Os políticos às voltas com o entretenimento

28-09-2019
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“Assunção Cristas lê excerto do livro erótico da Blaya”, “Assunção Cristas joga Fortnite e dança Floss Dance”, não fosse um “Assunção Cristas surpreende António Costa” nada disto pareceria possível. Mas foi. É pesquisar por “Assunção Cristas no 5 Para a Meia Noite” para encontrar estes e outros excertos da passagem da líder do CDS pelo late night show da RTP. Longe vão os tempos em que, numa entrevista a Carlos Cruz, em 1991, Álvaro Cunhal acabou por tirar da carteira para mostrar aos espetadores as fotografias da sua filha e dos seus netos como prova de que não tinha nada a esconder, ao mesmo tempo, que explicava a opção que tomara de preservação da sua vida privada.

De 2018 para 2019, não é apenas uma figura incontornável da política portuguesa, é o próprio Presidente da República que concede dar uma entrevista num programa da manhã da TVI. Entrevista em que Manuel Luís Goucha não deixou de lado alguns dos assuntos que têm marcado a atualidade política, mas em que foi dado a Marcelo Rebelo de Sousa espaço para falar sobre a sua infância, sobre o Natal e sobre como acreditou no Menino Jesus até à “segunda ou terceira classe”.

Entrevista que terminava com um caloroso “permita-me este à-vontade: tenho muito orgulho em tê-lo como Presidente” e desejos de “feliz Natal” do entrevistador. Se “No Monte do Manel” — o programa que durante as duas últimas semanas de dezembro substituiu o “Você na TV” nas manhãs da TVI durante a remodelação com que a estação pretende fazer frente à saída de Cristina Ferreira para a SIC — liderou logo à primeira emissão as audiências (com 500 mil espetadores; o “Queridas Manhãs”, da SIC, foi visto por 200 mil), um programa com o já conhecido como “Presidente do povo” como convidado seria receita infalível para o sucesso. Mas não só.

Antes de ser eleito, mas quando se especulava já sobre a sua candidatura à Presidência da República, em 2015, Marcelo Rebelo de Sousa tinha já concedido uma entrevista “intimista” a Cristina Ferreira, que fez com ele a capa do primeiro número da sua revista, “Cristina”. Pouco antes, o futuro Presidente fora também entrevistado por Daniel Oliveira no “Alta Definição”, da SIC, que pela mesma altura dedicou ainda um programa a Rui Rio. A novidade aqui é que nunca Marcelo (ou qualquer Presidente da República em Portugal) tinha, em funções, concedido uma entrevista num programa da manhã.

Surpreendente? Para José Aguiar, partner da ALL Comunicação e docente na pós-graduação em Comunicação e Marketing Político do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, “não completamente”. E explica porquê: “O Presidente tem uma margem de manobra mediática ímpar e uma enorme aceitação popular. Diria mais: Marcelo percebe que a generalidade das pessoas (e não apenas dos eleitores) gosta dele, gosta de o ver, de acompanhar a sua atividade e as suas intervenções. E o Presidente, interpretando esse sentir popular (que soube construir ao longo de décadas enquanto comentador) participa num programa popular, numa altura específica, o Natal. E sempre que achar que existe uma oportunidade para marcar um momento com a sua participação, o Presidente voltará a participar neste ou em outros programas de entretenimento”, diz ao i.

José Aguiar nota ainda como apesar de as campanhas eleitorais se terem tornado nos dias que correm permanentes e, por meio das redes sociais, instantâneas, “a participação do Presidente no programa do Manuel Luís Goucha [ter] um contexto que não é (imediatamente) eleitoral”. Isto porque “não se insere num contexto de conquista do poder (já o tem), mas de manutenção, de exercício, do poder. É a afirmação mediática do cargo que ocupa, num espaço televisivo extra-informação, que é o meio habitual em que nos habituámos a encontrar os nossos representantes eleitos”.

Audiências ditam novas modas É uma daquelas situações em que todos parecem ganhar. No seu “Política e Entretenimento”, ensaio incontornável quando se pensa este tema, publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, José Santana Pereira, investigador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, cita os politólogos Matthew Baum e Angela Jamison, que afirmam que “os políticos decidem participar em programas deste tipo devido à dimensão e natureza das audiências que os seguem e ao tipo de enquadramento que oferecem”. Além dos “shares de audiência bastante interessantes” que conseguem atingir: “por exemplo, o programa de David Letterman em que Barack Obama participou foi visto por cerca de sete milhões de espetadores, enquanto apenas cerca de três milhões assistiram à entrevista que o jornalista George Stephanopoulos” lhe fizera na véspera.

Nos últimos dias, Marcelo não foi caso único. Depois da ida a Belém no programa da manhã, o regresso de “Você na TV” ficou marcado por uma polémica em torno de uma entrevista ao líder de extrema-direita Mário Machado, num caso que assumiu já outros contornos. O último “Governo Sombra” de 2018 teve o ministro Mário Centeno, depois de ter recebido já António Costa na qualidade de primeiro-ministro.

É um jogo em que todos parecem poder ganhar, sobretudo em contextos eleitorais. Segundo Santana Pereira se, por um lado alguns estudos sugerem que a participação de figuras políticas em programas de entretenimento “pode aumentar o grau de desconfiança em relação aos protagonistas e às instituições políticas”, outros identificaram, por outro lado, “alguns efeitos persuasivos”, um “impacto na maneira como as pessoas pensam nos políticos”.

E dá o exemplo de um estudo feito em Itália, em 2013, sobre padrões de exposição a programas televisivos, jornais e internet durante a campanha para as eleições decorridas nesse ano que concluiu que “quanto mais frequentemente se assiste a programas de entretenimento televisivo, maior a probabilidade de avaliar o líder de centro-direita Silvio Berlusconi de forma positiva e de expressar opiniões menos favoráveis a respeito de Pierluigi Bersani, líder do principal partido de centro esquerda”.

Não é de facto possível pensar o lugar onde política e entretenimento se cruzam sem pensar em Berlusconi, essa espécie de presidente-celebridade que na década de 1990 usou da sua notoriedade para criar um partido e chegar ao poder, e que viria a fazer escola em Itália — basta olhar para o mais recente exemplo de Beppe Grillo, o humorista que cofundou o Movimento 5 Estrelas. Ou, cruzando o Atlântico, em Donald Trump, que se celebrizou no programa de talentos “The Apprentice”.

Neste campo, os Estados Unidos sempre contaram uma história à parte. Ronald Reagan, presidente dos EUA entre 1980 e 1984, por exemplo, antes de se ter voltado para a política passou por toda uma carreira como ator, com créditos em 80 papéis entre o cinema e séries televisivas. De uma certa perspetiva, a política e o entretenimento sempre andaram de mãos dadas. É o que argumenta, citado pela revista “Time”, o analista político do Center for Politics da University of Virginia, nos EUA, e autor do livro “The Kennedy Half-Century”, Larry Sabato: “Quando os partidos estão a considerar os seus candidatos perguntam-se: Quem vai parecer melhor na TV? Quem vai passar melhor? Quem vai debater melhor?” A prova está num dos mais emblemáticos debates da História Ocidental: o sempre citado Nixon contra Kennedy, em 1960, em que o primeiro pareceu vencedor na rádio e o segundo na televisão, que acabaria por virar o resultado dessas eleições.

Apesar de tudo, nota Santana Pereira no seu livro como, apesar de vários candidatos presidenciais terem vindo a marcar presença em programas do género, Obama foi o primeiro presidente dos Estados Unidos da América em funções a participar num talk-show.

Nova forma de entrevistar políticos Por cá, só com Mário Soares eleito Presidente da República se chegou a algo próximo daquele exemplo de Reagan, com Maria Barroso, cujas prestações como atriz é possível revisitar num par de filmes de Paulo Rocha e Manoel de Oliveira, como primeira-dama.

Ao telefone com o i, Herman José recorda, no entanto, como Mário Soares foi, curiosamente a par de Marcelo Rebelo de Sousa, o único político a declinar convites para os seus programas. Desde a década de 1990, por “Parabéns”, “Herman ’98” e, já no novo milénio, em “HermanSIC”, os seus programas abriram um espaço para uma nova forma de entrevistar políticos. À exceção de Soares, que terá explicado ao humorista que não era um formato no qual se sentisse à vontade para ser entrevistado, por esses programas passaram figuras como Ramalho Eanes, Jorge Sampaio (“foi no meu programa que ele falou pela primeira vez na possibilidade da candidatura” à Presidência da República) e até Cavaco Silva, já no “HermanSIC”, em 2002, a propósito do lançamento do primeiro volume do seu livro de memórias. Por essa altura já Herman havia entrevistado Maria Cavaco Silva, com a presença do então primeiro-ministro no estúdio. A estes, juntaram-se ao longo dos anos nomes como Paulo Portas, Manuela Ferreira Leite ou José Sócrates.

O formato popularizou-se entretanto. Em 2009, a participação de José Sócrates em “Gato Fedorento Esmiuça os Sufrágios”, um programa diário de humor dos Gato Fedorento transmitido na SIC em horário nobre no período anterior às eleições desse ano, como entrevistado foi notícia e assunto por vários dias. Para José Aguiar, é importante perceber que esse é um contexto diferente daquele em que Marcelo Rebelo de Sousa concedeu a entrevista a Manuel Luís Goucha para o seu programa da manhã.

Também nesse ano de 2009, a RTP lançava o “5 Para a Meia Noite” que, depois de ter recebido como convidados António Costa e Pedro Santana Lopes na qualidade de candidatos a presidente da Câmara de Lisboa, lançou em 2011 a um mês das eleições antecipadas um “Especial Eleições”, ainda na RTP2. Ao longo de uma semana José Sócrates, Pedro Passos Coelho, Jerónimo de Sousa, Paulo Portas e Francisco Louçã, os líderes dos partidos com representação parlamentar naquela época, foram ao longo de uma semana entrevistados por cada um dos cinco apresentadores do programa.

E aqui Herman intervém. “Quando um político participa nesse tipo de programas, normalmente fá-lo com conhecimento do guião ou das perguntas que vão ser feitas. Nos meus programas isso nunca aconteceu. Nunca me foi sequer pedido.” Pela forma como conduzia as entrevistas? “Para essas entrevistas, uma pessoa tem sempre que se preparar como se fosse um jornalista. E é importante não ceder à tentação de transformar aquilo num exercício de arrogância. Isso nunca fiz. Fui sempre muito educado com as pessoas”, recorda sobre o “exercício de diplomacia” que diz constituir uma entrevista a um político no contexto de um talk-show.

O mesmo ponto é posto em evidência por José Aguiar: “Ao contrário de numa entrevista com um jornalista, o controlo da mensagem e do discurso é [aqui] muito maior. O político pode ensaiar respostas e preparar-se recorrendo ao humor, à ironia, de uma forma que não é possível numa entrevista, porque por regra pode antecipar os temas, mas não as perguntas. Em nenhum desses programas se está completamente sem rede, ao contrário do que sucede numa entrevista.” E este raciocínio conduzir-nos-á àquilo a que chama de contradição evidente: “Temos hoje um manancial de informação imenso, gratuito, instantâneo, de tantas fontes diversas e plural, mas nunca como agora tivemos os eleitores tão distantes dos seus eleitores, nunca houve tanta abstenção. Esta abertura é positiva e os políticos têm procurado aumentar a proximidade com os eleitores, mas sem intermediação, através das redes sociais. Basta ver o Instagram ou o Facebook de dirigentes políticos nacionais para perceber que muitas vezes exibem um lado mais pessoal das suas vidas, revelando que há mais vida para além da política.” Mas, sublinha, “uma maré não faz o marinheiro”. Ou seja: “A comunicação política, capaz de gerar empenhamento e mobilização para o voto, tem que ser coerente, consistente e recorrente.”

Opiniões dividem-se Sobre os efeitos desta nova forma de fazer política, os especialistas dividem-se entre aqueles que consideram que qualquer forma de aproximação a um eleitorado menos atento ou interessado será benéfica — ao i, o politólogo André Freire, nota como “não se espera que se vá discutir política” num programa de entretenimento mas como, ainda assim, “a política surge lá pelo meio” e acabarão “sempre por ser discutidas algumas coisas” — e os que alertam para os possíveis efeito perversos desta aproximação, quer para os media, que começarão a reger-se por lógicas cada vez mais movidas pelas audiências numa substituição gradual de programas informativos por programas de entretenimento, quer para a forma como se faz política. Citando Santana Pereira, o perigo de os políticos deixarem “de olhar para a lógica dos media como pertencente a uma entidade externa”, internalizando-a, “não se adaptando a ela mas adotando-a como sua e deixando em segundo plano a lógica dos processos políticos”.

No final da entrevista a Marcelo em Belém, o próprio Manuel Luís Goucha confrontou o Presidente com essa questão: “O que é que responde às pessoas que dizem que o senhor está, com tudo aquilo que faz, a banalizar a função de Presidente?” Ao que Marcelo respondeu: “Sou diferente. Não podíamos pedir ao Presidente Cavaco Silva que fosse diferente daquilo que é, nem ao Presidente Sampaio, ou ao Presidente Mário Soares ou ao Presidente Eanes. Foram diferentes entre si. O Presidente Soares também fez coisas que eram banalíssimas na altura: almoçava e jantava nos restaurantes, ia a exposições, ia ao lançamento de livros, e não foi agora, foi há 30 e tal anos. Era uma revolução. Eu sou assim. Além disso, acho que o mundo mudou, a Europa mudou, Portugal mudou, e que as pessoas querem muito mais proximidade. E acho que aquilo que não compreendem muitas vezes naqueles que escolhem, que elegem, é terem a noção de que estarão muitos antes deles.”

E aqui José Aguiar tenderá a conceder que o facto de “estar sempre a aparecer” não retira impacto a Marcelo. “Seria verdade, não fosse a sua imensa popularidade e aceitação eleitoral. Há poucas pessoas tão consensuais em Portugal como o nosso Presidente. Será difícil, por questões de equilíbrio editorial, que outras personalidades políticas apareçam tanto e de forma tão permanente, seja em programas de informação ou de entretenimento. As televisões procurarão sempre equilíbrio. Neste contexto, o que é excessivo? Mais importante do que aparecer muito ou pouco, é aparecer bem. É na eficácia da comunicação que os políticos que procuram apelar ao voto ou à manutenção do eleitorado devem estar preocupados.”

“Assunção Cristas lê excerto do livro erótico da Blaya”, “Assunção Cristas joga Fortnite e dança Floss Dance”, não fosse um “Assunção Cristas surpreende António Costa” nada disto pareceria possível. Mas foi. É pesquisar por “Assunção Cristas no 5 Para a Meia Noite” para encontrar estes e outros excertos da passagem da líder do CDS pelo late night show da RTP. Longe vão os tempos em que, numa entrevista a Carlos Cruz, em 1991, Álvaro Cunhal acabou por tirar da carteira para mostrar aos espetadores as fotografias da sua filha e dos seus netos como prova de que não tinha nada a esconder, ao mesmo tempo, que explicava a opção que tomara de preservação da sua vida privada.

De 2018 para 2019, não é apenas uma figura incontornável da política portuguesa, é o próprio Presidente da República que concede dar uma entrevista num programa da manhã da TVI. Entrevista em que Manuel Luís Goucha não deixou de lado alguns dos assuntos que têm marcado a atualidade política, mas em que foi dado a Marcelo Rebelo de Sousa espaço para falar sobre a sua infância, sobre o Natal e sobre como acreditou no Menino Jesus até à “segunda ou terceira classe”.

Entrevista que terminava com um caloroso “permita-me este à-vontade: tenho muito orgulho em tê-lo como Presidente” e desejos de “feliz Natal” do entrevistador. Se “No Monte do Manel” — o programa que durante as duas últimas semanas de dezembro substituiu o “Você na TV” nas manhãs da TVI durante a remodelação com que a estação pretende fazer frente à saída de Cristina Ferreira para a SIC — liderou logo à primeira emissão as audiências (com 500 mil espetadores; o “Queridas Manhãs”, da SIC, foi visto por 200 mil), um programa com o já conhecido como “Presidente do povo” como convidado seria receita infalível para o sucesso. Mas não só.

Antes de ser eleito, mas quando se especulava já sobre a sua candidatura à Presidência da República, em 2015, Marcelo Rebelo de Sousa tinha já concedido uma entrevista “intimista” a Cristina Ferreira, que fez com ele a capa do primeiro número da sua revista, “Cristina”. Pouco antes, o futuro Presidente fora também entrevistado por Daniel Oliveira no “Alta Definição”, da SIC, que pela mesma altura dedicou ainda um programa a Rui Rio. A novidade aqui é que nunca Marcelo (ou qualquer Presidente da República em Portugal) tinha, em funções, concedido uma entrevista num programa da manhã.

Surpreendente? Para José Aguiar, partner da ALL Comunicação e docente na pós-graduação em Comunicação e Marketing Político do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, “não completamente”. E explica porquê: “O Presidente tem uma margem de manobra mediática ímpar e uma enorme aceitação popular. Diria mais: Marcelo percebe que a generalidade das pessoas (e não apenas dos eleitores) gosta dele, gosta de o ver, de acompanhar a sua atividade e as suas intervenções. E o Presidente, interpretando esse sentir popular (que soube construir ao longo de décadas enquanto comentador) participa num programa popular, numa altura específica, o Natal. E sempre que achar que existe uma oportunidade para marcar um momento com a sua participação, o Presidente voltará a participar neste ou em outros programas de entretenimento”, diz ao i.

José Aguiar nota ainda como apesar de as campanhas eleitorais se terem tornado nos dias que correm permanentes e, por meio das redes sociais, instantâneas, “a participação do Presidente no programa do Manuel Luís Goucha [ter] um contexto que não é (imediatamente) eleitoral”. Isto porque “não se insere num contexto de conquista do poder (já o tem), mas de manutenção, de exercício, do poder. É a afirmação mediática do cargo que ocupa, num espaço televisivo extra-informação, que é o meio habitual em que nos habituámos a encontrar os nossos representantes eleitos”.

Audiências ditam novas modas É uma daquelas situações em que todos parecem ganhar. No seu “Política e Entretenimento”, ensaio incontornável quando se pensa este tema, publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, José Santana Pereira, investigador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, cita os politólogos Matthew Baum e Angela Jamison, que afirmam que “os políticos decidem participar em programas deste tipo devido à dimensão e natureza das audiências que os seguem e ao tipo de enquadramento que oferecem”. Além dos “shares de audiência bastante interessantes” que conseguem atingir: “por exemplo, o programa de David Letterman em que Barack Obama participou foi visto por cerca de sete milhões de espetadores, enquanto apenas cerca de três milhões assistiram à entrevista que o jornalista George Stephanopoulos” lhe fizera na véspera.

Nos últimos dias, Marcelo não foi caso único. Depois da ida a Belém no programa da manhã, o regresso de “Você na TV” ficou marcado por uma polémica em torno de uma entrevista ao líder de extrema-direita Mário Machado, num caso que assumiu já outros contornos. O último “Governo Sombra” de 2018 teve o ministro Mário Centeno, depois de ter recebido já António Costa na qualidade de primeiro-ministro.

É um jogo em que todos parecem poder ganhar, sobretudo em contextos eleitorais. Segundo Santana Pereira se, por um lado alguns estudos sugerem que a participação de figuras políticas em programas de entretenimento “pode aumentar o grau de desconfiança em relação aos protagonistas e às instituições políticas”, outros identificaram, por outro lado, “alguns efeitos persuasivos”, um “impacto na maneira como as pessoas pensam nos políticos”.

E dá o exemplo de um estudo feito em Itália, em 2013, sobre padrões de exposição a programas televisivos, jornais e internet durante a campanha para as eleições decorridas nesse ano que concluiu que “quanto mais frequentemente se assiste a programas de entretenimento televisivo, maior a probabilidade de avaliar o líder de centro-direita Silvio Berlusconi de forma positiva e de expressar opiniões menos favoráveis a respeito de Pierluigi Bersani, líder do principal partido de centro esquerda”.

Não é de facto possível pensar o lugar onde política e entretenimento se cruzam sem pensar em Berlusconi, essa espécie de presidente-celebridade que na década de 1990 usou da sua notoriedade para criar um partido e chegar ao poder, e que viria a fazer escola em Itália — basta olhar para o mais recente exemplo de Beppe Grillo, o humorista que cofundou o Movimento 5 Estrelas. Ou, cruzando o Atlântico, em Donald Trump, que se celebrizou no programa de talentos “The Apprentice”.

Neste campo, os Estados Unidos sempre contaram uma história à parte. Ronald Reagan, presidente dos EUA entre 1980 e 1984, por exemplo, antes de se ter voltado para a política passou por toda uma carreira como ator, com créditos em 80 papéis entre o cinema e séries televisivas. De uma certa perspetiva, a política e o entretenimento sempre andaram de mãos dadas. É o que argumenta, citado pela revista “Time”, o analista político do Center for Politics da University of Virginia, nos EUA, e autor do livro “The Kennedy Half-Century”, Larry Sabato: “Quando os partidos estão a considerar os seus candidatos perguntam-se: Quem vai parecer melhor na TV? Quem vai passar melhor? Quem vai debater melhor?” A prova está num dos mais emblemáticos debates da História Ocidental: o sempre citado Nixon contra Kennedy, em 1960, em que o primeiro pareceu vencedor na rádio e o segundo na televisão, que acabaria por virar o resultado dessas eleições.

Apesar de tudo, nota Santana Pereira no seu livro como, apesar de vários candidatos presidenciais terem vindo a marcar presença em programas do género, Obama foi o primeiro presidente dos Estados Unidos da América em funções a participar num talk-show.

Nova forma de entrevistar políticos Por cá, só com Mário Soares eleito Presidente da República se chegou a algo próximo daquele exemplo de Reagan, com Maria Barroso, cujas prestações como atriz é possível revisitar num par de filmes de Paulo Rocha e Manoel de Oliveira, como primeira-dama.

Ao telefone com o i, Herman José recorda, no entanto, como Mário Soares foi, curiosamente a par de Marcelo Rebelo de Sousa, o único político a declinar convites para os seus programas. Desde a década de 1990, por “Parabéns”, “Herman ’98” e, já no novo milénio, em “HermanSIC”, os seus programas abriram um espaço para uma nova forma de entrevistar políticos. À exceção de Soares, que terá explicado ao humorista que não era um formato no qual se sentisse à vontade para ser entrevistado, por esses programas passaram figuras como Ramalho Eanes, Jorge Sampaio (“foi no meu programa que ele falou pela primeira vez na possibilidade da candidatura” à Presidência da República) e até Cavaco Silva, já no “HermanSIC”, em 2002, a propósito do lançamento do primeiro volume do seu livro de memórias. Por essa altura já Herman havia entrevistado Maria Cavaco Silva, com a presença do então primeiro-ministro no estúdio. A estes, juntaram-se ao longo dos anos nomes como Paulo Portas, Manuela Ferreira Leite ou José Sócrates.

O formato popularizou-se entretanto. Em 2009, a participação de José Sócrates em “Gato Fedorento Esmiuça os Sufrágios”, um programa diário de humor dos Gato Fedorento transmitido na SIC em horário nobre no período anterior às eleições desse ano, como entrevistado foi notícia e assunto por vários dias. Para José Aguiar, é importante perceber que esse é um contexto diferente daquele em que Marcelo Rebelo de Sousa concedeu a entrevista a Manuel Luís Goucha para o seu programa da manhã.

Também nesse ano de 2009, a RTP lançava o “5 Para a Meia Noite” que, depois de ter recebido como convidados António Costa e Pedro Santana Lopes na qualidade de candidatos a presidente da Câmara de Lisboa, lançou em 2011 a um mês das eleições antecipadas um “Especial Eleições”, ainda na RTP2. Ao longo de uma semana José Sócrates, Pedro Passos Coelho, Jerónimo de Sousa, Paulo Portas e Francisco Louçã, os líderes dos partidos com representação parlamentar naquela época, foram ao longo de uma semana entrevistados por cada um dos cinco apresentadores do programa.

E aqui Herman intervém. “Quando um político participa nesse tipo de programas, normalmente fá-lo com conhecimento do guião ou das perguntas que vão ser feitas. Nos meus programas isso nunca aconteceu. Nunca me foi sequer pedido.” Pela forma como conduzia as entrevistas? “Para essas entrevistas, uma pessoa tem sempre que se preparar como se fosse um jornalista. E é importante não ceder à tentação de transformar aquilo num exercício de arrogância. Isso nunca fiz. Fui sempre muito educado com as pessoas”, recorda sobre o “exercício de diplomacia” que diz constituir uma entrevista a um político no contexto de um talk-show.

O mesmo ponto é posto em evidência por José Aguiar: “Ao contrário de numa entrevista com um jornalista, o controlo da mensagem e do discurso é [aqui] muito maior. O político pode ensaiar respostas e preparar-se recorrendo ao humor, à ironia, de uma forma que não é possível numa entrevista, porque por regra pode antecipar os temas, mas não as perguntas. Em nenhum desses programas se está completamente sem rede, ao contrário do que sucede numa entrevista.” E este raciocínio conduzir-nos-á àquilo a que chama de contradição evidente: “Temos hoje um manancial de informação imenso, gratuito, instantâneo, de tantas fontes diversas e plural, mas nunca como agora tivemos os eleitores tão distantes dos seus eleitores, nunca houve tanta abstenção. Esta abertura é positiva e os políticos têm procurado aumentar a proximidade com os eleitores, mas sem intermediação, através das redes sociais. Basta ver o Instagram ou o Facebook de dirigentes políticos nacionais para perceber que muitas vezes exibem um lado mais pessoal das suas vidas, revelando que há mais vida para além da política.” Mas, sublinha, “uma maré não faz o marinheiro”. Ou seja: “A comunicação política, capaz de gerar empenhamento e mobilização para o voto, tem que ser coerente, consistente e recorrente.”

Opiniões dividem-se Sobre os efeitos desta nova forma de fazer política, os especialistas dividem-se entre aqueles que consideram que qualquer forma de aproximação a um eleitorado menos atento ou interessado será benéfica — ao i, o politólogo André Freire, nota como “não se espera que se vá discutir política” num programa de entretenimento mas como, ainda assim, “a política surge lá pelo meio” e acabarão “sempre por ser discutidas algumas coisas” — e os que alertam para os possíveis efeito perversos desta aproximação, quer para os media, que começarão a reger-se por lógicas cada vez mais movidas pelas audiências numa substituição gradual de programas informativos por programas de entretenimento, quer para a forma como se faz política. Citando Santana Pereira, o perigo de os políticos deixarem “de olhar para a lógica dos media como pertencente a uma entidade externa”, internalizando-a, “não se adaptando a ela mas adotando-a como sua e deixando em segundo plano a lógica dos processos políticos”.

No final da entrevista a Marcelo em Belém, o próprio Manuel Luís Goucha confrontou o Presidente com essa questão: “O que é que responde às pessoas que dizem que o senhor está, com tudo aquilo que faz, a banalizar a função de Presidente?” Ao que Marcelo respondeu: “Sou diferente. Não podíamos pedir ao Presidente Cavaco Silva que fosse diferente daquilo que é, nem ao Presidente Sampaio, ou ao Presidente Mário Soares ou ao Presidente Eanes. Foram diferentes entre si. O Presidente Soares também fez coisas que eram banalíssimas na altura: almoçava e jantava nos restaurantes, ia a exposições, ia ao lançamento de livros, e não foi agora, foi há 30 e tal anos. Era uma revolução. Eu sou assim. Além disso, acho que o mundo mudou, a Europa mudou, Portugal mudou, e que as pessoas querem muito mais proximidade. E acho que aquilo que não compreendem muitas vezes naqueles que escolhem, que elegem, é terem a noção de que estarão muitos antes deles.”

E aqui José Aguiar tenderá a conceder que o facto de “estar sempre a aparecer” não retira impacto a Marcelo. “Seria verdade, não fosse a sua imensa popularidade e aceitação eleitoral. Há poucas pessoas tão consensuais em Portugal como o nosso Presidente. Será difícil, por questões de equilíbrio editorial, que outras personalidades políticas apareçam tanto e de forma tão permanente, seja em programas de informação ou de entretenimento. As televisões procurarão sempre equilíbrio. Neste contexto, o que é excessivo? Mais importante do que aparecer muito ou pouco, é aparecer bem. É na eficácia da comunicação que os políticos que procuram apelar ao voto ou à manutenção do eleitorado devem estar preocupados.”

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