poesia & companhia: QUE DIZEM OS POETAS ALGARVIOS E ANDALUZES DE AGORA?

09-04-2019
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QUE DIZEM OS POETAS ALGARVIOS E ANDALUZES DE AGORA? – 4

Fernando Cabrita

HABITACION COM ISLAS - Manuel
Moya

Manuel Moya é, e digo-o sem
grande receio de me ver desmentido, não só um dos maiores poetas da Andaluzia,
mas um dos grandes poetas contemporâneos da Espanha. E não o digo pelo número e
importância dos prémios que a sua obra tem recolhido ao longo de anos. Digo-o
pelo sentido intrínseco da poesia que rescende do seu texto, e pela marcha
evolutiva que essa poesia vem ganhando, livro a livro, enrijecendo-se,
avolumando-se, crescendo em tonalidade e, contraditoriamente, em complexidade e
simplicidade.
Na verdade, na poesia espanhola actual a obra de Moya avulta. E maior
significado tem isso porquanto a mesma se produz, distante dos luzeiros do
vedetismo mediático, na pacata Fuenteheridos, pequena e belíssima povoação da
Sierra de Aracena, entre castanheiros altos e sombras ridentes. Quando ali
passo -- não muito, com pena o reconheço--, visito-o. E encontro-o regularmente
ocupado na leitura de um novo poeta, na tradução de autores portugueses, na
véspera de uma deslocação para uma palestra, um recital, uma apresentação, ou
para ir receber mais um prémio.
Sei que não é bom método de crítica que, antes de falar do livro de que me
ocupo, abra encómios à demais obra. Mas não resisto a referir alguns dos
Prémios Literários de Moya. Porque isso dá-nos também a dimensão do escritor e
do poeta. Atente-se: Premio Gabriel Celaya, em 1993; Premio Ciudad de Córdoba,
em 1997; Premio Ciudad de las Palmas, em 2000; Premio Leonor de Poesía, em
2001; Premio Fray Luis de León, em 2001 e de novo em 2005; Premio Faroni de Microcuento,
em 2006; Premio Vicente Presa, em 2007; Premio Salvador Rueda, em 2008; Prémio
de Poesía Tomás Morales, em 2010, atribuído na Gran Canaria; Premio Fernando
Quiñones de Novela, em 2010 --este, aliás, atribuído ao seu romance Cenizas de
Abril, no título original, mas romance e trama totalmente portugueses,
percorrendo os anos difíceis da ditadura portuguesa até ao 25 de Abril de 1974,
e prolongando-se para lá dele. Está em Portugal editado pela Sextante, sob o
título Cinzas de Abril. E como se tudo isso não fosse já suficiente para se
perceber estarmos na presença de um poeta maior, eis que em 2013 lhe é
atribuído o Premio Iberoamericano de Poesía Hermanos Machado.  

Habitacion con Islas é uma
antologia de poemas de Moya. Reúne poemas de 1984 a 1988; e até 2000 na edição
portuguesa, a mais tardia. Daí talvez que a minha escolha, entre tantos outros
livros seus, tenha recaído neste, que representa um percurso por aquilo que é o
mais marcante e sintomático do macrotexto poético de Manuel Moya: a interrogação
sobre a marcha e a luta do ser humano, a sua condição, o seu lugar no mundo. A
poética de Moya é uma constante reflexão. A reflexão de um homem que
maduramente se pensa, imperturbável na sua ligação à terra, reencontrando-se
nos outros que se lhe cruzam, nos que antes dele foram, percebendo-se ao mesmo
tempo distinto e igual, renovado ou ultrapassado por si próprio a cada estado
de consciência, cavando dentro de si os estranhos túneis que o conduzem de si
mesmo a si mesmo, e saindo do outro lado, todavia sempre novo, sempre um outro,
e sempre igual ao que fora antes. Este soy/ quien ahora se empeña en habitarme/
quien inútilmente me abraza desde el sueño, confessa-se no Autorretratos (pág.
13). Este soy/ testigo inseparable de ese otro que coincide conmigo en la
vigilia. O canto é, assim, claramente tributário de Rimbaud (que aliás figura,
el pobre Arturo, no poema da pág.29); mas, ainda que tributário, é-o em
profunda originalidade, como se em cada poema ouvíssemos respirar, em haustos
autónomos, ambas as identidades, uma e outra, dois seres que habitam o homem e
o poeta e lhe trazem a estranheza em que se mede. Sintomático, em Memoria de
Ultratumba: En otros fui, ganado a sus facciones/trazándome en sus máscaras.
E na edição portuguesa, aumentada porque recolhendo poesias de anos
posteriores, deparamos (pág. 24) com Os Outros, poema que não resisto a aqui
transcrever por tão ilustrativo daquilo que digo acima: Ás vezes chega e fica a
viver nas minhas camisas/ e brinca com os meus gatos e calça as minhas sandálias,/
ocupa a minha parte nesta cama/ e passeia como um pai ante os meus filhos./ Ás
vezes surpreendo-a seguindo-me em meus passos./ Seus olhos povoam-me as
pupilas,/ sua voz em nada se distingue da minha/ e até nas minhas mãos leio as
linhas das suas./ Ás vezes sento-me a confessar diante do espelho/ as suas
torpezas. /Indecisa, néscia, talvez cega/ foge de mim e logo volta. Não a
chamo:/como chamá-la, se não atende à voz com que a nomeio,/ se ao fim desmente
os meus versos, as minhas palavras/ e pronta se vai, desdenhosa, infiel, tão de
repente.
Ei-la pois, em misteriosa e bela forma poética, essa outra identidade, essa
outra personagem, a outra pele. Há aqui uma desidentificação pessoana, em que o
poeta, ele próprio e como um observador de si mesmo, reconhece a outra criatura
que em si por vezes e de surpresa habita. Uma despersonalização consciente,
como um sonho dentro de um sonho, no melhor sentido de Borges. 

Esta referência a Pessoa não
espanta. Manuel Moya é um cultor da língua e da literatura portuguesa. Pessoa é
só um dos vários autores que Moya traduziu para castelhano e que estudou e
comentou. Pessoa está ali, na sua obra, como aliás está o seu contrário. Já o
disse numa apresentação de um livro de Moya. O seu poema Que claro ser el de esta
piedra (pág. 8, ed. castelhana), integra-se com toda a harmonia no conjunto de
versos de Alberto Caeiro; e nos anteriores de João Lúcio, versos quase polémica
a anos de distância, sobre o que sentem as coisas. Pessoa/Caeiro terá conhecido
a obra de Lúcio através de Francisco Fernandes Lopes (desenvolvo esse tema num
texto publicado nas Teses do Congresso Internacional sobre Álvaro de Campos); e
poetiza no sentido oposto, resumindo que as coisas não sentem; se sentissem
seriam seres, não seriam coisas. Moya, nesta poema de pág. 8, aproxima-se de
João Lúcio. No claro ser de la piedra ele sente vida. Quando paso junto a
ella,/ sin embargo, escucho sus latidos./ Dentro se muéve un perro/ un nardo,
la vulva, el angél. Simplicidade e complexidade. Poderosas imagens, na maior
concisão do texto.

Mas o sentido maior da sua poesia
é essa procura do sentido da existência do homem no mundo. A sua condição na
relação com os outros, com a terra que lavra e que o lavra a ele, com a luta
diária pelo respeito que lhe é devido, pelo seu trabalho, pelo seu pão
quotidiano. Leia-se este pão de cada dia sem sentido religioso. Nada de
religioso encontro aqui, note-se. Mas há em tudo um apelo forte à dignidade, à
inteireza de cada criatura, ao reconhecimento da divindade humana ínsita em
cada um de nós. Por todos, o poema Salario (pág. 43): A cada hombre su luna e
su salario/ su tanto de sal, su pobre mano / abrasada e hueca. Yo fui con eses
hombres y como uno de ellos/ he vuelto a casa con la luna en los ojos.

Leia-se de seguida o poema Campo
de Níjar (pág.11) – e aí está o fecho do anel, o círculo a completar-se. O
homem ante a visão da terra. Essa visão de que de novo virá, de um renascimento
sem pressa. Homem e terra, o homem a cuyo pie las horas, sin urgencia/ ciernen
la arena y la semiente/ que más tarde esparcirán su luz por esos campos. Mas
este homem que Moya canta é o homem real, o homem que vive as venturas e os
anseios da vida, mas também o homem ferido pela maldade dos seus iguais, pela
crueldade, pelo tempo e pelas vicissitudes. A efémera condição humana
aparece-nos inteira em Visita a Pompeya (pág. 40), belo e curto poema que
encerra toda essa fragilidade da nossa condição. Ou ainda na pungente meditação
em Silves, sobre o rio, na companhia da sua filha (pág.37).

Como não apelar então à dignidade
de cada homem, ao respeito pelo seu labor e pelo seu trabalho, encarando-se, a
cada passo, a efemeridade que o marca? Como não denunciar o medo que se apodera
dos homens, das sociedades, medo incutido, decerto, retirando-lhes a individualidade,
o seu próprio conceito, a sua liberdade, a sua divindade de homens sólidos,
livres e inteiros? Esse é o grande sentido da poesia que nesta antologia se
recolhe – e que se condensa, de forma exímia, em Cuanto Diste, poema da pág.26,
e em Ya Ves, na pág.78 da ed. Portuguesa.

E eis que o poeta se revê de novo
a si mesmo, nesse ofício de cavar una trinchera de versos contra el miedo.
Refiro-me ao poema Com Tudo o que Perdeu, que surge na edição portuguesa a
pág.59. Com tudo o que perdeu/ com tudo o que espera debaixo da terra/ com o
fio de tinta/ que tinge o mar e é um sudário/ Em Gádara remota/ no verde
Fuenteheridos/ um homem cava uma trincheira de versos contra o medo.
Memórias de Meleagro, memórias mais recentes de um tempo de fogo e cinza que
Fuenteheridos e os seus arredores viveram sob o franquismo impenitente e
sinistro. Nestes versos contra o medo, ecoa assim toda uma voz ainda, voz
múltipla e ancestral, a da Geração de 27, a de Jorge Guillén em Fuera del
Mundo, ou a de Alberti em Lo que dejé por ti; e sombras luminosas de Cernuda, e
de Aleixandre, e esse Miliciano Morto que cantou Garfias.

Moya reúne em si, como muito
legítimo herdeiro, essa corrente imensa da grande poesia espanhola. Habitacion
con Islas é, seguramente, um caso sério da poesia espanhola; e , por maioria de
razão, da poesia andaluza. E é também uma homenagem a Portugal, que Moya, como
homem da raia, nunca esquece. Recordo sempre uma sua frase, numa apresentação:
o meu encanto por Portugal vem de há muito. Sou um homem que vive na fronteira.
E sei que quando chove no meu pueblo, essa chuva é chuva portuguesa.
E assim, na raia, vai cavando a sua trincheira de versos contra o medo; e vai
continuando a pedir para cada homem, que aterido e débil va en pos de su
salario, que mantenha em si su luna e su prodígio.

O livro está editado em 3 países
e idiomas: castelhano (La Voz de Huelva, 1999), francês (L’Harmattan, 2007), e
português (Livro do Dia, 2008, com excelente tradução do malogrado Rui Costa),
sendo as edições portuguesa e francesa bilingues, ao conterem o original
castelhano.

QUE DIZEM OS POETAS ALGARVIOS E ANDALUZES DE AGORA? – 3

Fernando Cabrita

ÉPICA MENOR – António José Ventura

A poesia de António José Ventura, neste como em outros livros extremamente
gráfica, é igualmente de grande contenção. Ventura trabalha a língua na sua
vertente poética mais pura, fazendo de cada poema um quase retrato de
realidades ou memórias; mas também, ao mesmo tempo, apresentando-os num texto
claro, conciso, curto no seu melhor sentido, profundo e interrogador. O poema
convoca-nos para a visão das coisas que por vezes nos passam quase sem as
apercebermos: uma rua, um jardim, o voo de uma ave, o sino que toca pelas seis
da tarde, os ecos entre as folhagens. Ventura escreve como quem fotografa – e
as palavras são invariavelmente as mais justas e as mais adequadas.
ÉPICA MENOR (Gente Singular editora, 2009, em edição enobrecida por dois
desenhos de António Costa Pinheiro) não é o seu último livro (o último, aliás,
é uma comemoração a dois – eu e ele -- dos 25 anos passados sobre a atribuição
do Prémio Emiliano da Costa à nossa Visões de Marim). Mas aquilo que é
recorrente na sua poesia está lá, como nas demais obras: a memória em visita, a
peregrinação por lugares reais ou literários, cada qual mais simbólico, a
evocação da juventude nas paisagens esvaecidas. E também as referências do
cinéfilo e literato culto que António Ventura é; e sempre a busca dum perfeccionismo,
que se por vezes parece surgir entre as árvores de um jardim, uma alameda, ou
uma rua velha, nunca todavia se alcança.
“Nunca construiremos /a moradia perfeita”, confessava já Ventura no seu A
Cidade das Palavras, de 1994. E essa procura da perfeição continua nesta Épica
Menor. Pelo sonho, pela palavra. “Caminhamos em direcção à noite./A substância
dos sonhos é-nos imprescindível/ para que o nosso corpo não morra.”. A leitura
revela-nos uma poética de calma e apaziguamento, quase influtuante, em
peregrinação a lugares, a anos dissipados, a recordações, nessa busca contínua
da palavra e/ou da cidade perfeitas. A perfeição procura-a Ventura, assim, nas
palavras, em todas as palavras, e na cidade. E também nas pessoas (“sempre a
urbe e o seu passado/ sempre as pessoas e as coisas”).
Mas a cidade é, por muito que a queiramos ver localizada em Olhão, ou à beira
mar de qualquer porto, uma cidade ideal, onde há reminiscências da Grécia
clássica e memórias de jardins românticos do Norte. Trata-se da cidade que não
é, mas poderia ser ou ter sido. A cidade edificanda: “as palavras são para ser
usadas na construção da cidade”, assim abre o Poema Primeiro. Mas também,
sabe-o Ventura, “este é um tempo de desconstrução,/ estranhos sortilégios
ocultam o presente./ Temos o que não queremos/ e queremos o que não temos”
(pág.9). E com palavras, sempre com palavras, vai tecendo essa estranha novela
da cidade indefesa, a cidade devassada por todos os desdéns, todas as ruínas,
todas as apagadas memórias.

Ventura reconhece-o e declara-o.
“Os habitantes ignoravam a memória” (pág.10), mesmo e quando há uma “paisagem
atlântica a seguir a cidade na voluta do poema” (pág.16, em que o poema convoca
a Galiza, e onde ressoam, na minha leitura e repetidamente, as chuvas de Michel
del Castillo, e a morriña galega sobre os prados húmidos). Ventura, com
palavras exactas, certas, adossadas ao texto no preciso lugar de cada poema,
reconstrói e reconstrói e reconstrói a cidade, sucessivamente, empenhadamente,
ao mesmo tempo que a contempla. Contempla-a com um olhar de antiga saudade, mas
também de pena pelo futuro. No seu intertexto está reconhecido que as palavras,
por exactas que sejam, não têm o condão de fazer ressurgir, do tempo, a cidade
perfeita, a cidade que foi outrora e pode ser no porvir. Urbicanda, como um
sonho, ou um Desejado que se revele por entre os nevoeiros imemoriais.
Mas – e ai do cidadão que o constata!; mas que vitória para o poeta que o
entende (pois é essa a alma da sua poesia e o contraste e a contradição em que
ela exulta)! -- a cidade onde Ventura se move, na sua realidade física, não é a
cidade do seu ideal poético. É, todavia, uma cidade sem palavras. Ele sabe-o:

A cidade sem defesa

e ausente de palavras

movimenta-se como um rio 

por onde não correm as águas.

Por isso a descrença do poeta. Por isso a sua Épica se lhe figure Menor. Não
menor por que menos poética; mas menor porque em vão se esforça, ante o
desinteresse e o alheamento. A cidade é de breves casas/ transformadas em
casernas/ abrigam corpos de homens/ cheios de cicatrizes várias (pág. 32). Sem
se aperceber, sem cuidar do que é poético, do que de nobre e alto e luminoso em
si encerra, a cidade derrui-se a si mesma. Destrói as suas memórias, os seus
recantos, os seus segredos. O que lhe era íntimo perde-se. O que a definia
esvai-se. Ficam as efemeridades, os ruídos, as vagas espumas dos dias. É Roma
invadida pelos bárbaros, que desconhecem e não curam da palavra. Da palavra
antiga, patrimonial. Ignoram-na. Não a percebem. Menosprezam-na. Ventura há-de
dizê-lo mais claramente num poema posterior, no livro 40 Poemas, de 2012:
passam autarcas e secretários de estado/raparigas com vestidos de noite/
adolescentes de t-shirt/ bêbados, loucos, suicidas/ prostitutas, seres de sexo
indefinido/ alarves, rústicos e proxenetas/ vampiros da manhã que se aproxima.

Ventura lê a realidade e transforma-a concisamente.Como dele já disse Maria
Alzira Seixo, numa crítica de 1996, “ o autor capta muito bem atmosferas
físicas e intensidades caracteriais; e penso ainda no estudante de Literatura e
na sua aprendizagem dos processos de descrição em poesia, da selecção de
materiais e da relação sujeito/objecto, ao ler poemas como este, “Uma Rua de
Olhão”:

Uma mulher espreitando num
postigo;

um carro velho abandonado

um cão vadio na esquina,

uma linha de sombra

casas, açoteias e mirantes, 

calor e estagnação 

deste Sul luminoso e inóspito.
(de A Cidade Das Palavras). 

Na verdade, assim é. Ventura capta estes golpes de realidade com o mais fino
bisturi poético. Há aqui alguma coisa de Cesário Verde, também a lançar ao
papel os seus alexandrinos exactos; qualquer coisa de cinematográfico na
escolha dos planos; qualquer coisa de mole e nostálgico, que poderia ser
Macondo a horas de calor. E na Épica Menor tudo volta a lá estar. Poemas que
são quadros, poemas que são pequenos nacos de sonho, poemas que são fotografias
redivivas. E pessoas. E saudades. E as palavras. Repito-o, as exactas e as
necessárias. Não há gordura entre as imagens. Como matemático, Ventura sabe-o
claramente: só o indispensável figura. O resto seria maculatório, por desnecessário.
 

Leia-se um dos momentos altos
deste livro: Memória de um Verão (pág. 33). E comprove-se esse rigoroso
exercício do uso da palavra. Ou todo o capítulo dedicado ao Palácio de Estoi,
que, sem o ser, é uma visita guiada à alma da casa. Uma visita sem concessões,
sem folclore, sem outra coisa que não a mais pura das poesias.
E ao longo da poética de Ventura, por toda esta Épica Menor, não obstante a
linguagem depurada e limpa, as imagens são poderosas. E correm nelas as vozes
de Egito Gonçalves, de José Gomes Ferreira, de Eugénio de Andrade; mas também
as de Paul Célan, de Holderlinn e de Júdice. “Sou um arqueiro de um exército em
fuga./Passei fome e frio nas estantes da biblioteca/ ferido pelas palavras
refugiei-me no litoral”(pág. 21). Como não recordar Mathias Fergusson e o seu
regimento? E quando nos descreve o seu Jardim, os capitéis das colunas, a
sombra ausente, os carneiros que pastam, a aura solene das palmeiras, as
delícias da água; como não evocaremos o poema “A Música” de Eugénio de Andrade?
“Os álamos/ Essa música/ de matutina cal./ Doces vogais/ de sombra e água/ num
verão de fulvos/ lentos animais.” 

Ventura contempla e lê a
paisagem; e escreve-a. E evoca a cada escrita essa grande corrente da poesia
que nele se recolhe, de tantas leituras que a sua sensibilidade apurou. Todo o
poeta se move nesta rede intertextual, onde bebe as melhores influências. E só
os grandes criadores conseguem bebê-las e delas fruir, ressuscitando-as nos
melhores poemas que lavram. 

O livro de Ventura, como dele
disse Martim de Sousa Gouveia, tem ainda, nas suas viagens aos lugares e às
memórias, “uma profunda pregnância erótica tonalizada disforicamente por um
certo desalentamento”. 

Mas preside sempre, nesta poesia,
ainda que por si reconheça que “em vão se esforçam os obreiros / as obras já
estão feitas e nenhum decreto construirá pirâmides”, preside nela sempre uma
clara esperança que vem da luz do lugar em que se habita e se sonha: “Habitamos
o lado mais claro do sol” (pág.31); e “a luz que entra pelas janelas/ revela os
segredos dos deuses” (pág. 27).

Poesia luminosa, esta.

QUE DIZEM OS POETAS ALGARVIOS E ANDALUZES DE AGORA? - 2
Fernando Cabrita

SOLO MEMORIA DE LA VIDA– Emilio
Duran

Não sendo propriamente um poeta
novo, Emilio Duran é, incontestavelmente, um poeta andaluz deste século e deste
tempo. Sevilhano, com o seu primeiro livro -- Paralelo 40 -- editado em 1975 (a
que se seguirão outros 12 títulos durante as décadas de 80 e 90), Emilio Duran
é o exemplo claro do poeta que projecta, a cada verso, a sua poesia para o
futuro. Os seus versos são lúcidos, claros, entranháveis, e mais que tudo,
intemporais. Por isso mantem-se rigorosamente actual. Dele e da sua obra disse
Antonio Enrique, outro poeta andaluz, granadino, que “Emilio Duran posee una
virtud poética esencial: el entusiasmo, entendiendo por tal el amor por todas las
cosas. Estamos ante un poeta cronológicamente atípico, un poeta-bisagra, ya que
si físicamente pertenece a la década de los sesenta por fecha de nacimiento,
literariamente es de la siguiente”.
E eu acrescentaria, a Enrique: Duran literariamente é da geração seguinte; mas
sempre e sempre da seguinte, seja qual a que venha. A escrita de Duran é de
todos os tempos. Desde logo ágil, fluente; mas rigorosa, séria, fecunda. Às
vezes triste, como a vida. Às vezes revolvendo-se no fracasso da existência.
Mas também brindando na exultação dos pequenos triunfos, dos amores, das
ilusões por vir. E por entre a tristeza e a exultação, nela passa toda a
ironia, jogada de cima, como se de algum olimpo, sobre as existências obscuras
e tristes. 

Depois Emilio Duran é um poeta
sumamente atento. Poesia que é olhar, mas olhar crítico. Nada escapa à sua
observação.

Observa. Recolhe. Yo me dedicaba
al placer sin nombre de almacenar recuerdos, confessa no poema Desfile. Depois
a memória, conservando e enobrecendo o que ficou, transmite essa filtragem de
coisas, momentos, pessoas que já não estão, idades que se extinguiram,
ternuras, desgostos. E o que resulta são poemas de fina factura. E no seio de
tudo, alimentando o poema e alimentando-se dele, um necessário fio de fuga à
normalidade, ao cinzento dos dias; um fio de fantasia nova, feita de novas
palavras, de novos sentidos. Uma linha mestra de desvario e glória, esse pó das
estrelas que penetra cada palavra da carga poética essencial.

O propósito vinha já anunciado,
como um lema ou uma consigna para a vida por viver e a escrita por fazer, desde
o primeiro momento, no Paralelo 40: “Metamos un injerto de locura /en el tronco
gris do lo diário”, anunciava Duran já nesse distante 1975. E acrescentava:

Te regalo rosas rojas.

Igualmente podria regalarte
dromedarios,

una foca poliglota o un abeto

fóssil del período cuaternario.

Essa ironia que é a flor da
existência, está na obra; e está também no homem. Conheci Emílio Duram na
década de 90, era ele um poeta já premiadíssimo e um escritor de primeira água.
Recebera, pelos seus livros de poesia, nessa década de 90, prémios literários
tão importantes como o Prémio Miguel Hernandez de Poesia (1991), Premio Ponte
Zuazo, em 1992, o prestigiadíssimo Premio Leonor de Poesia, em 1994, -- que juntou
ao Prémio de Novela Camilo José Cela, também de 94 --, e o Villa Peligros de
Poesia, em 1996. Viria ainda a acumular outros prémios, já neste século. A
primeira impressão que tive dele foi a de um educado cavalheiro, culto,
despretensioso, amante da vida e senhor de uma suprema ironia, que transparecia
a cada passo da sua fala. Traduziu particularmente para castelhano o meu Noites
de Sevilha, que ia ali ser apresentado; e depois ele mesmo, com Juanjo Perales,
fizeram a apresentação desse meu livro no 4 Gats dessa cidade, em 1999.

Dois anos depois fiz questão de
trazer a poesia de Emílio Duram ao Algarve. Traduzi alguns dos seus poemas,
seleccionando-os de diferentes livros. Numa noite de festa reunimo-nos, amigos
e admiradores de cá e de lá, em Olhão, a apreciar a poesia deste autor e a sua
capacidade de nos fazer sorrir a cada pensamento grave.
Mesmo agora que a sua visão se deteriora, Emílio mantem essa poderosa força do
bom humor, como uma corrente que o liga ao que de mais forte a vida tem. Em
Novembro de 2012 fui assistir à apresentação, na Casa Del Libro de Sevilha, da
antologia da sua poesia de 1974 a 2010. Com esse sentido gracioso que nos
ensina que mesmo as coisas inelutáveis não devem deixar de nos fazer sorrir,
Emilio titulou a antologia de Toque de Silencio. E explicou aos ouvintes: ele
tinha alguma coisa de militar. E quando o toque de silêncio, no exército, se
fazia ouvir, uma densa quietude tomava conta das coisas, e ficava só a memória
do dia que passara. Assim fazia ele agora, porque achava que já lhe era penosos
continuar a escrever. E deixava este Toque de Silêncio, a encerrar uma obra
vasta. “Del mismo modo que el toque que silencia el campamento, cuando el poeta
cree haber dicho lo que le agitaba las entrañas, debe sentir la obligación moral
de callarse, a menos que tenga el lamentable y senil defecto de repetirse.”
Toda uma lição para quem – e tantos são –, arrastando poesias que já foram
jovens, hoje as trazem insistentemente, velhas e caducas, a encher escaparates
e a diminuir-se no nosso critério.
Na antologia de 2012 estão poemas de todos os seus livros; e um Confiteor, em
que o poeta declara, sem rebuço, que os seus poemas foram escritos em “estado
de necessidade”; e que a maior parte são gritos de angústia, de amor ou de
rebeldia. São-no, na verdade. Mas gritos de poderosa força estética, de intensa
poesia. E, em todos, esse inevitável passar do tempo. A vida a escoar-se. As
coisas que vivemos a irem-se por obscuras sendas, e delas quedar-se só memória.
Por isso, de entre todos, destaco este seu livro SOLO MEMORIA DE LA VIDA,
também agraciado com o Prémio Ciudad del Guadaira em 1996. Ali há, perpassando
tudo, a ressonância das lembranças antigas. Lede, por exemplo, o poema Antiguos
Alumnos; mas sempre, sobre a memória, o decurso do tempo; e o sentido da perda.
Olvidemonos./ Bebed – como hago yo – cada dia su vino./ Fuímos las victimas de
un naufragio/ donde nadie se salvó (pág. 13)

Ou: derrotó el tiempo huertas e
memorias/Ya no queda nada… (Arroyo de San Juan, pág. 24). Sintomático, sobre os
demais: la muerte me recuerda/ su próxima visita./ Tan verde por el césped/ nos
va dejando huellas de su paso:/ la derribada hoja,/ el anciano al sol/ esa
paloma de quebradas alas,/ mi memoria de un tiempo/ que ya es ceniza… (La
Muerte Pasea por El Parque, pág.52). 

Os poemas são em geral curtos,
sólidos, crus mesmo, alguns. A concisão é notável; e Duran concilia-a com
imagens fortes, surpreendentes, de grande efeito literário e significância
poliédrica, à uma estranhas e belas: “hombre herido por el tiempo” (pág.9); “un
edén de largas piernas sólidas coronadas por pubis como acantos” (pág. 11), “
me assomé a las hondas avenidas de tus ojos” (pág.19); ”la clara manzanilla de
algunas esperanzas” (pág. 22); “tu amor se iba por los apuñalados cerros del
ocaso”( (pág. 25); “por las calles, bebiéndome la luz y el aire “( pág.75).
O amor, a perda, a certeza da morte vindoura, o tempo a escorrer entre as mãos.
Tudo está, soberbamente está, em alto plano, nesta poesia de Duran, de que este
livro é apenas um exemplo. Mas igualmente ali está a raiva (ainda que suavizada
pelas blandícias da ironia) que vem da certeza das desigualdades, da pobreza
que já aí vinha, galopante, e que o poeta antecipava. E isso também, se tudo o
resto já não bastasse, fazem de Durán um poeta novo, hodierno, intemporal.

“Duerme su miséria en la cabina
de un cajero automático./ La VISA le outorga/ un préstamo de noches tíbias,/
antes que se congele/ su crédito de hombre” (Mendigo Durmiendo en La Cabina de
un Cajero Automático”, pág.39).

QUE DIZEM OS POETAS ALGARVIOS E ANDALUZES DE AGORA?
Fernando Cabrita

ODES – João Bentes

Deixemo-nos de tretas. Não há bons nem maus poetas. Há poetas. E há, de entre
eles, os que seguramente passarão altivamente sobre a espuma dos dias, marcando
já, com novidade e rigor absolutos, um lugar no futuro. São os grandes poetas.
É o caso de João Bentes.

Não interessa que outras coisas
escreveu antes. Não sei se outras coisas escreveu ou irá escrever depois.
Mas basta-lhe ter escrito as ODES (Ed. 4águas, 2012) para que se imponha como
uma das vozes poéticas mais marcantes deste início de século na nova poesia
portuguesa, ao lado dessas outras também recentes vozes, e também
intensíssimas, de Ana Marques Gastão, Golgona Anghel, Miguel Godinho, Vasco
Gato, Jorge Reis Sá, José Carlos Barros, Margarida Vale de Gato ou Joana
Serrado. É toda uma nova geração de poetas já afirmada ou a afirmar-se, a
construir uma obra de modernidade e, muito mais do que isso, de
intemporalidade.
João Bentes está, assim e com as ODES, neste lugar cimeiro da novíssima poesia
portuguesa. Só a absoluta e escandalosa falta de crítica literária em Portugal
(onde a crítica se substituiu pela palmadinha nas costas) faz com que obras e
autores como estes estejam contudo quase que num limbo. Quem hoje escreve e
pretende dar a conhecer a sua obra, sente contra si todo o peso dos interesses
literários instalados. As editoras editam apenas o que sabem que já vende. Ou,
pior do que isso, apenas os poemitos de banqueiros reformados, vedetas de TV ou
gente do meio, afilhados e protegidos. As meninas que passam modelos, os
arrivistas, os que mostram a cara na TV por interpostos padrinhos, os
medíocres, em suma. Há quem diga que essa é uma poesia má. Volto a dizer que
não reconheço boa ou má poesia. Reconheço poesia; e esse género de coisa
publicada, à vista e por favor, não é poesia. Por favor!
A poesia que nos enobrece, como a de Bentes, vai todavia e felizmente, com
denodo, com raiva quase, furando a custo seu lugar, em leituras, em divulgações
entre amigos e leitores mais ou menos fiéis, em apresentações em associações e
clubes, ou em recitais quase marginais. Corre nas redes sociais, mostra-se nos
blogs. Quem pensa que este é o destino da mediocridade, engana-se. Este é o
destino que tantas vezes a mediocridade congénita e reinante nos traça; o
destino que os vaidosos e petulantes, sapos a incharem como bois, impõem a
quem, sem sequer pensar nisso, lhes retira a luz falsa sob a qual se movem a
dar-se ares de estrelas. Quem não é poeta do regime, quem não tem amigos a
escrever nos jornais da especialidade, quem recusa o destino macrocéfalo de ter
que se exilar em Lisboa para poder usufruir de alguma atenção, vê-se
marginalizado, empurrado para o esquecimento, omitido. Mas nunca está
marginalizado, nem esquecido, nem desconhecido quem produz uma poesia como a de
Bentes. Quem produz estas ODES.

As ODES são, para lá de grande
poesia, também um manifesto e grito de revolta contra esta situação de
discriminação:

E foi preciso morrer-me o pai

Para regressar à seiva do meu ser

Afastar-me lentamente das coisas
deste mundo

Até conseguir melhor forma de não
querer

Com a frieza de me despojar de
todos e de tudo

Para que apenas tenha o que
sempre houve antes 

que é esta terra onde vivo e que
também é minha

onde recuso a vossa estranha
liberdade

levanto forte e alto o duro braço
da poesia. (pág. 24)

Porque em boa verdade morremos
todos, nesta estranha liberdade, na agonia de ver desprezados os melhores. “A
televisão poupa o pensar” como diz Bentes; e nisso não estamos muito distantes
do regime que havia antes, “quando aquela coisa dos cravos/ liberalizou o
acesso ao ar condicionado”.

As ODES reflectem sobre a
democracia que temos, em que “o estado zela pela higiene dos dias” e dos
“grandes falos de betão levantados nas cidades”; e sobre a angústia, o sentido
de perda e de desorientação desta geração sem futuro visível (e não, não é
apenas um futuro económico…), desta prisão concentracionária em que os nossos
dias se transformaram.

Mas a revolta das ODES tem em si
o poder da ironia, ora cáustica, dura; ora leve, ligeira. E embora plural no
título e plural na repartição dos poemas, as ODES são, penso-o, um só texto,
uma única e poderosa canção de raiva e de esperança. Há em tudo uma unidade,
uma hegemonia, uma solicitação de espírito única e singular, em que toda a
dispersão vem cimentada na palavra intensissimamente poética. 

É um livro sem concessões à
vulgaridade, nem ao facilitismo. Mesmo o que se consideraria palavrão solto,
obscenidade que chocasse ainda todo o bom leitor politicamente correcto e
liberal q.b, (e as ODES começam, de modo tão livre, proclamando que se fodam/
párias protocolos/ papagaios de sala/ gente muito aprendida/ putas frágeis a
envelhecer), são profundos e necessários golpes de alma da novíssima poesia que
ali transpira. Tão diferente, esta forma expressiva de Bentes, do recurso fácil
e bacoco com que tantos supostos poetas -- a passar-se por “escritores
malditos”-- aparecem a bolsar sinonímia alarve e obscena. Lançam, esses, mão
abundante destes bordões estafados, que apenas são, nos seus casos, falsas
mostras de “liberdade” do artista que se supõem; expressões paremptósicas de
palavreado, já não de letras, inúteis no contexto, desgarradas, a ressumar
insinceridade, despropósito, inoportunidade.
Não com Bentes.

É que as ODES, se bem que
singulares e de uma originalidade patente, são filhas lídimas da poesia da Beat
Generation. Não sei, nem me interessa, se João Bentes leu Gregory Corso,
Kerouac, Ginsberg ou Ferlinghetti. Lendo-os ou não, eles estão todos lá, na sua
poesia. Há uma linha de darwinismo literário que una a poesia à poesia, e que
vem descendo, imemorial, dos aedos aos nossos dias. O Canto a Mim Mesmo de
Withman, que perpassou, suavizado pelo renascentismo redivivo e sublimado de
Pound nos Cantos, e depois se reacendeu em William Carlos William e depois em
Allen Ginsberg, Peter Orloovsky, Gary Snyder e outros, continua, desaguando e
mantendo-se corrente de um rio poderoso, nestas ODES. Ler o poema que começa (
pág.20) vim atado à minha mãe com meias voltas no cabeço, é sentir de novo
aquele vendaval de força que nos invadia quando líamos, sempre em voz alta, “ I
saw the best minds of my generation destroyed by madness, starving hysterical,
naked,…” de Ginsberg; ou I opened this poem with a yawn thinking how tired I am
of revolution de Anne Wldmam; ou, por todos, a Autobiografia de Lawrence
Ferlinghetti A vida que levo è muito sossegada, passo os dias no café do Mike….
Correm aqui as memórias de FranK O’Hara na sua Autobiographia Literaria ou de Harold
Norse no I Have Seen the Ligth and i ths is My Mind.
Mas há também ali todo o reflexo da grande poesia portuguesa de XIX/XX, da mais
triste e da mais contida. Sombras de António Nobre no SÓ, rumores da Clepsidra
e do Livro de Cesário Verde, e sempre as grandes Odes de Pessoa, no seu Álvaro
de Campos. Ouve-se ali ainda o eco de Ruy Belo, a voz de Natália Correia em
algumas das suas composições, sonoridades de Cesariny, ou de Nuno Júdice ao
tempo da Crítica Doméstica dos Paralelepípedos e da Noção do Poema,
E depois Bentes consegue mostrar-nos, a cada poema das ODES ,aquilo que
constituía a poesia na sua essência e na sua primeva origem: a conjugação dos
saberes do mundo, a geografia, a história, a observação da sociedade, o
conhecimento pela experiencia da de rerum natura. Experiência que se consegue
arduamente; mas como escreveu Porfírio Optaciano, as musas árduas compõem
felizes poemas.

Com esta ancestralidade difusa no
seu seio, as ODES tinham que ser o que são. Um grande livro. Um livro de
desencanto que é ao mesmo tempo de esperança. Um livro de uma nova geração, em
contraponto com a geração anterior, gente de regime, acomodada e petulante,
embaciada nas suas grandezas tristes e mesquinhas. Creio que foi Bentes quem
disse, num poema que lhe li algures ou na Sulscrito em que figurávamos ambos ou
em algum blog, e com acertada finura, que “mudam-se os tempos mudam-se as
verdades muda-se o poder muda-se a sentença toda a história é feita de mudança
trazendo sempre novas iniquidades…”

Portanto, meus amigos, não percam tempo com coisas menores. Deixem-se de
tretas. Leiam João Bentes. É do melhor que anda por aí.

E se à geração dos novos poetas,
como Bentes, posso permitir-me a sobranceria de presumir um conselho, apenas me
ocorre um, deixado por Ezra Pund: “os ricos têm mordomos, mas não têm amigos.
Nós temos amigos, e não temos mordomos”.

QUE DIZEM OS POETAS ALGARVIOS E ANDALUZES DE AGORA? – 4

Fernando Cabrita

HABITACION COM ISLAS - Manuel
Moya

Manuel Moya é, e digo-o sem
grande receio de me ver desmentido, não só um dos maiores poetas da Andaluzia,
mas um dos grandes poetas contemporâneos da Espanha. E não o digo pelo número e
importância dos prémios que a sua obra tem recolhido ao longo de anos. Digo-o
pelo sentido intrínseco da poesia que rescende do seu texto, e pela marcha
evolutiva que essa poesia vem ganhando, livro a livro, enrijecendo-se,
avolumando-se, crescendo em tonalidade e, contraditoriamente, em complexidade e
simplicidade.
Na verdade, na poesia espanhola actual a obra de Moya avulta. E maior
significado tem isso porquanto a mesma se produz, distante dos luzeiros do
vedetismo mediático, na pacata Fuenteheridos, pequena e belíssima povoação da
Sierra de Aracena, entre castanheiros altos e sombras ridentes. Quando ali
passo -- não muito, com pena o reconheço--, visito-o. E encontro-o regularmente
ocupado na leitura de um novo poeta, na tradução de autores portugueses, na
véspera de uma deslocação para uma palestra, um recital, uma apresentação, ou
para ir receber mais um prémio.
Sei que não é bom método de crítica que, antes de falar do livro de que me
ocupo, abra encómios à demais obra. Mas não resisto a referir alguns dos
Prémios Literários de Moya. Porque isso dá-nos também a dimensão do escritor e
do poeta. Atente-se: Premio Gabriel Celaya, em 1993; Premio Ciudad de Córdoba,
em 1997; Premio Ciudad de las Palmas, em 2000; Premio Leonor de Poesía, em
2001; Premio Fray Luis de León, em 2001 e de novo em 2005; Premio Faroni de Microcuento,
em 2006; Premio Vicente Presa, em 2007; Premio Salvador Rueda, em 2008; Prémio
de Poesía Tomás Morales, em 2010, atribuído na Gran Canaria; Premio Fernando
Quiñones de Novela, em 2010 --este, aliás, atribuído ao seu romance Cenizas de
Abril, no título original, mas romance e trama totalmente portugueses,
percorrendo os anos difíceis da ditadura portuguesa até ao 25 de Abril de 1974,
e prolongando-se para lá dele. Está em Portugal editado pela Sextante, sob o
título Cinzas de Abril. E como se tudo isso não fosse já suficiente para se
perceber estarmos na presença de um poeta maior, eis que em 2013 lhe é
atribuído o Premio Iberoamericano de Poesía Hermanos Machado.  

Habitacion con Islas é uma
antologia de poemas de Moya. Reúne poemas de 1984 a 1988; e até 2000 na edição
portuguesa, a mais tardia. Daí talvez que a minha escolha, entre tantos outros
livros seus, tenha recaído neste, que representa um percurso por aquilo que é o
mais marcante e sintomático do macrotexto poético de Manuel Moya: a interrogação
sobre a marcha e a luta do ser humano, a sua condição, o seu lugar no mundo. A
poética de Moya é uma constante reflexão. A reflexão de um homem que
maduramente se pensa, imperturbável na sua ligação à terra, reencontrando-se
nos outros que se lhe cruzam, nos que antes dele foram, percebendo-se ao mesmo
tempo distinto e igual, renovado ou ultrapassado por si próprio a cada estado
de consciência, cavando dentro de si os estranhos túneis que o conduzem de si
mesmo a si mesmo, e saindo do outro lado, todavia sempre novo, sempre um outro,
e sempre igual ao que fora antes. Este soy/ quien ahora se empeña en habitarme/
quien inútilmente me abraza desde el sueño, confessa-se no Autorretratos (pág.
13). Este soy/ testigo inseparable de ese otro que coincide conmigo en la
vigilia. O canto é, assim, claramente tributário de Rimbaud (que aliás figura,
el pobre Arturo, no poema da pág.29); mas, ainda que tributário, é-o em
profunda originalidade, como se em cada poema ouvíssemos respirar, em haustos
autónomos, ambas as identidades, uma e outra, dois seres que habitam o homem e
o poeta e lhe trazem a estranheza em que se mede. Sintomático, em Memoria de
Ultratumba: En otros fui, ganado a sus facciones/trazándome en sus máscaras.
E na edição portuguesa, aumentada porque recolhendo poesias de anos
posteriores, deparamos (pág. 24) com Os Outros, poema que não resisto a aqui
transcrever por tão ilustrativo daquilo que digo acima: Ás vezes chega e fica a
viver nas minhas camisas/ e brinca com os meus gatos e calça as minhas sandálias,/
ocupa a minha parte nesta cama/ e passeia como um pai ante os meus filhos./ Ás
vezes surpreendo-a seguindo-me em meus passos./ Seus olhos povoam-me as
pupilas,/ sua voz em nada se distingue da minha/ e até nas minhas mãos leio as
linhas das suas./ Ás vezes sento-me a confessar diante do espelho/ as suas
torpezas. /Indecisa, néscia, talvez cega/ foge de mim e logo volta. Não a
chamo:/como chamá-la, se não atende à voz com que a nomeio,/ se ao fim desmente
os meus versos, as minhas palavras/ e pronta se vai, desdenhosa, infiel, tão de
repente.
Ei-la pois, em misteriosa e bela forma poética, essa outra identidade, essa
outra personagem, a outra pele. Há aqui uma desidentificação pessoana, em que o
poeta, ele próprio e como um observador de si mesmo, reconhece a outra criatura
que em si por vezes e de surpresa habita. Uma despersonalização consciente,
como um sonho dentro de um sonho, no melhor sentido de Borges. 

Esta referência a Pessoa não
espanta. Manuel Moya é um cultor da língua e da literatura portuguesa. Pessoa é
só um dos vários autores que Moya traduziu para castelhano e que estudou e
comentou. Pessoa está ali, na sua obra, como aliás está o seu contrário. Já o
disse numa apresentação de um livro de Moya. O seu poema Que claro ser el de esta
piedra (pág. 8, ed. castelhana), integra-se com toda a harmonia no conjunto de
versos de Alberto Caeiro; e nos anteriores de João Lúcio, versos quase polémica
a anos de distância, sobre o que sentem as coisas. Pessoa/Caeiro terá conhecido
a obra de Lúcio através de Francisco Fernandes Lopes (desenvolvo esse tema num
texto publicado nas Teses do Congresso Internacional sobre Álvaro de Campos); e
poetiza no sentido oposto, resumindo que as coisas não sentem; se sentissem
seriam seres, não seriam coisas. Moya, nesta poema de pág. 8, aproxima-se de
João Lúcio. No claro ser de la piedra ele sente vida. Quando paso junto a
ella,/ sin embargo, escucho sus latidos./ Dentro se muéve un perro/ un nardo,
la vulva, el angél. Simplicidade e complexidade. Poderosas imagens, na maior
concisão do texto.

Mas o sentido maior da sua poesia
é essa procura do sentido da existência do homem no mundo. A sua condição na
relação com os outros, com a terra que lavra e que o lavra a ele, com a luta
diária pelo respeito que lhe é devido, pelo seu trabalho, pelo seu pão
quotidiano. Leia-se este pão de cada dia sem sentido religioso. Nada de
religioso encontro aqui, note-se. Mas há em tudo um apelo forte à dignidade, à
inteireza de cada criatura, ao reconhecimento da divindade humana ínsita em
cada um de nós. Por todos, o poema Salario (pág. 43): A cada hombre su luna e
su salario/ su tanto de sal, su pobre mano / abrasada e hueca. Yo fui con eses
hombres y como uno de ellos/ he vuelto a casa con la luna en los ojos.

Leia-se de seguida o poema Campo
de Níjar (pág.11) – e aí está o fecho do anel, o círculo a completar-se. O
homem ante a visão da terra. Essa visão de que de novo virá, de um renascimento
sem pressa. Homem e terra, o homem a cuyo pie las horas, sin urgencia/ ciernen
la arena y la semiente/ que más tarde esparcirán su luz por esos campos. Mas
este homem que Moya canta é o homem real, o homem que vive as venturas e os
anseios da vida, mas também o homem ferido pela maldade dos seus iguais, pela
crueldade, pelo tempo e pelas vicissitudes. A efémera condição humana
aparece-nos inteira em Visita a Pompeya (pág. 40), belo e curto poema que
encerra toda essa fragilidade da nossa condição. Ou ainda na pungente meditação
em Silves, sobre o rio, na companhia da sua filha (pág.37).

Como não apelar então à dignidade
de cada homem, ao respeito pelo seu labor e pelo seu trabalho, encarando-se, a
cada passo, a efemeridade que o marca? Como não denunciar o medo que se apodera
dos homens, das sociedades, medo incutido, decerto, retirando-lhes a individualidade,
o seu próprio conceito, a sua liberdade, a sua divindade de homens sólidos,
livres e inteiros? Esse é o grande sentido da poesia que nesta antologia se
recolhe – e que se condensa, de forma exímia, em Cuanto Diste, poema da pág.26,
e em Ya Ves, na pág.78 da ed. Portuguesa.

E eis que o poeta se revê de novo
a si mesmo, nesse ofício de cavar una trinchera de versos contra el miedo.
Refiro-me ao poema Com Tudo o que Perdeu, que surge na edição portuguesa a
pág.59. Com tudo o que perdeu/ com tudo o que espera debaixo da terra/ com o
fio de tinta/ que tinge o mar e é um sudário/ Em Gádara remota/ no verde
Fuenteheridos/ um homem cava uma trincheira de versos contra o medo.
Memórias de Meleagro, memórias mais recentes de um tempo de fogo e cinza que
Fuenteheridos e os seus arredores viveram sob o franquismo impenitente e
sinistro. Nestes versos contra o medo, ecoa assim toda uma voz ainda, voz
múltipla e ancestral, a da Geração de 27, a de Jorge Guillén em Fuera del
Mundo, ou a de Alberti em Lo que dejé por ti; e sombras luminosas de Cernuda, e
de Aleixandre, e esse Miliciano Morto que cantou Garfias.

Moya reúne em si, como muito
legítimo herdeiro, essa corrente imensa da grande poesia espanhola. Habitacion
con Islas é, seguramente, um caso sério da poesia espanhola; e , por maioria de
razão, da poesia andaluza. E é também uma homenagem a Portugal, que Moya, como
homem da raia, nunca esquece. Recordo sempre uma sua frase, numa apresentação:
o meu encanto por Portugal vem de há muito. Sou um homem que vive na fronteira.
E sei que quando chove no meu pueblo, essa chuva é chuva portuguesa.
E assim, na raia, vai cavando a sua trincheira de versos contra o medo; e vai
continuando a pedir para cada homem, que aterido e débil va en pos de su
salario, que mantenha em si su luna e su prodígio.

O livro está editado em 3 países
e idiomas: castelhano (La Voz de Huelva, 1999), francês (L’Harmattan, 2007), e
português (Livro do Dia, 2008, com excelente tradução do malogrado Rui Costa),
sendo as edições portuguesa e francesa bilingues, ao conterem o original
castelhano.

QUE DIZEM OS POETAS ALGARVIOS E ANDALUZES DE AGORA? – 3

Fernando Cabrita

ÉPICA MENOR – António José Ventura

A poesia de António José Ventura, neste como em outros livros extremamente
gráfica, é igualmente de grande contenção. Ventura trabalha a língua na sua
vertente poética mais pura, fazendo de cada poema um quase retrato de
realidades ou memórias; mas também, ao mesmo tempo, apresentando-os num texto
claro, conciso, curto no seu melhor sentido, profundo e interrogador. O poema
convoca-nos para a visão das coisas que por vezes nos passam quase sem as
apercebermos: uma rua, um jardim, o voo de uma ave, o sino que toca pelas seis
da tarde, os ecos entre as folhagens. Ventura escreve como quem fotografa – e
as palavras são invariavelmente as mais justas e as mais adequadas.
ÉPICA MENOR (Gente Singular editora, 2009, em edição enobrecida por dois
desenhos de António Costa Pinheiro) não é o seu último livro (o último, aliás,
é uma comemoração a dois – eu e ele -- dos 25 anos passados sobre a atribuição
do Prémio Emiliano da Costa à nossa Visões de Marim). Mas aquilo que é
recorrente na sua poesia está lá, como nas demais obras: a memória em visita, a
peregrinação por lugares reais ou literários, cada qual mais simbólico, a
evocação da juventude nas paisagens esvaecidas. E também as referências do
cinéfilo e literato culto que António Ventura é; e sempre a busca dum perfeccionismo,
que se por vezes parece surgir entre as árvores de um jardim, uma alameda, ou
uma rua velha, nunca todavia se alcança.
“Nunca construiremos /a moradia perfeita”, confessava já Ventura no seu A
Cidade das Palavras, de 1994. E essa procura da perfeição continua nesta Épica
Menor. Pelo sonho, pela palavra. “Caminhamos em direcção à noite./A substância
dos sonhos é-nos imprescindível/ para que o nosso corpo não morra.”. A leitura
revela-nos uma poética de calma e apaziguamento, quase influtuante, em
peregrinação a lugares, a anos dissipados, a recordações, nessa busca contínua
da palavra e/ou da cidade perfeitas. A perfeição procura-a Ventura, assim, nas
palavras, em todas as palavras, e na cidade. E também nas pessoas (“sempre a
urbe e o seu passado/ sempre as pessoas e as coisas”).
Mas a cidade é, por muito que a queiramos ver localizada em Olhão, ou à beira
mar de qualquer porto, uma cidade ideal, onde há reminiscências da Grécia
clássica e memórias de jardins românticos do Norte. Trata-se da cidade que não
é, mas poderia ser ou ter sido. A cidade edificanda: “as palavras são para ser
usadas na construção da cidade”, assim abre o Poema Primeiro. Mas também,
sabe-o Ventura, “este é um tempo de desconstrução,/ estranhos sortilégios
ocultam o presente./ Temos o que não queremos/ e queremos o que não temos”
(pág.9). E com palavras, sempre com palavras, vai tecendo essa estranha novela
da cidade indefesa, a cidade devassada por todos os desdéns, todas as ruínas,
todas as apagadas memórias.

Ventura reconhece-o e declara-o.
“Os habitantes ignoravam a memória” (pág.10), mesmo e quando há uma “paisagem
atlântica a seguir a cidade na voluta do poema” (pág.16, em que o poema convoca
a Galiza, e onde ressoam, na minha leitura e repetidamente, as chuvas de Michel
del Castillo, e a morriña galega sobre os prados húmidos). Ventura, com
palavras exactas, certas, adossadas ao texto no preciso lugar de cada poema,
reconstrói e reconstrói e reconstrói a cidade, sucessivamente, empenhadamente,
ao mesmo tempo que a contempla. Contempla-a com um olhar de antiga saudade, mas
também de pena pelo futuro. No seu intertexto está reconhecido que as palavras,
por exactas que sejam, não têm o condão de fazer ressurgir, do tempo, a cidade
perfeita, a cidade que foi outrora e pode ser no porvir. Urbicanda, como um
sonho, ou um Desejado que se revele por entre os nevoeiros imemoriais.
Mas – e ai do cidadão que o constata!; mas que vitória para o poeta que o
entende (pois é essa a alma da sua poesia e o contraste e a contradição em que
ela exulta)! -- a cidade onde Ventura se move, na sua realidade física, não é a
cidade do seu ideal poético. É, todavia, uma cidade sem palavras. Ele sabe-o:

A cidade sem defesa

e ausente de palavras

movimenta-se como um rio 

por onde não correm as águas.

Por isso a descrença do poeta. Por isso a sua Épica se lhe figure Menor. Não
menor por que menos poética; mas menor porque em vão se esforça, ante o
desinteresse e o alheamento. A cidade é de breves casas/ transformadas em
casernas/ abrigam corpos de homens/ cheios de cicatrizes várias (pág. 32). Sem
se aperceber, sem cuidar do que é poético, do que de nobre e alto e luminoso em
si encerra, a cidade derrui-se a si mesma. Destrói as suas memórias, os seus
recantos, os seus segredos. O que lhe era íntimo perde-se. O que a definia
esvai-se. Ficam as efemeridades, os ruídos, as vagas espumas dos dias. É Roma
invadida pelos bárbaros, que desconhecem e não curam da palavra. Da palavra
antiga, patrimonial. Ignoram-na. Não a percebem. Menosprezam-na. Ventura há-de
dizê-lo mais claramente num poema posterior, no livro 40 Poemas, de 2012:
passam autarcas e secretários de estado/raparigas com vestidos de noite/
adolescentes de t-shirt/ bêbados, loucos, suicidas/ prostitutas, seres de sexo
indefinido/ alarves, rústicos e proxenetas/ vampiros da manhã que se aproxima.

Ventura lê a realidade e transforma-a concisamente.Como dele já disse Maria
Alzira Seixo, numa crítica de 1996, “ o autor capta muito bem atmosferas
físicas e intensidades caracteriais; e penso ainda no estudante de Literatura e
na sua aprendizagem dos processos de descrição em poesia, da selecção de
materiais e da relação sujeito/objecto, ao ler poemas como este, “Uma Rua de
Olhão”:

Uma mulher espreitando num
postigo;

um carro velho abandonado

um cão vadio na esquina,

uma linha de sombra

casas, açoteias e mirantes, 

calor e estagnação 

deste Sul luminoso e inóspito.
(de A Cidade Das Palavras). 

Na verdade, assim é. Ventura capta estes golpes de realidade com o mais fino
bisturi poético. Há aqui alguma coisa de Cesário Verde, também a lançar ao
papel os seus alexandrinos exactos; qualquer coisa de cinematográfico na
escolha dos planos; qualquer coisa de mole e nostálgico, que poderia ser
Macondo a horas de calor. E na Épica Menor tudo volta a lá estar. Poemas que
são quadros, poemas que são pequenos nacos de sonho, poemas que são fotografias
redivivas. E pessoas. E saudades. E as palavras. Repito-o, as exactas e as
necessárias. Não há gordura entre as imagens. Como matemático, Ventura sabe-o
claramente: só o indispensável figura. O resto seria maculatório, por desnecessário.
 

Leia-se um dos momentos altos
deste livro: Memória de um Verão (pág. 33). E comprove-se esse rigoroso
exercício do uso da palavra. Ou todo o capítulo dedicado ao Palácio de Estoi,
que, sem o ser, é uma visita guiada à alma da casa. Uma visita sem concessões,
sem folclore, sem outra coisa que não a mais pura das poesias.
E ao longo da poética de Ventura, por toda esta Épica Menor, não obstante a
linguagem depurada e limpa, as imagens são poderosas. E correm nelas as vozes
de Egito Gonçalves, de José Gomes Ferreira, de Eugénio de Andrade; mas também
as de Paul Célan, de Holderlinn e de Júdice. “Sou um arqueiro de um exército em
fuga./Passei fome e frio nas estantes da biblioteca/ ferido pelas palavras
refugiei-me no litoral”(pág. 21). Como não recordar Mathias Fergusson e o seu
regimento? E quando nos descreve o seu Jardim, os capitéis das colunas, a
sombra ausente, os carneiros que pastam, a aura solene das palmeiras, as
delícias da água; como não evocaremos o poema “A Música” de Eugénio de Andrade?
“Os álamos/ Essa música/ de matutina cal./ Doces vogais/ de sombra e água/ num
verão de fulvos/ lentos animais.” 

Ventura contempla e lê a
paisagem; e escreve-a. E evoca a cada escrita essa grande corrente da poesia
que nele se recolhe, de tantas leituras que a sua sensibilidade apurou. Todo o
poeta se move nesta rede intertextual, onde bebe as melhores influências. E só
os grandes criadores conseguem bebê-las e delas fruir, ressuscitando-as nos
melhores poemas que lavram. 

O livro de Ventura, como dele
disse Martim de Sousa Gouveia, tem ainda, nas suas viagens aos lugares e às
memórias, “uma profunda pregnância erótica tonalizada disforicamente por um
certo desalentamento”. 

Mas preside sempre, nesta poesia,
ainda que por si reconheça que “em vão se esforçam os obreiros / as obras já
estão feitas e nenhum decreto construirá pirâmides”, preside nela sempre uma
clara esperança que vem da luz do lugar em que se habita e se sonha: “Habitamos
o lado mais claro do sol” (pág.31); e “a luz que entra pelas janelas/ revela os
segredos dos deuses” (pág. 27).

Poesia luminosa, esta.

QUE DIZEM OS POETAS ALGARVIOS E ANDALUZES DE AGORA? - 2
Fernando Cabrita

SOLO MEMORIA DE LA VIDA– Emilio
Duran

Não sendo propriamente um poeta
novo, Emilio Duran é, incontestavelmente, um poeta andaluz deste século e deste
tempo. Sevilhano, com o seu primeiro livro -- Paralelo 40 -- editado em 1975 (a
que se seguirão outros 12 títulos durante as décadas de 80 e 90), Emilio Duran
é o exemplo claro do poeta que projecta, a cada verso, a sua poesia para o
futuro. Os seus versos são lúcidos, claros, entranháveis, e mais que tudo,
intemporais. Por isso mantem-se rigorosamente actual. Dele e da sua obra disse
Antonio Enrique, outro poeta andaluz, granadino, que “Emilio Duran posee una
virtud poética esencial: el entusiasmo, entendiendo por tal el amor por todas las
cosas. Estamos ante un poeta cronológicamente atípico, un poeta-bisagra, ya que
si físicamente pertenece a la década de los sesenta por fecha de nacimiento,
literariamente es de la siguiente”.
E eu acrescentaria, a Enrique: Duran literariamente é da geração seguinte; mas
sempre e sempre da seguinte, seja qual a que venha. A escrita de Duran é de
todos os tempos. Desde logo ágil, fluente; mas rigorosa, séria, fecunda. Às
vezes triste, como a vida. Às vezes revolvendo-se no fracasso da existência.
Mas também brindando na exultação dos pequenos triunfos, dos amores, das
ilusões por vir. E por entre a tristeza e a exultação, nela passa toda a
ironia, jogada de cima, como se de algum olimpo, sobre as existências obscuras
e tristes. 

Depois Emilio Duran é um poeta
sumamente atento. Poesia que é olhar, mas olhar crítico. Nada escapa à sua
observação.

Observa. Recolhe. Yo me dedicaba
al placer sin nombre de almacenar recuerdos, confessa no poema Desfile. Depois
a memória, conservando e enobrecendo o que ficou, transmite essa filtragem de
coisas, momentos, pessoas que já não estão, idades que se extinguiram,
ternuras, desgostos. E o que resulta são poemas de fina factura. E no seio de
tudo, alimentando o poema e alimentando-se dele, um necessário fio de fuga à
normalidade, ao cinzento dos dias; um fio de fantasia nova, feita de novas
palavras, de novos sentidos. Uma linha mestra de desvario e glória, esse pó das
estrelas que penetra cada palavra da carga poética essencial.

O propósito vinha já anunciado,
como um lema ou uma consigna para a vida por viver e a escrita por fazer, desde
o primeiro momento, no Paralelo 40: “Metamos un injerto de locura /en el tronco
gris do lo diário”, anunciava Duran já nesse distante 1975. E acrescentava:

Te regalo rosas rojas.

Igualmente podria regalarte
dromedarios,

una foca poliglota o un abeto

fóssil del período cuaternario.

Essa ironia que é a flor da
existência, está na obra; e está também no homem. Conheci Emílio Duram na
década de 90, era ele um poeta já premiadíssimo e um escritor de primeira água.
Recebera, pelos seus livros de poesia, nessa década de 90, prémios literários
tão importantes como o Prémio Miguel Hernandez de Poesia (1991), Premio Ponte
Zuazo, em 1992, o prestigiadíssimo Premio Leonor de Poesia, em 1994, -- que juntou
ao Prémio de Novela Camilo José Cela, também de 94 --, e o Villa Peligros de
Poesia, em 1996. Viria ainda a acumular outros prémios, já neste século. A
primeira impressão que tive dele foi a de um educado cavalheiro, culto,
despretensioso, amante da vida e senhor de uma suprema ironia, que transparecia
a cada passo da sua fala. Traduziu particularmente para castelhano o meu Noites
de Sevilha, que ia ali ser apresentado; e depois ele mesmo, com Juanjo Perales,
fizeram a apresentação desse meu livro no 4 Gats dessa cidade, em 1999.

Dois anos depois fiz questão de
trazer a poesia de Emílio Duram ao Algarve. Traduzi alguns dos seus poemas,
seleccionando-os de diferentes livros. Numa noite de festa reunimo-nos, amigos
e admiradores de cá e de lá, em Olhão, a apreciar a poesia deste autor e a sua
capacidade de nos fazer sorrir a cada pensamento grave.
Mesmo agora que a sua visão se deteriora, Emílio mantem essa poderosa força do
bom humor, como uma corrente que o liga ao que de mais forte a vida tem. Em
Novembro de 2012 fui assistir à apresentação, na Casa Del Libro de Sevilha, da
antologia da sua poesia de 1974 a 2010. Com esse sentido gracioso que nos
ensina que mesmo as coisas inelutáveis não devem deixar de nos fazer sorrir,
Emilio titulou a antologia de Toque de Silencio. E explicou aos ouvintes: ele
tinha alguma coisa de militar. E quando o toque de silêncio, no exército, se
fazia ouvir, uma densa quietude tomava conta das coisas, e ficava só a memória
do dia que passara. Assim fazia ele agora, porque achava que já lhe era penosos
continuar a escrever. E deixava este Toque de Silêncio, a encerrar uma obra
vasta. “Del mismo modo que el toque que silencia el campamento, cuando el poeta
cree haber dicho lo que le agitaba las entrañas, debe sentir la obligación moral
de callarse, a menos que tenga el lamentable y senil defecto de repetirse.”
Toda uma lição para quem – e tantos são –, arrastando poesias que já foram
jovens, hoje as trazem insistentemente, velhas e caducas, a encher escaparates
e a diminuir-se no nosso critério.
Na antologia de 2012 estão poemas de todos os seus livros; e um Confiteor, em
que o poeta declara, sem rebuço, que os seus poemas foram escritos em “estado
de necessidade”; e que a maior parte são gritos de angústia, de amor ou de
rebeldia. São-no, na verdade. Mas gritos de poderosa força estética, de intensa
poesia. E, em todos, esse inevitável passar do tempo. A vida a escoar-se. As
coisas que vivemos a irem-se por obscuras sendas, e delas quedar-se só memória.
Por isso, de entre todos, destaco este seu livro SOLO MEMORIA DE LA VIDA,
também agraciado com o Prémio Ciudad del Guadaira em 1996. Ali há, perpassando
tudo, a ressonância das lembranças antigas. Lede, por exemplo, o poema Antiguos
Alumnos; mas sempre, sobre a memória, o decurso do tempo; e o sentido da perda.
Olvidemonos./ Bebed – como hago yo – cada dia su vino./ Fuímos las victimas de
un naufragio/ donde nadie se salvó (pág. 13)

Ou: derrotó el tiempo huertas e
memorias/Ya no queda nada… (Arroyo de San Juan, pág. 24). Sintomático, sobre os
demais: la muerte me recuerda/ su próxima visita./ Tan verde por el césped/ nos
va dejando huellas de su paso:/ la derribada hoja,/ el anciano al sol/ esa
paloma de quebradas alas,/ mi memoria de un tiempo/ que ya es ceniza… (La
Muerte Pasea por El Parque, pág.52). 

Os poemas são em geral curtos,
sólidos, crus mesmo, alguns. A concisão é notável; e Duran concilia-a com
imagens fortes, surpreendentes, de grande efeito literário e significância
poliédrica, à uma estranhas e belas: “hombre herido por el tiempo” (pág.9); “un
edén de largas piernas sólidas coronadas por pubis como acantos” (pág. 11), “
me assomé a las hondas avenidas de tus ojos” (pág.19); ”la clara manzanilla de
algunas esperanzas” (pág. 22); “tu amor se iba por los apuñalados cerros del
ocaso”( (pág. 25); “por las calles, bebiéndome la luz y el aire “( pág.75).
O amor, a perda, a certeza da morte vindoura, o tempo a escorrer entre as mãos.
Tudo está, soberbamente está, em alto plano, nesta poesia de Duran, de que este
livro é apenas um exemplo. Mas igualmente ali está a raiva (ainda que suavizada
pelas blandícias da ironia) que vem da certeza das desigualdades, da pobreza
que já aí vinha, galopante, e que o poeta antecipava. E isso também, se tudo o
resto já não bastasse, fazem de Durán um poeta novo, hodierno, intemporal.

“Duerme su miséria en la cabina
de un cajero automático./ La VISA le outorga/ un préstamo de noches tíbias,/
antes que se congele/ su crédito de hombre” (Mendigo Durmiendo en La Cabina de
un Cajero Automático”, pág.39).

QUE DIZEM OS POETAS ALGARVIOS E ANDALUZES DE AGORA?
Fernando Cabrita

ODES – João Bentes

Deixemo-nos de tretas. Não há bons nem maus poetas. Há poetas. E há, de entre
eles, os que seguramente passarão altivamente sobre a espuma dos dias, marcando
já, com novidade e rigor absolutos, um lugar no futuro. São os grandes poetas.
É o caso de João Bentes.

Não interessa que outras coisas
escreveu antes. Não sei se outras coisas escreveu ou irá escrever depois.
Mas basta-lhe ter escrito as ODES (Ed. 4águas, 2012) para que se imponha como
uma das vozes poéticas mais marcantes deste início de século na nova poesia
portuguesa, ao lado dessas outras também recentes vozes, e também
intensíssimas, de Ana Marques Gastão, Golgona Anghel, Miguel Godinho, Vasco
Gato, Jorge Reis Sá, José Carlos Barros, Margarida Vale de Gato ou Joana
Serrado. É toda uma nova geração de poetas já afirmada ou a afirmar-se, a
construir uma obra de modernidade e, muito mais do que isso, de
intemporalidade.
João Bentes está, assim e com as ODES, neste lugar cimeiro da novíssima poesia
portuguesa. Só a absoluta e escandalosa falta de crítica literária em Portugal
(onde a crítica se substituiu pela palmadinha nas costas) faz com que obras e
autores como estes estejam contudo quase que num limbo. Quem hoje escreve e
pretende dar a conhecer a sua obra, sente contra si todo o peso dos interesses
literários instalados. As editoras editam apenas o que sabem que já vende. Ou,
pior do que isso, apenas os poemitos de banqueiros reformados, vedetas de TV ou
gente do meio, afilhados e protegidos. As meninas que passam modelos, os
arrivistas, os que mostram a cara na TV por interpostos padrinhos, os
medíocres, em suma. Há quem diga que essa é uma poesia má. Volto a dizer que
não reconheço boa ou má poesia. Reconheço poesia; e esse género de coisa
publicada, à vista e por favor, não é poesia. Por favor!
A poesia que nos enobrece, como a de Bentes, vai todavia e felizmente, com
denodo, com raiva quase, furando a custo seu lugar, em leituras, em divulgações
entre amigos e leitores mais ou menos fiéis, em apresentações em associações e
clubes, ou em recitais quase marginais. Corre nas redes sociais, mostra-se nos
blogs. Quem pensa que este é o destino da mediocridade, engana-se. Este é o
destino que tantas vezes a mediocridade congénita e reinante nos traça; o
destino que os vaidosos e petulantes, sapos a incharem como bois, impõem a
quem, sem sequer pensar nisso, lhes retira a luz falsa sob a qual se movem a
dar-se ares de estrelas. Quem não é poeta do regime, quem não tem amigos a
escrever nos jornais da especialidade, quem recusa o destino macrocéfalo de ter
que se exilar em Lisboa para poder usufruir de alguma atenção, vê-se
marginalizado, empurrado para o esquecimento, omitido. Mas nunca está
marginalizado, nem esquecido, nem desconhecido quem produz uma poesia como a de
Bentes. Quem produz estas ODES.

As ODES são, para lá de grande
poesia, também um manifesto e grito de revolta contra esta situação de
discriminação:

E foi preciso morrer-me o pai

Para regressar à seiva do meu ser

Afastar-me lentamente das coisas
deste mundo

Até conseguir melhor forma de não
querer

Com a frieza de me despojar de
todos e de tudo

Para que apenas tenha o que
sempre houve antes 

que é esta terra onde vivo e que
também é minha

onde recuso a vossa estranha
liberdade

levanto forte e alto o duro braço
da poesia. (pág. 24)

Porque em boa verdade morremos
todos, nesta estranha liberdade, na agonia de ver desprezados os melhores. “A
televisão poupa o pensar” como diz Bentes; e nisso não estamos muito distantes
do regime que havia antes, “quando aquela coisa dos cravos/ liberalizou o
acesso ao ar condicionado”.

As ODES reflectem sobre a
democracia que temos, em que “o estado zela pela higiene dos dias” e dos
“grandes falos de betão levantados nas cidades”; e sobre a angústia, o sentido
de perda e de desorientação desta geração sem futuro visível (e não, não é
apenas um futuro económico…), desta prisão concentracionária em que os nossos
dias se transformaram.

Mas a revolta das ODES tem em si
o poder da ironia, ora cáustica, dura; ora leve, ligeira. E embora plural no
título e plural na repartição dos poemas, as ODES são, penso-o, um só texto,
uma única e poderosa canção de raiva e de esperança. Há em tudo uma unidade,
uma hegemonia, uma solicitação de espírito única e singular, em que toda a
dispersão vem cimentada na palavra intensissimamente poética. 

É um livro sem concessões à
vulgaridade, nem ao facilitismo. Mesmo o que se consideraria palavrão solto,
obscenidade que chocasse ainda todo o bom leitor politicamente correcto e
liberal q.b, (e as ODES começam, de modo tão livre, proclamando que se fodam/
párias protocolos/ papagaios de sala/ gente muito aprendida/ putas frágeis a
envelhecer), são profundos e necessários golpes de alma da novíssima poesia que
ali transpira. Tão diferente, esta forma expressiva de Bentes, do recurso fácil
e bacoco com que tantos supostos poetas -- a passar-se por “escritores
malditos”-- aparecem a bolsar sinonímia alarve e obscena. Lançam, esses, mão
abundante destes bordões estafados, que apenas são, nos seus casos, falsas
mostras de “liberdade” do artista que se supõem; expressões paremptósicas de
palavreado, já não de letras, inúteis no contexto, desgarradas, a ressumar
insinceridade, despropósito, inoportunidade.
Não com Bentes.

É que as ODES, se bem que
singulares e de uma originalidade patente, são filhas lídimas da poesia da Beat
Generation. Não sei, nem me interessa, se João Bentes leu Gregory Corso,
Kerouac, Ginsberg ou Ferlinghetti. Lendo-os ou não, eles estão todos lá, na sua
poesia. Há uma linha de darwinismo literário que una a poesia à poesia, e que
vem descendo, imemorial, dos aedos aos nossos dias. O Canto a Mim Mesmo de
Withman, que perpassou, suavizado pelo renascentismo redivivo e sublimado de
Pound nos Cantos, e depois se reacendeu em William Carlos William e depois em
Allen Ginsberg, Peter Orloovsky, Gary Snyder e outros, continua, desaguando e
mantendo-se corrente de um rio poderoso, nestas ODES. Ler o poema que começa (
pág.20) vim atado à minha mãe com meias voltas no cabeço, é sentir de novo
aquele vendaval de força que nos invadia quando líamos, sempre em voz alta, “ I
saw the best minds of my generation destroyed by madness, starving hysterical,
naked,…” de Ginsberg; ou I opened this poem with a yawn thinking how tired I am
of revolution de Anne Wldmam; ou, por todos, a Autobiografia de Lawrence
Ferlinghetti A vida que levo è muito sossegada, passo os dias no café do Mike….
Correm aqui as memórias de FranK O’Hara na sua Autobiographia Literaria ou de Harold
Norse no I Have Seen the Ligth and i ths is My Mind.
Mas há também ali todo o reflexo da grande poesia portuguesa de XIX/XX, da mais
triste e da mais contida. Sombras de António Nobre no SÓ, rumores da Clepsidra
e do Livro de Cesário Verde, e sempre as grandes Odes de Pessoa, no seu Álvaro
de Campos. Ouve-se ali ainda o eco de Ruy Belo, a voz de Natália Correia em
algumas das suas composições, sonoridades de Cesariny, ou de Nuno Júdice ao
tempo da Crítica Doméstica dos Paralelepípedos e da Noção do Poema,
E depois Bentes consegue mostrar-nos, a cada poema das ODES ,aquilo que
constituía a poesia na sua essência e na sua primeva origem: a conjugação dos
saberes do mundo, a geografia, a história, a observação da sociedade, o
conhecimento pela experiencia da de rerum natura. Experiência que se consegue
arduamente; mas como escreveu Porfírio Optaciano, as musas árduas compõem
felizes poemas.

Com esta ancestralidade difusa no
seu seio, as ODES tinham que ser o que são. Um grande livro. Um livro de
desencanto que é ao mesmo tempo de esperança. Um livro de uma nova geração, em
contraponto com a geração anterior, gente de regime, acomodada e petulante,
embaciada nas suas grandezas tristes e mesquinhas. Creio que foi Bentes quem
disse, num poema que lhe li algures ou na Sulscrito em que figurávamos ambos ou
em algum blog, e com acertada finura, que “mudam-se os tempos mudam-se as
verdades muda-se o poder muda-se a sentença toda a história é feita de mudança
trazendo sempre novas iniquidades…”

Portanto, meus amigos, não percam tempo com coisas menores. Deixem-se de
tretas. Leiam João Bentes. É do melhor que anda por aí.

E se à geração dos novos poetas,
como Bentes, posso permitir-me a sobranceria de presumir um conselho, apenas me
ocorre um, deixado por Ezra Pund: “os ricos têm mordomos, mas não têm amigos.
Nós temos amigos, e não temos mordomos”.

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