. “Tem alguma coisa de concreto a acusar? Insinuações não.” Cristas tinha a apontar-lhe a “inação durante quatro anos”, que segundo algumas críticas pôs em causa “Estado de Direito democrático”. “Bem sei que é professora, mas nessa matéria não me dá lições”, disparou de rajada o primeiro-ministro.

Também houve desacordo sobre a criação de tribunais especializados proposta pelo PAN. Cristas rotulou essa como uma proposta de “regimes autoritários” e Costa admitiu a formação especializada para quem lida com violência doméstica, mas não tribunais especializados.

Rio quer penas mais graves para jornalistas

Mas a Justiça, convém lembrar, é o tema-fetiche de Rui Rio. À pergunta sobre como resolverá o problema da corrupção, respondeu: “Eu resolvo o problema da corrupção em Portugal fazendo os julgamentos no sitio certo, que são os tribunais. Não defendo o combate à corrupção nas páginas dos jornais ou nas televisões”. Depois, acrescentou, “compete-nos dar ao Ministério Público e à Polícia Judiciária os instrumentos necessários para que façam melhor o trabalho.” Uma crítica ao Governo? Não: rapidamente Rio voltou ao ataque que lhe interessa: “Mas depois têm de fazer o trabalho, não andar a noticiar nos jornais”.

A reforma da Justiça, com Rio, acaba sempre nos ataques ao MP, aos tribunais e à comunicação social, e mais uma vez não foi excepção. E defendeu mão pesada para os jornalistas, quando divulguem informação em segredo de Justiça. “Esse crime tem de ser aplicado a todos os portugueses, não pode ser uma lei que serve para uns e não para outros. Se eu violo o segredo de justiça e mostrar a uma ou duas pessoas, é um crime, se eu mostrar a dez milhões de portugueses, o crime é dez milhões de vezes maior” - ou seja, na lógica de Rio a publicação de informação seria tratada como um crime mais grave do que o ato de acesso indevido a informação em segredo de Justiça ou a sua transmissão à comunicação social. E o conceito de interesse público - com que a jurisprudência nacional e internacional normalmente matiza as violações do segredo de jusitça - não existe para Rio neste caso.

“Tenho consciência clara de que o que estou dizer não é minimamente politicamente correto”, disse Rio, frisando o que gosta que seja a sua imagem. “Agora podem-me atacar todos.”

Ninguém o atacou. Em vez disso, Catarina Martins fez a defesa da liberdade de imprensa como pilar da democracia. “É preciso muito cuidado com propostas que parecem simples, mas são demagógicas e perigosas para democracia. (...) Limitar a liberdade da imprensa, perseguir jornalistas para resolver um problema do Ministério Público é atacar a democracia. Isso não podemos permitir, porque não há democracia sem imprensa livre e também dependemos do trabalho da comunicação social para combater a corrupção”. Nenhum dos argumentos dissuadiu Rio.

Peixe, carne e canábis

Na última ronda de perguntas, rápidas, sobre temas variados, ficou a saber-se que António Costa manda servir peixe nos jantares oficiais na residência do primeiro-ministro, que Rui Rio não aprova a liberalização do uso recreativo de canábis (apesar dessa proposta ser defendida pelo seu porta-voz para a saúde), que Jerónimo de Sousa não quer touradas sem animais, porque “o respeito pela cultura e entidade do povo deve prevalecer”, que Assunção Cristas discorda do voto aos 16 anos e que Catarina Martins não se impressiona com o facto da Universidade de Coimbra deixar de servir carne nas suas cantinas - afinal, a líder bloquista estudou em Coimbra e recorda-se que já então “a carne de vaca não fazia parte do menu social”.

Todos sorriram e saíram todos com ar de missão cumprida.

O debate nas rádios entre os seis líderes dos partidos com representação parlamentar podia ter redundado num confronto de cinco contra um - António Costa é o incumbente, poderia ter polarizado todas as críticas, vindas da esquerda e da direita. Podia ter sido assim, mas não foi. Foram duas horas de fogo cruzado, em que Costa foi praticamente tão visado como Rui Rio, pelo meio de ataques de todos contra todos.

Costa acabou por não ser o alvo central de qualquer animosidade, e optou também por não a provocar. Literalmente ao centro (estava na cadeira do meio, com os contendores dispostos em semi-círculo), o secretário-geral do PS colocou-se também politicamente ao centro, assumindo nas rádios o papel que quer assumir no país: o partido-charneira, que representa a moderação, o centrismo e a capacidade de estabelecer diálogos com um lado e com o outro. Apresentou-se pedagógico, explicando as medidas do Governo para desviar ataques concretos, às vezes denotou enfado (como quando respondeu a questões sobre a reforma do sistema político, apesar de considerar que não é uma prioridade - “Estou aqui para responder ao que me perguntam”...), e só engatilhou em verdadeiro confronto com um dos rivais, Assunção Cristas - nem mais nem menos, a líder do único partido com quem não haverá probabilidade de vir a trabalhar na próxima legislatura, se lhe faltar a maioria absoluta.

Costa aguentou sem ripostar as ferroadas de Catarina Martins, trocou argumentos com André Silva, contestou com bonomia algumas ideias de Rui Rio (sobretudo, o seu conteúdo vago), trocou amenidades com Jerónimo de Sousa - aliás, Jerónimo de Sousa parecia ali estar para trocar amenidades várias com toda a gente, limitando-se a pouco mais do que os serviços mínimos na defesa das posições do PCP.

Esquerda vs direita na Segurança Social

Os moderadores das três rádios (Renascença, Antena 1 e TSF) organizaram o debate em três partes, que corresponderam a três grandes temas (mais uma parte final, com variedades): Segurança Social, reforma do sistema político e Justiça e corrupção. Não coincidem com os temas considerados mais importantes nos estudos de opinião (o último barómetro do Expresso, só a corrupção estava no topo das preocupações, acompanhada da saúde, do emprego e da economia), mas são assuntos em que poderiam sobressair as diferenças. Por coincidência, são também as três áreas que Rui Rio tem identificado como aquelas em que mais são necessárias grandes reformas estruturais.

A Segurança Social foi o tema em que as divergências esquerda/direita ficaram mais claras. Com a esquerda a apontar o trabalho dos últimos quatro anos como sendo decisivo para a sustentabilidade do sistema nas próximas décadas, e a recusar ideias de plafonamento ou outras alterações de fundo como defendem a direita e o PAN.

Rui Rio, que tem levantado a bandeira da reforma da Segurança Social, reiterou essa “obrigação” de se fazerem os “ajustamentos possíveis” e ”necessários”. Defendeu que as fontes de financiamento da Previdência têm de ser diversificadas, para não “repousar exclusivamente sobre o fator trabalho”, puxando pela proposta do PSD para taxar o “valor acrescentado das empresas”. Foi a única ideia concreta que adiantou, traçando um registo que repetiria várias vezes: declarações ambiciosas sobre grandes reformas, mas sem detalhe, nem pormenor sobre o que propõe, e até admitindo soluções diferentes daquelas de que tem falado. Por exemplo, apesar de não assumir o plafonamento dos descontos, admitiu ir por aí. “Não estou a dizer que numa reforma que se venha fazer não se possa plafonar”, é um “modelo que também pode estar em cima da mesa”, concedeu, embora ressalvando que não é essa a sua ideia.

Costa haveria de aproveitar essa tática vaga de Rio para o atacar noutra parte do debate. Mas quando se debatia a Segurança Social optou por puxar os galões ao trabalho desta legislatura: explicou que a diversificação de receitas proposta pelo PSD já foi feita, e que graças ao crescimento da economia, do emprego e das remunerações, a sustentabilidade do sistema está garantida por mais “22 anos”, graças ao dinheiro que entrou no fundo de estabilização financeira da Segurança Social.

“A calamidade de 10 milhões de desempregados”

Rio foi ao despique: “A sustentabilidade que António Costa diz não está garantida”, por causa do envelhecimento demográfico. “O fundo aguenta dois anos”, e não 22, disparou. “Dois anos, se ninguém contribuísse nada”, ripostou Costa, notando que ninguém prevê “essa calamidade de termos dez milhões de desempregados” que Rio estava a pôr em cima da mesa.

Cristas não entrou pelo cenário apocalítico de Rio, mas insistiu na necessidade de garantir, mais do que o sistema, o valor das pensões - o caminho para evitar que a reforma signifique uma grande quebra de rendimento, diz a líder do CDS, passa por sistemas complementares de poupança, nomeadamente um sistema complementar público opcional.

O argumento de que o sistema ficou “mais robusto” com a 'geringonça' foi reforçado pelos líderes do BE e do PCP, e Catarina Martins concentrou a sua atenção da proposta “de direita” que tem sido avançada pelo PAN: estabelecer um teto para as pensões que são pagas pela Previdência. Ora, lembrou Catarina, não se pode cortar na pensão sem cortar na contribuição que é paga enquanto o trabalhador está no ativo - isso significa plafonamento. E quem ganha mais passa a descontar menos para o sistema público, e com isso quem perde são os mais pobres, porque descapitaliza a Segurança Social. “Há ideias aqui que são perigosas”, denunciou Catarina.

André Silva jurou que não, que não é de plafonamento que fala - a sua ideia é manter os níveis de descontos mais altos, mas cortar na pensão que depois lhes é paga. Só não explicou como conseguirá essa quadratura do círculo.

Jerónimo encolheu os ombros. “Não estamos aqui perante grandes novidades”, esta proposta “tem sido recorrente”, “sempre com o mesmo objetivo que é a privatização de segmentos da Segurança Social”. Para o líder comunista, quem o propõe, como o PAN, “não está a pensar naqueles que vão ter reformas muito altas, mas na contribuição que esse trabalhador dá à Segurança Social, com a ideia de retirar esses descontos mais altos para fazer uma Segurança Social de pobrezinhos”.

O líder do PAN insistiu que a sua proposta não era a da direita. “Parece mesmo a ideia da direita”, contrapôs Catarina Martins… Num debate em que o PAN nunca esteve nas suas zonas de conforto da ecologia e animalismo, André Silva teve bastantes mais dificuldades, tendo, muitas vezes de ler em direto passagens do programa do seu partido, para exasperação dos moderadores. Ao ponto de, a dado passo, ter levado uma canelada de Cristas: “Não vou ler o meu programa porque o conheço de cor”.

A reforma do sistema político como “conversa de café”

Se André Silva se agarrava ao texto do seu programa para enumerar medidas concretas, Rio fazia sempre o contrário: não lia, mas também não concretizava. Voltou a ser assim na reforma do sistema político, outra das suas grandes bandeiras que ocupou boa parte do tempo deste debate. Curiosamente, só Rio e André Silva empolaram a importância dessa eventual reforma, enquanto os outros líderes - sobretudo Costa e Cristas - avisavam que as grandes preocupações dos portugueses são outras.

Rio, que neste assunto estava particularmente em casa, fez as honras. Apresentou todo um argumentário para uma reforma do sistema político, considerando que a “forma como os partidos funcionam, a começar pelo meu, não é credibilizadora para a democracia”. “Temos de ser criativos, inventar”. Falou de hipóteses - criar círculos mais reduzidos, fazer um sistema misto tipo alemão - mas apesar do entusiasmo com que expôs o seu caso, Rio não respondeu à pergunta que lhe fizeram: de que forma reduzir o número de deputados, como o PSD defende, aproxima mais os eleitos dos eleitores? Não explicou, perdendo-se em considerações sobre haver “margem para reduzir” o número de deputados.

“As reformas não se discutem em abstrato, discutem-se em concreto”, disparou Costa. “Não podemos tratar de temas institucionais como se estivessemos numa conversa de café”. O líder socialista avisou logo: “Se a reforma do sistema político para o PSD é reduzir o número de deputados, não estou disponível, porque não conheço vantagens. E fez uma comparação: os três deputados de Évora não estão mais próximos dos eleitores do que os oito deputados de Viseu. A reforma de Rio, acusou, “só tem um único efeito, é reduzir a proporcionalidade”.

Rio não sabe se as suas propostas são as melhores

O líder do PSD garantiu que não quer distorcer a proporcionalidade, que “é fácil” garantir a proporcionalidade matematicamente, mas todos os outros partidos lhe fizeram a mesma acusação. “Não há nenhum estudo científico que diga que círculos uninominais aproximam os representantes dos cidadãos”, avisou André Silva, propondo o contrário da ideia do PSD: em vez de menos deputados eleitos por círculos mais pequenos, fazer círculos maiores (nove, em vez dos atuais 22), para que deixe de haver tantos votos “desperdiçados” que não elegem ninguém nas circunscrições pequenas.

Sob fogo de diversas frentes, Rio ensaiou uma espécie de recuo. Desmentiu que a reforma do sistema político seja uma “das principais bandeiras” da sua campanha, mas reconheceu que sente “a obrigação de fazer alguma coisa para que isto acabe”. Seja com estas propostas, seja com outras. “Se as propostas que eu faço são as melhores ou não são as melhores, eu não sei”, declarou, num insólito reconhecimento em direto e à frente dos adversários.

“Estamos com o foco errado”, protestou Cristas. “Nenhuma destas questões resolve estruturalmente os problemas do país. Há mais vida para além do estado, do sistema eleitoral e político”, avisou. Mas deixou uma farpa para Rio ( “Percebo que quem tem um grupo parlamentar de 89 deputados, ache que tem deputados de sobra”) e um desejo ao bloco central: “Quando se reunirem condições [para o debate sobre o sistema político], espero que não seja entre PS e PSD”. Costa sossegou-a e garantiu que esse não será um debate a dois.

Também Catarina corrigiu o foco. A questão, disse, não é de engenharia eleitoral, mas de ética e atitude: garantir mais transparência e exclusividade na representação e um período de nojo maior para quem sai da política e quer entrar nas empresas. “O grande problema”, denunciou, “é que as pessoas não se sentem representadas”, pois os “partidos maioritários estão em boa medida cooptados pelo poder económico”.

Foi a deixa para Rio fazer uma vigorosa defesa da honra. “Eu feito com os interesses de poder económico? Nem com o poder económico nem com poder nenhum. Se há coisa que me atacam é enfrentar os poderes instalados. É das principais coisas que me move.” Catarina não lhe deu troco.

O plano de Costa para três legislaturas

Desta parte do debate ficou ainda uma ideia concreta de António Costa para rever os salários dos políticos. Todos os líderes foram questionados sobre se os políticos ganham pouco, e nenhum admitiu que sim - cada um fugiu ao tema conforme pôde.

O secretário-geral do PS apontou para um problema de contexto: num país onde os salários são baixos, os políticos não se podem preocupar com o que ganham antes de subir o rendimento dos outros cidadãos. “Caso contrário, corremos o risco de aumentar a fratura entre o sistema político e os cidadãos”.

Embora sem dizer preto-no-branco que é preciso pagar mais aos políticos, apresentou um plano para que os salários sejam revistos a médio prazo, num processo ao longo de três legislaturas. Na primeira, cria-se uma comissão de vencimentos dos políticos, como há nas empresas privadas, para que não sejam os beneficiários a decidir sobre os seus ordenados. Na legislatura seguinte, essa comissão define os níveis salariais. Na terceira legislatura, esse vencimentos entram em vigor. “Tem a vantagem de já não ser para mim”, rematou. Ninguém apoiou nem contestou.

Costa vs Cristas e quem dá lições a quem

A terceira parte do debate foi sobre Justiça e corrupção que, a julgar pelas declarações dos seis líderes, é questão prioritária para todos os partidos. A questão é como.

Houve quem apostasse sobretudo em alterações legislativas - o PAN bateu-se por uma espécie de delação premiada, beneficiando também quem praticou crimes, o que por momentos fez de André Silva o saco de pancada do debate; PCP e BE insistem na criminalização da riqueza injustificada dos decisores públicos -, mas Assunção Cristas pôs o foco na necessidade de mais meios. “E que meios é que foram dados no seu Governo?”, questionou Costa. “Bem mais do que no seu”, respondeu Cristas. “Não é verdade”, ripostou o PM.

Foi um dos momentos mais tensos do debate, com Cristas a questionar-se por que razão o Governo decidiu só agora, ao fim de quatro anos, questões tão importantes como a nova legislação do Ministério Público ou da Polícia Judiciária. Costa, que se irrita com Cristas como não se irrita com mais ninguém, reagiu duramente. “Tem alguma coisa de concreto a acusar? Insinuações não.” Cristas tinha a apontar-lhe a “inação durante quatro anos”, que segundo algumas críticas pôs em causa “Estado de Direito democrático”. “Bem sei que é professora, mas nessa matéria não me dá lições”, disparou de rajada o primeiro-ministro.

Também houve desacordo sobre a criação de tribunais especializados proposta pelo PAN. Cristas rotulou essa como uma proposta de “regimes autoritários” e Costa admitiu a formação especializada para quem lida com violência doméstica, mas não tribunais especializados.

Rio quer penas mais graves para jornalistas

Mas a Justiça, convém lembrar, é o tema-fetiche de Rui Rio. À pergunta sobre como resolverá o problema da corrupção, respondeu: “Eu resolvo o problema da corrupção em Portugal fazendo os julgamentos no sitio certo, que são os tribunais. Não defendo o combate à corrupção nas páginas dos jornais ou nas televisões”. Depois, acrescentou, “compete-nos dar ao Ministério Público e à Polícia Judiciária os instrumentos necessários para que façam melhor o trabalho.” Uma crítica ao Governo? Não: rapidamente Rio voltou ao ataque que lhe interessa: “Mas depois têm de fazer o trabalho, não andar a noticiar nos jornais”.

A reforma da Justiça, com Rio, acaba sempre nos ataques ao MP, aos tribunais e à comunicação social, e mais uma vez não foi excepção. E defendeu mão pesada para os jornalistas, quando divulguem informação em segredo de Justiça. “Esse crime tem de ser aplicado a todos os portugueses, não pode ser uma lei que serve para uns e não para outros. Se eu violo o segredo de justiça e mostrar a uma ou duas pessoas, é um crime, se eu mostrar a dez milhões de portugueses, o crime é dez milhões de vezes maior” - ou seja, na lógica de Rio a publicação de informação seria tratada como um crime mais grave do que o ato de acesso indevido a informação em segredo de Justiça ou a sua transmissão à comunicação social. E o conceito de interesse público - com que a jurisprudência nacional e internacional normalmente matiza as violações do segredo de jusitça - não existe para Rio neste caso.

“Tenho consciência clara de que o que estou dizer não é minimamente politicamente correto”, disse Rio, frisando o que gosta que seja a sua imagem. “Agora podem-me atacar todos.”

Ninguém o atacou. Em vez disso, Catarina Martins fez a defesa da liberdade de imprensa como pilar da democracia. “É preciso muito cuidado com propostas que parecem simples, mas são demagógicas e perigosas para democracia. (...) Limitar a liberdade da imprensa, perseguir jornalistas para resolver um problema do Ministério Público é atacar a democracia. Isso não podemos permitir, porque não há democracia sem imprensa livre e também dependemos do trabalho da comunicação social para combater a corrupção”. Nenhum dos argumentos dissuadiu Rio.

Peixe, carne e canábis

Na última ronda de perguntas, rápidas, sobre temas variados, ficou a saber-se que António Costa manda servir peixe nos jantares oficiais na residência do primeiro-ministro, que Rui Rio não aprova a liberalização do uso recreativo de canábis (apesar dessa proposta ser defendida pelo seu porta-voz para a saúde), que Jerónimo de Sousa não quer touradas sem animais, porque “o respeito pela cultura e entidade do povo deve prevalecer”, que Assunção Cristas discorda do voto aos 16 anos e que Catarina Martins não se impressiona com o facto da Universidade de Coimbra deixar de servir carne nas suas cantinas - afinal, a líder bloquista estudou em Coimbra e recorda-se que já então “a carne de vaca não fazia parte do menu social”.

Todos sorriram e saíram todos com ar de missão cumprida.

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