RUY VENTURA

04-09-2019
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DIVIDIR PARA REINAR

            Quando
António Costa acabou com a liderança do Tozé, afastando-o à cotovelada da chefia
do Partido Socialista, batemos palmas. Afinal, pensava-se, Seguro era um líder
poucochinho, mole, sem sangue político suficiente para preencher os corpos
cavernosos da malta, dando tesão à oposição e ao país.

            Quando,
nas eleições legislativas, ele e o seu clube do Rato ficaram em segundo lugar
na corrida, tivemos fezada no seu sorriso malandreco e na sua esperteza de camaleão.
Afinal, fosse por que via fosse, era preciso erradicar o Passos Coelho e os
seus betinhos. Engoliram-se sapalhões com uma boa litrada de sais de fruto.
Precisávamos de uma “nova correlação de forças progressistas”, capaz de
devolver aos portugueses os seus rendimentos, roubados (dizia-se) pelos
malfeitores da troika. E a fezada deu
resultado. O novo Sant’ Antoninho, manobrador ardiloso, lá conseguiu juntar e
untar peças desconjuntadas numa inesperada traquitana. E nasceu a geringonça,
mesmo contra algumas vozes internas, prontamente caladas com boa rolha ou
reduzidas à sua ruidosa insignificância.

            Aplaudimos,
babados, a solução governativa. Rejubilámos com a reviravolta, suspirando por
mais uns euros na depauperada conta bancária e pelo regresso aos tempos em que
podíamos pedir empréstimos à banca sem medo do futuro e usar à fartazana o
cartão de crédito, esturrando o numerário que não tínhamos em tudo quanto nos
apetecesse, desde a compra de pacotes de férias na estranja à aquisição de
cuecas de boa marca. Poucos voltaram a lembrar a inteira responsabilidade dos
socialistas e do seu “menino de oiro” chamado Sócrates na vinda do FMI e dos
seus comparsas. Só os resmungões envinagrados continuaram a recordar quem
sugara e para onde, em seis anos de gestão pê-ésse, o pecúlio que então nos
restava. A bem da nação e da carteira, esquecemos quase todos que António Costa,
Augusto Santos Silva e outros membros da sua companhia haviam sido amnésicos e amblíopes
governantes daquele Senhor Engenheiro formado ao domingo, com vida de nababo em
Paris e amigos-chave na Venezuela e noutros lugares mal frequentados. Que nos
interessava esse passado, se a massa já começava a pingar na algibeira e até
parecia ser possível – e fácil – equilibrar mesmo assim as contas públicas?

            Quando
começaram a surgir os sinais de que nem todas as plantas do jardim do Palácio
de São Bento eram orégãos, de que a propagada “devolução de rendimentos” era
apenas um dar com uma mão e tirar com a outra (uma espécie de ilusionismo, não
de feira, mas de alto coturno), de que a redução das estatísticas do desemprego
beneficiava da emigração, de salários indignos, do trabalho precaríssimo e a
tempo parcial – fizemos por não acreditar. Olhámos para o lado e assobiámos,
não crendo que um sorriso tão patusco quanto o de Centeno, ladeado pelo smile tão de Buda ou marajá do amigo
Costa, pudesse enganar a lusa gente.

            Quando
o enfezado gato escondido começou a mostrar o seu rabo pouco limpo e menos
firme, ainda estrebuchámos, depois de sentirmos um arrepio. Afinal, começava a
cheirar a esturro. Fãs de Costa e da geringonça, mesmo assim fomos para o
feicebuque mandar umas bocas e espumar, nem sempre com boa ortografia. Olhámos,
todavia, para as outras agremiações políticas, para os seus capatazes e
capatazas, e acabámos por suspirar como certos cônjuges traídos, dizendo para
os botões da camisa ou da braguilha que, mal por mal, antes o Toni e os seus
anexos, apesar de conhecermos de ginjeira o histórico da casa socialista.
Poderiam mostrar uma face pouco digna e nada empática, mas ainda assim tínhamos
na carteira o que faz falta. Poderiam exibir-se pouco ou nada competentes – a
não ser na promoção social, política e financeira da primáfia, dos amigalhaços ou
da clientela partidária e empresarial –, mas afinal, quando era preciso
músculo, a erecção lá aparecia, ainda que alimentada por comprimidos.

            De
vez em quando, o grilo falante azucrinava-nos a consciência. Fomos fazendo a
barrela. Afinal, não custava nada vociferar que “é tudo a mesma canalha… mas
antes este que o Passos… sempre nos deu mais alguma coisa…” Em segredo,
contudo, no outro ombro havia sempre o atávico diabinho que nos levava a
compreender a corrupção e o tráfico de influências: “Bem faz ele e os seus quando
se amanham… Nós se lá estivéssemos faríamos o mesmo… A família é para ser
ajudada… E quem não gosta de ser agradável ou de fazer um favor a um amigo?
Somos gajos porreiros.”

            Quando
vimos o governo e os seus acólitos espezinhar e difamar os funcionários
públicos, sobretudo os polícias, os militares, os professores, os enfermeiros e
vários outros profissionais – batemos palmas. Afinal, não passam de malandros
que ganham demasiado para o que fazem. “Que vão para a gaja de maus costumes
que os pôs no mundo! Chulos! Deviam ser proibidos de fazer greve… para baixarem
a bolinha!” Quando a musculatura do governo se atirou aos estivadores, aos
camionistas e a outros trabalhadores, batemos as palmas ao CEO do país e aos
seus moçoilos e moçoilas. “E se fosse contigo…?” Que raio de pergunta nos
haveria de assaltar! Se um dia precisarmos de reivindicar os nossos direitos ou
melhorarmos as nossas condições de trabalho, logo se vê. Somos gente séria, não
safardanas como essa malta que quer parar as instituições, a economia,
Portugal.

            Diz-se
pelas esquinas que uma boa parte dos portugueses é como aquele sujeito que,
traído às claras pela mulher com um empresário que lhe pagava as contas de
casa, afirmava sem vergonha aos amigos: “Cornos que deitam azeite, deixam-se
crescer…” Haja capital, próprio ou alheio, e o resto que se lixe. Direitos
laborais, bom nome alheio, liberdade de expressão, educação de qualidade e
outras bizantinices interessam pouco ou nada, desde que haja circo, deboche e
pimbalhice em barda, barriga a transbordar, passeio, carro novo e gadgets. O resto são cantigas e
parvoíces de quem se mete em políticas.

            Diz-se
pelas esquinas – mas eu não quero acreditar. Tenho todavia para mim que a larga
malta que gere, bem ou mal, este país acredita na nossa falta de ética, dela se
aproveitando às escâncaras. Se assim não fosse, continuariam a reinar, a gozar impunemente
com as nossas caras? Se assim não fosse, continuariam a dividir os portugueses,
atirando-nos uns contra os outros? Dividir para reinar parece ser a máxima
vigente. Não seremos todos parvos, mas lá que as papas e os bolos parecem
surtir efeito, ninguém pode negar.

Ruy
Ventura

(Editado na edição on-line do jornal "Público", de 13/8/2019.)

DIVIDIR PARA REINAR

            Quando
António Costa acabou com a liderança do Tozé, afastando-o à cotovelada da chefia
do Partido Socialista, batemos palmas. Afinal, pensava-se, Seguro era um líder
poucochinho, mole, sem sangue político suficiente para preencher os corpos
cavernosos da malta, dando tesão à oposição e ao país.

            Quando,
nas eleições legislativas, ele e o seu clube do Rato ficaram em segundo lugar
na corrida, tivemos fezada no seu sorriso malandreco e na sua esperteza de camaleão.
Afinal, fosse por que via fosse, era preciso erradicar o Passos Coelho e os
seus betinhos. Engoliram-se sapalhões com uma boa litrada de sais de fruto.
Precisávamos de uma “nova correlação de forças progressistas”, capaz de
devolver aos portugueses os seus rendimentos, roubados (dizia-se) pelos
malfeitores da troika. E a fezada deu
resultado. O novo Sant’ Antoninho, manobrador ardiloso, lá conseguiu juntar e
untar peças desconjuntadas numa inesperada traquitana. E nasceu a geringonça,
mesmo contra algumas vozes internas, prontamente caladas com boa rolha ou
reduzidas à sua ruidosa insignificância.

            Aplaudimos,
babados, a solução governativa. Rejubilámos com a reviravolta, suspirando por
mais uns euros na depauperada conta bancária e pelo regresso aos tempos em que
podíamos pedir empréstimos à banca sem medo do futuro e usar à fartazana o
cartão de crédito, esturrando o numerário que não tínhamos em tudo quanto nos
apetecesse, desde a compra de pacotes de férias na estranja à aquisição de
cuecas de boa marca. Poucos voltaram a lembrar a inteira responsabilidade dos
socialistas e do seu “menino de oiro” chamado Sócrates na vinda do FMI e dos
seus comparsas. Só os resmungões envinagrados continuaram a recordar quem
sugara e para onde, em seis anos de gestão pê-ésse, o pecúlio que então nos
restava. A bem da nação e da carteira, esquecemos quase todos que António Costa,
Augusto Santos Silva e outros membros da sua companhia haviam sido amnésicos e amblíopes
governantes daquele Senhor Engenheiro formado ao domingo, com vida de nababo em
Paris e amigos-chave na Venezuela e noutros lugares mal frequentados. Que nos
interessava esse passado, se a massa já começava a pingar na algibeira e até
parecia ser possível – e fácil – equilibrar mesmo assim as contas públicas?

            Quando
começaram a surgir os sinais de que nem todas as plantas do jardim do Palácio
de São Bento eram orégãos, de que a propagada “devolução de rendimentos” era
apenas um dar com uma mão e tirar com a outra (uma espécie de ilusionismo, não
de feira, mas de alto coturno), de que a redução das estatísticas do desemprego
beneficiava da emigração, de salários indignos, do trabalho precaríssimo e a
tempo parcial – fizemos por não acreditar. Olhámos para o lado e assobiámos,
não crendo que um sorriso tão patusco quanto o de Centeno, ladeado pelo smile tão de Buda ou marajá do amigo
Costa, pudesse enganar a lusa gente.

            Quando
o enfezado gato escondido começou a mostrar o seu rabo pouco limpo e menos
firme, ainda estrebuchámos, depois de sentirmos um arrepio. Afinal, começava a
cheirar a esturro. Fãs de Costa e da geringonça, mesmo assim fomos para o
feicebuque mandar umas bocas e espumar, nem sempre com boa ortografia. Olhámos,
todavia, para as outras agremiações políticas, para os seus capatazes e
capatazas, e acabámos por suspirar como certos cônjuges traídos, dizendo para
os botões da camisa ou da braguilha que, mal por mal, antes o Toni e os seus
anexos, apesar de conhecermos de ginjeira o histórico da casa socialista.
Poderiam mostrar uma face pouco digna e nada empática, mas ainda assim tínhamos
na carteira o que faz falta. Poderiam exibir-se pouco ou nada competentes – a
não ser na promoção social, política e financeira da primáfia, dos amigalhaços ou
da clientela partidária e empresarial –, mas afinal, quando era preciso
músculo, a erecção lá aparecia, ainda que alimentada por comprimidos.

            De
vez em quando, o grilo falante azucrinava-nos a consciência. Fomos fazendo a
barrela. Afinal, não custava nada vociferar que “é tudo a mesma canalha… mas
antes este que o Passos… sempre nos deu mais alguma coisa…” Em segredo,
contudo, no outro ombro havia sempre o atávico diabinho que nos levava a
compreender a corrupção e o tráfico de influências: “Bem faz ele e os seus quando
se amanham… Nós se lá estivéssemos faríamos o mesmo… A família é para ser
ajudada… E quem não gosta de ser agradável ou de fazer um favor a um amigo?
Somos gajos porreiros.”

            Quando
vimos o governo e os seus acólitos espezinhar e difamar os funcionários
públicos, sobretudo os polícias, os militares, os professores, os enfermeiros e
vários outros profissionais – batemos palmas. Afinal, não passam de malandros
que ganham demasiado para o que fazem. “Que vão para a gaja de maus costumes
que os pôs no mundo! Chulos! Deviam ser proibidos de fazer greve… para baixarem
a bolinha!” Quando a musculatura do governo se atirou aos estivadores, aos
camionistas e a outros trabalhadores, batemos as palmas ao CEO do país e aos
seus moçoilos e moçoilas. “E se fosse contigo…?” Que raio de pergunta nos
haveria de assaltar! Se um dia precisarmos de reivindicar os nossos direitos ou
melhorarmos as nossas condições de trabalho, logo se vê. Somos gente séria, não
safardanas como essa malta que quer parar as instituições, a economia,
Portugal.

            Diz-se
pelas esquinas que uma boa parte dos portugueses é como aquele sujeito que,
traído às claras pela mulher com um empresário que lhe pagava as contas de
casa, afirmava sem vergonha aos amigos: “Cornos que deitam azeite, deixam-se
crescer…” Haja capital, próprio ou alheio, e o resto que se lixe. Direitos
laborais, bom nome alheio, liberdade de expressão, educação de qualidade e
outras bizantinices interessam pouco ou nada, desde que haja circo, deboche e
pimbalhice em barda, barriga a transbordar, passeio, carro novo e gadgets. O resto são cantigas e
parvoíces de quem se mete em políticas.

            Diz-se
pelas esquinas – mas eu não quero acreditar. Tenho todavia para mim que a larga
malta que gere, bem ou mal, este país acredita na nossa falta de ética, dela se
aproveitando às escâncaras. Se assim não fosse, continuariam a reinar, a gozar impunemente
com as nossas caras? Se assim não fosse, continuariam a dividir os portugueses,
atirando-nos uns contra os outros? Dividir para reinar parece ser a máxima
vigente. Não seremos todos parvos, mas lá que as papas e os bolos parecem
surtir efeito, ninguém pode negar.

Ruy
Ventura

(Editado na edição on-line do jornal "Público", de 13/8/2019.)

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