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14-03-2019
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O   KITSCH  PORTUGUÊS

Reflexões
sobre o inautêntico na história cultural lusa

 

por João
Medina

 

 

“O mundo dos valores estéticos deixou
de ser dicotomizado

entre o Belo e o Feio;

entre a arte e o conformismo
estende-se a vasta praia do Kitsch.”

(Abraham A. Moles, O Kitsch, 1971)

 

                              “…o kitsch é o império dos espaventos descontrolados da emoção e a
sensibilidade, da desproporção entre a substância e o invólucro (…). O kitsch define-se por comparação porque a
sua natureza é derivada e parasitária. O kitsch
está para a arte como a margarina para a manteiga, o Arcopal para a louça, o
romance histórico para a História, a Isabel Allende para o melhor Garcia
Marquez, (…). O que os anúncios turísticos da Junta da Andaluzia para a
realidade da Andaluzia (…). O kitsch
é inseparável da efusão nacional porque esta consiste na translação para o
público daquilo que em rigor pertence ao âmbito das emoções privadas. (…).”

Antonio Muñoz Molina, “«Kitsch»
nacional”, Babelia,  21-IX-2013.

            

 

 

O conceito de K.

 

          Uma
simples evocação de alguns versos bem conhecidos da nossa poesia bastarão para
nos situarem no domínio do kitsch literário
português: “Batem leve, levemente,/ Como quem chama por mim./ Será chuva,
será gente?/ Gente não é certamente / E a chuva não bate assim.” (Augusto Gil),
“ Em quanto é diferente o amor em Portugal!/Nem a frase subtil, nem o duelo
sangrento…/É o amor coração…É o amor sentimento…” (Júlio Dantas, A Ceia dos Cardeais, peça em verso,
1902) .”O melro, eu conheci-o:/ Era negro, vibrante, luzidio” (Guerra
Junqueiro, “O Melro”). “Ser poeta é ser mais alto” (Florbela Espanca). Em todos
estes versos há uma característica comum que merece a designação de Kitsch, tanto em sentido estético ou
sociológico e que, em linguagem vulgar, designaríamos como mau gosto,
banalidade, cliché, estilo possidónio,
pechisbeque [1], etc.. No domínio das
ciências sociais, o termo Kitsch
torna-se consagrado desde o estudo Le
Kitsch. L’Art du Bonheur (1971), do sociólogo francês Abraham A. Moles
(1920-1992).[2] Quanto a este termo alemão,
surge ele na segunda metade do século XIX, derivado do verbo kitschen (atamancar, fazer móveis novos
a partir de velhos trastes) e de verkitschen
(vender a alguém qualquer coisa diferente do que se tinha prometido). O termo aplica-se
a tudo o que pode ser tachado de mau gosto, inautêntico, falsificado, cliché, como aos objectos de fancaria
como aqueles que se vendem hoje nas lojas dos chineses, nos supermercados e nas
chamadas livrarias dos caminhos de ferro. A sua articulação com os grandes
armazéns, nascidos no século XIX – e transformados nos nossos actuais
supermercados – torna estes templos do comércio 
como o paraíso do K., diz Moles, onde reina uma “atmosfera de festa”, a
“festa da compra”, “a embriaguez mercantil e a vertigem.” [3]

O K. pertence ao mundo
mais díspar da nossa vida quotidiana, nos aspectos mais diversos da cultura de
massa, das artes visuais, da literatura, da arquitectura das nossas cidades, da
música, da escultura dos monumentos públicos, dos espectáculos, e tem como
grande difusor mediático a televisão, etc., já que tudo pode ser suporte do K. ou, como dizem os alemães, Kitschträger (portadores de K.), o que
não exclui as modas, as ideias, as atitudes políticas, as pessoas e as próprias
ideologias.[4] Num artigo recente sobre o
problema do independentismo catalão, o romancista Antonio Muñoz Molina, autor
de O Inverno de Lisboa (1992), natural
da província de Jaén, fazia interessantes reflexões sobre a variante política
do K., mostrando que o caso do súbito
fervor autonomista da Catalunha com visita a uma independência política desta
região constituía uma forma de K., precisamente porque este fervor
nacionalista, reforçando os chamados vínculos de sangue e o férvido
nacionalismo que o procura viabilizar, estaria na base a alegada fantasia de
dar aos catalães um Estado-nação desvinculado da hispanidade abrangente que se
acolhe debaixo do pendão da nossa nação vizinha. Diz ele: “O K. é inseparável
da efusão nacional porque esta consiste na translação para o público do que em
rigor pertence ao âmbito da emoções privadas. (…). O K. nacional converte os
laços objectivos da cidadania em vínculos de sangue (…). O K. torna claro e simples o que é tão ambíguo na arte como na
realidade e, se necessário, modela e corrige a realidade para a subordinar a
uma ficção exaltadora. (…). Alentado sem pausa por todas as estratégias da
propaganda e da publicidade e pela força esmagadora das emissões de massa, o K.
nacional leva ao delírio colectivo.”[5]

Este caso mostra até que ponto é vasto o conceito do K., nele se incluindo terrenos tão vastos
que vão desde a vida quotidiana até ao domínio estético propriamente dito,
abrangendo o urbanismo, os seus edifícios, a cerâmica popular e o cartoon. Lembremos uma pequena lista de
obras que consideramos pertencerem a esta primeira categoria de K., a dos edifícios
citadinos:

a) as habitações
galardoadas com  prémios Valmor,
atribuídos em Lisboa desde 1902, premiando arquitectos reputados como Ventura
Terra (três vezes galardoado), Norte Júnior, Adães Bermudes, Jorge Segurado
(1947), etc.[6];  

Réplica do Padrão dos Descobrimentos

b) alguns monumentos
públicos mais emblemáticos da nossa capital, como aquele que inclui a estátua do
marquês de Pombal, na Rotunda da Avenida da liberdade, de autoria do arquitecto
Adães Bermudes e do escultor Francisco Santos, concebido em  1914 mas só completado em 1934; o consagrado  aos Mortos da Grande Guerra, de autoria do
escultor Maximiano Alves e do arquitecto Guilherme de Andrade, concebido em
1924 e inaugurado só em 1931; alguns monumentos mais tipicamente executados na
estética e ideologia comemorativa e triunfalista do Estado Novo, feita de
heróis, navegadores,  monarcas, clérigos
e figuras da cultura do passado, de que é paradigma o Padrão dos Descobrimentos
Marítimos, de Leopoldo de Almeida e Cotinelli Telmo, concebido para a exposição
em Belém, na praça do Império – denominada Exposição do Mundo Português,  por ocasião do Duplo Centenário de 1940 –, obra
elaborada então em  estafe (moldagem do
gesso cozido sobre fibra de cânhamo ou sisal) e só em 1960, por ocasião do quinto  centenário do nascimento do Infante D.
Henrique,  passada à pedra; a Fonte Monumental
da Alameda Afonso Henriques (1942), concebida pelos arquitectos Rebelos de
Andrade e pelos escultores Maximiano Alves e, sobretudo, Diogo de Macedo, o
autor da escultura de Neptuno na bacia central, e das quatro pesadas matronas
que são as Tágides que ladeiam a fonte, havendo ainda baixos-relevos laterais de
Jorge Barradas; depois, já no pós-25 de Abril, o grotesco monumento de Domingos
Soares Branco (1925-1991) a Francisco Sá Carneiro, de 1982, com o busto do
político como que decapitado e pendurado num obelisco com placas inox recortadas a laser.[7] Neste período, comecemos
com a Homenagem ao 25 de Abril, como
se chama o pouco inspirado monumento de João Cutileiro (nasc. em 1937), monumento
conhecido popularmente como “o Pirilau”, erguido no alto do Parque Eduardo VII,
de 1997, além de mal enquadrado no ambiente concebido pelo arquitecto estado-novista
Keil do Amaral.[8]

 

 

 

Estátua a Sá Carneiro, 1982.

Domingos Soares Branco (1925-1991)

 

Monumento ao 25 de Abril, 1997

João Cutileiro (1937-)

O K. também está presente de modo patente na arquitectura
urbana, em edifícios, como a oitocentista estação do Rossio (1886), em Lisboa,
do arquitecto José Luís Monteiro (1848-1942) em estilo pastiche neo-manuelino – e ao qual o ácido Fialho de Almeida chamou
de “macaco-árabe”[9] –, com uma rampa de acesso
pelo largo do Carmo e um túnel do Rossio por onde saem as linhas de Sintra e do
Oeste. Com o Estado Novo e a presença do engenheiro Duarte Pacheco (1900-1943)
como ditatorial Ministro das Obras Públicas de Salazar, de 1932 a 1936 e de novo de
1938 até à sua morte por acidente na estrada, o urbanização e a arquitectura de
Lisboa ganharam não só um plano geral de urbanismo em moldes tipicamente
estado-novistas, assim como o dinâmico renovador da urbe deixaria o complexo
comemorativo da Exposição do Mundo Português – erguido para celebrar o Duplo
Centenário nacional, da qual examinamos noutro local o padrão dos
Descobrimentos – como marcas indeléveis duma opção político-estética na reconstrução
da capital e, para além disso, dum estilo perdurável na epiderme material da
cidade. Neste vasto conjunto urbanístico resultante da dinâmica acção de Duarte
Pacheco ficariam como forma específica de K. não só alguns monumentos e
pavilhões em Belém, mas, sobretudo, a vasta praça do Areeiro e as avenidas circundantes
João XXI e de Roma, sem esquecer a aqui referida Fonte Monumental da Alameda
Afonso Henriques – oposta ao Instituto Superior Técnico –, risco dos
arquitectos Rebelos da Silva e esculturas de Macedo, Maximiniano e Barradas. No
primeiro caso, o da vasta conjunto das praça do Areeiro (1938-43), com a sua
monumentalidade enfática, hirta e arrebicada, avulta a marca do arquitecto Cristino
da Silva (1876-1946), formado em Paris e de tendências modernistas mescladas de
elementos de tradição portuguesa. [10]

 

 

 

Tomás Taveira (n. 1938)

 

 

No período pós-Abril, a
arquitectura K. tem um dos seus expoentes máximos no conjunto das torres das
Amoreiras, em Lisboa, erguidas entre 1980 e 1987, com risco de Tomás Taveira
(nasc. em 1938), arquitecto que fez estudos nos Estados Unidos, donde trouxe
tiques arquitectónicos decorativos de modas então vigentes ali, com arrebiques,
materiais e coloridos que tiveram voga na América do Norte, dando ainda apoio a
três dos “elefantes brancos” dos estádios construídos entre nós na fase do Euro
do futebol. As “taveiradas” das Amoreiras desfeiam bastante a capital,
sobretudo quando o viajante chega a ela de avião, dando-se conta desses pregos
monstruosos cravados no corpo lisboeta.[11] O K.
arquitectónico e monumental não se fica, porém, apenas na capital, já que se pode
lembrar ainda o parque temático e histórico, construído a partir de 1938 e
inaugurado em 1940, erguido nos arredores de Coimbra, no largo de Santa Clara,
projecto que se ficou a dever a um dos barões do salazarismo, o médico Bissaia
Barreto (1886-974), o chamado Portugal dos Pequenitos.[12] Este
complexo lúdico e etnográfico, com um projecto do arquitecto Cassiano Branco,
pretendia compendiar com sentido pedagógico-cultural os monumentos portugueses
mais prestigiados, reproduzidos aqui em escala reduzida, donde o seu nome, além
de que se guiava por um enfático e evidente ideal estado-novista de exaltação
da casticidade e da identidade nacionais  através dum conjunto de casas regionais
portuguesas, solares de Trás-os-Montes e Minho, típicas dessas regiões com as
suas hortas, jardins, azenhas e pelourinhos. Numa fase posterior, procurou-se
sobretudo erguer réplicas miniaturais dos referidos monumentos mais emblemáticos
do país, assim como, a partir de 1950, se quis alargar o seu alcance e  representatividade a todos o espaço colonial,
com as “províncias ultramarinas” africanas, mais Macau, Estado Português da
Índia, Timor e ainda o Brasil, com as suas floras nativas. Como este parque
sobreviveu ao 25 de Abril, hoje encontramos nele as nossas antigas colónias,
agora com pavilhões sob a alçada dos chamados “palops” e da lusofonia, o que
permite que uma instituição K., retrógrada e ao serviço de ideais
estado-novistas, se tornasse hoje politicamente correcta. A verdade, contudo, é
que, mesmo reciclado e normalizado em conformidade com um discurso
neo-ortodoxo, o Portugal dos Pequenitos não perdeu a sua dimensão inautêntica
de K., como uma espécie de Disneylândia do nacionalismo português, com os seus velhos
mitos identitários e folclóricos, incluindo o nosso império colonial, agora independentizado.

 

 

 

José Rodrigues dos Santos

 

Margarida Rebelo Pinto

 

Fernando Dacosta

 

 

 

O
“best-seller” como K.

Neste ensaio, o nosso
conceito de K. cinge-se exclusivamente ao domínio estético-sociológico. No
sentido que lhe deu Abraham Moles, o fenómeno K. pertence à “civilização do consumo“, que produz para consumir e
cria para produzir, num ciclo cultural cuja definição fundamental é o da
aceleração.[13] Compreende-se assim que o
sociólogo de Estrasburgo considere o K.
como uma “arte da felicidade”, como reza o subtítulo do seu livro fundador. O K. é indissociável da cultura de massa, do mercado, do
consumismo que tudo perverte ou banaliza, mesmo quando vende nos supermercados reproduções
emolduradas da Seara na Crau de Van
Gogh, um pintor trágico e autêntico que não pertence, em si mesmo, ao género em
causa, a qualquer forma de inautenticidade estética ou existencial. Por outras
palavras, é o consumismo que transforma os objectos culturais em K.

Neste campo semântico-social
do K. convém recordar o fenómeno do best-seller, ou seja, do livro de grande
tiragem vendido em larga escala, o que na América do Norte novecentista e do
nosso presente século transformou certos escritores como Tom Clancy, Dan Brown,
Stephen King, Leon Uris ou Morris West em autores de enorme público e que o
cinema multiplicou o impacto ao passar para a tela essas narrativas de impacto
popular. Nem todos esse autores agora mencionados são de todo em todo do género
K., já que os três últimos podem ser
considerados escritores de valia indubitável, ao passo que os dois primeiros se
inscrevem sem dúvida no paradigma típico do K.,
ou seja, da literatura mais vulgar, de nível medíocre ou até desprezível, como
o serão, sem dúvida, Tom Clancy (1947-2013) ou Dan Brown (nasc. em 1964), ambos
cultores duma literatura vazia de conteúdo estético, a não ser as demagogias ou
preconceitos que ambos servem, ou seja, o belicismo nacionalista
norte-americano no primeiro e a aversão à Opus Dei no segundo. Sendo o best-seller um produto extremamente popular
e um êxito de edição da literatura de massa que é, tal fenómeno não exclui que
algumas dessas obras sejam de qualidade, como serão, sem dúvida os casos de romances
de Leon Uris como Exodus ou Mila 18, tendo do primeiro sido
extraído, por Otto Preminger, um filme de grande impacto, em 1960, com
excelentes actores (Paul Newman, Lee J. Cobb, Eva Marie Saint, Peter Lawford,
etc). Também se deve ao romancista best-seller
australiano Morris West um romance de valia, intitulado As Sandálias do Pescador (1963, adaptado ao cinema por  Michael Anderon,em 1968, com Anthony Quinn,
Lawrence Olivier, Vittorio de Sica e 
Oscar Werner entre os actores), sobre um papa reformador russo, que
saíra do Gulag soviético para se tornar cardeal e, por fim, papa que modifica profundamente
o Vaticano com a sua heróica simplicidade cristã, assim com um outro, intitulado
Torre de Babel (1968), sobre a
implacável rivalidade entre serviços judeus e árabes. Também digno de leitura,
o norte-americano Stephen King (nasc. em 
1947), autor de romances e livros de contos com imensa popularidade e
logo potenciados pela 7ª Arte, tal como Carrie
(1974, adaptado ao cinema por Brian de Palma em 1976 e, depois, em 2013), além
de Shining (1978, levado ao cinema
por Stanley Kubrick, 1980), ou Coração na
Atlântida (1999, feito filme por 
Scott Hicks, em 2001), excelente retrato da geração americana que fez
a  guerra do Vietname. Em contraste
flagrante com o valor deste autores populares, já os referidos Tom Clancy e Dan
Brown são exemplos dum K. demagógico e desprovido de qualquer substância
cultural, o primeiro com o famoso Caça ao
Outubro Vermelho (1984, adaptado ao cinema em  1986) e o segundo com o famigerado Código Da Vinci (2003), levado ao cinema
por Ron Howard (2006), uma das obras mais indigentes deste género, embora as
suas vendas andem pelo milhões de exemplares

Se estes dois últimos casos
ilustram a natureza entranhadamente kitsch
de certa literatura de massas, já os nomes de King ou West mostram como há, de
algum modo, a possibilidade de um escritor popular e de grande êxito de vendas
poder ter talento e capacidade de romancear histórias de interesse real e que
encontram estrondoso eco no público leitor, como já sucedera no século XIX com
autores como Dickens, Eugène Sue, Hugo e Zola, ainda que este último merecesse
a sua fama sobretudo ao seu alistamento na turbulenta questão Dreyfus que
agitou a França e o mundo. Entre nós, nas nossas liliputianas dimensões de pequeno
país pouco alfabetizado, os casos dos romances de autores como o jornalista e
apresentador do Telejornal da RTP chamado José Rodrigues dos Santos, Margarida Rebelo
Pinto, Maria João Lopo de Carvalho ou do jornalista e jornalista Fernando Dacosta[14]
pertencem sem dúvida ao K. mais
categoricamente negativo, ou seja, ao inautêntico puro, como fabricantes de
pechisbeque impresso ou cultores duma escrita que não passa de inautenticidade
cultural, quer escrevam romances popularuchos, quer componham obras inqualificáveis
como As Máscaras de Salazar, actualmente
em 26ª edição, o que comprova o abaixamento intelectual do nosso público leitor
e a ignorância generalizada do público que lê em Portugal.

No século XIX, o sucesso estrondosamente
popular de obras de Junqueiro (1850-1923) como A Morte de D. João (1874), do panfleto anticlerical A Velhice do Padre Eterno (1885) e dos seus poemas
rabidamente anti-ingleses como À Inglaterra
(1890, com o histérico incipit “Ó cínica
Inglaterra, ó bêbada impudente / Que
tens levado, tu, ao negro e à escravidão?/ Chitas e hipocrisia, evangelho e
aguardente…”, 1890), ou o delírio de ódio antibrigantino do poema-panfleto Pátria (1891),  mostrando até que ponto, mesmo quando o pobre
poeta de  Freixo de Espada à Cinta optava
pelo registo lírico popular, como na “Moleirinha” da Musa em Férias (1879)  - com versos
K. como este: “Pela estrada plana,
toc, toc, toc,/ Guia o jumentinho uma velhinha errante ,/ Como vão ligeiros,
ambos a reboque,/ Antes que anoiteça, toc, toc, toc,/ A velhinha atrás, o
jumentinho adiante!...”  -, a sua
produção literária vazava-se em moldes K. Mas, mesmo assim, havia em Junqueiro,
pelo menos, algum talento, alguma cultura, alguma capacidade retórica ou
sarcástica de engendrar obras de vitríolo demagógico que aliciavam e encantavam
um público faccioso. E se pensarmos que continuam a editar-se regularmente
estes vários títulos seus, tal facto de sucesso editorial não deixa de
constituir uma persistência do gosto K.
numa receita que parecia totalmente dependente do Weltgeist… Já os casos de Rodrigues dos Santos, Dacosta, Margarida
Rebelo Pinto – esta, colaborando na revista K. chamada Selecções do Reader´s Digest,
acentua a sua inclusão nesta categoria -, assim como Maria João Lopo de
Carvalho, comprovam que o K. se gera sobretudo em mentes privadas de talento,
sem capacidade real de escrita, como produtos que são duma cultura indigente, de
escrita zero e carecida de qualquer valia literária ou cultural, penúrias que
são inseparáveis do conceito em causa.

 

 

 

Almada Negreiros

Ilustr. Arnaldo Ressano, 1935

 

 

Júlio Dantas

Ilustr. Arnaldo Ressano, 1935

 

 

 

O catálogo anti-Kitsch de Almada
Negreiros, de 1915

 

Chegados a este ponto no
nosso levantamento da problemática do conceito de K., essa “vasta praia do Kitsch”, [15] será
altura de tentarmos um breve panorama sintético de umas quantas manifestações
culturais lusas dos nomes, figuras, géneros artísticos e obras em que essa
inautenticidade ou mau gosto estético-artístico se reflectem, sem esquecer uma
breve tentativa de apresentarmos o seu par dialéctico, o anti-Kitsch, que aqui
se resumirá ao famoso e fogoso panfleto de Almada Negreiros, ao Manifesto anti-Dantas (1915), talvez o mais
fulgurante caso de catálogo de nomes e obras vilipendiadas pelo nosso futurista
e que se prendem ao nosso conceito de K., texto vitriólico no qual o clown lírico vergastava com furor declamatório
todo um escol que, no fundo, era a geração completa dos artistas, escritores,
gurus e intelectuais da I República, espécie de arca de Noé comandado por esse supremo
piloto-símbolo chamado Júlio Dantas, “que saberá tudo menos escrever que é a
única coisa que ele faz!”[16] Este
colérico catálogo imprecatório de 1915, além de ser um impiedoso manifesto
contra a cultura do regime republicano iniciado cinco anos antes, era um
autêntico inventário do K. dessa época nos campos culturais mais diversos,
começando com a literatura de Dantas – sob o pretexto de ridicularizar a sua
peça Soror Mariana, estreada na
altura – e a continuar com os demais escritores, “jornalistas de todos os
jornais”, “todos os pintores das Belas Artes e todos os artistas de Portugal,
que eu não gosto”, mais “os palermas de Coimbra” e todos os que eram “
políticos e artistas” [17],
mais os músicos, com mais um “Morra o Dantas, morra! Pim!” rematando com um apelo
para que Portugal viesse um dia a abrir os olhos – “se é que a sua cegueira é incurável
e então gritará comigo, a meu lado, a necessidade  que Portugal tem de ser qualquer coisa de asseado!”[18] O
manifesto de Almada era, antes de mais, uma denúncia feroz e universal do K. avant la lettre  que reinava na cultura da novo regime, todos
esses gurus e manipansos das artes e  das
letras da vida intelectual portuguesa de então, exceptuados os modernistas, da
sua própria geração, que ele não mencionava, os colegas do Orpheu...

 

Breve inventário do K.
português

 

Hoje, quase um século
depois deste manifesto imprecatório de Almada, se tivéssemos de inventariar,
embora sem vis polemica, o K.
nacional, que nomes apontaríamos, além dos que atrás fomos mencionando? Antes
de mais, o de Joana de Vasconcelos (nasc. em 1971), representante de Portugal
na Bienal de Veneza de 2013, verdadeira rainha do nosso K., de que ela é uma
dinâmica e operosa produtora de artefactos que vende ao mercado, ora pendurando
bolas de Natal na torre de Belém, ora reciclando motivos e peças de cerâmica de
Rafael Bordalo Pinheiro, ora confeccionando um gigantesco sapato de Marylin com
caçarolas brilhantes, chamada a mostrar obra sua por museus e palácios de referência,
como os de Versalhes ou da Ajuda, para ali expor as suas derradeiras trouvailles, ou objectos publicitários –
como o que fez em 2013 para uma marca célebre de perfumes franceses –, ela que,
tendo nascido em França, sabe cosmopolitizar o seu habilidoso kitschismo
lusitano e vender os seu artefactos de pechisbeque ao mercado das modas. Aluna
do Ar.Co. e tendo começado a expor regularmente na década de 90, Vasconcelos
surge como um exemplo da habilidade mercantil de ver acolhida com entusiasmo e
delícia uma obra de K. que se constrói essencialmente a partir do inautêntico,
bem como da reciclagem e desenvolta manipulação de temas alheios e de peças do
quotidiano, tudo confeccionado com o talento duma desembaraçada pasteleira que
sabe agradar às modas do dia e aos seus consumidores. Ao lado de profissionais
menos bem sucedidos como Maluda, Cargaleiro e outros nomes do nosso K., Joana
Vasconcelos já se instalou naquele nível de patamar de celebridade cosmopolita que
nenhuma denúncia estética ou cultural logrará afastar do sucesso comercial que
os seus produtos obtiveram e enchem os seus entusiastas da tal felicidade  a que Moles
se referia como essencial no fenómeno – o seu livro chama-se precisamente Kitsch, a Arte da Felicidade – e que o ouro falso do pechisbeque
satisfaz. Se a grande arte, sobretudo pela sua irreverência, ruptura ou heresia
muitas vezes provoca a cólera unânime ou a indiferença generalizada – pense-se em Van Gogh, Cézanne ou o
Picasso das Demoiselles d’Avignon –,
já uma arte de supermercado ou a aceitação tão unânime não deixa de ser um
sintoma do agrado imediato que o fenómeno K. em causa provoca. O facto de revistas
de arte e editoras de relevo no domínio artístico como a Thames & Hudson referirem
Joana Vasconcelos com admiração só comprova que entre o belo e mau gosto se
estende uma praia imensa.

 

 

Joana Vasconcelos

 

 

 

Outro nome inseparável do
conceito de K. é o do pintor, escultor e gravador José de Guimarães (nasc. em
1939), [19] cujo
monumento a Adamastor na praça 25 de Abril, na zona do Parque das Nações, em
Lisboa, pode ser considerado como exemplar do novo estilo artístico K. em Portugal. Esta
peça, de factura abstracta, tanto podia ser tomada como uma estátua da Padeira
de Aljubarrota como uma evocação do diálogo amoroso entre Papageno e Papagena
ou ainda como qualquer outra fantasia.

Adamastor, 1999

José de Guimarães (1939-)

O sucesso de José de Guimarães mede-se
ainda pelas livros que têm tratado dos seus talentos ou pelos prémios recebidos
e pelas exposições por ele feitas em Portugal e 
no estrangeiro, bem como pela cornucópia de prémios que o galardoaram,
além dos museus nacionais e estrangeiros em que está representado, desde o da
Fundação Gulbenkian, em Lisboa,  o Museu
de Arte Moderna em Antuérpia (Bélgica), o Museu de Arte Moderna de São Paulo
(Brasil), a Fundação Akemi (Osaka, Japão), a Casa de Serralves (Porto), o Museu
das Cruzes (Funchal), o museu do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, etc., participando
em várias exposições em Portugal e no estrangeiro.

 

 

José Malhoa, O Fado, 1910

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Outro nome expoente do nosso
K, é o de José Malhoa (1855-1933), autor do célebre óleo O Fado (Museu da Cidade, Lisboa, 1910),[20]  que constitui, sem dúvida, um dos emblemas
máximos do K. luso, tanto pela sua atmosfera sórdida como pela sua complacência
para com a canção nacional, ali traduzida numa cena lôbrega de alcouce, com a
cantadeira e o seu guitarrista. Esta obra, que merecia sem dúvida a mesma cruel
indignação extrema de Almada Negreiros quando dizia que, se ele é português, preferia
então ser espanhol. Ícone plástico de retumbante fama, nesse óleo vemos um
fadista de aspecto sórdido e de má compleição física dedilhar uma guitarra no
quarto duma prostituta desleixada, de cigarrinho na ponta dos dedos, suada e
feia, que o escuta embevecida, tudo isto no meio duma atmosfera lúgubre e suja
de prostíbulo, com imagens religiosas na parede, um espelho partido e uma
garrafa de vinho, meio bebida, em cima da mesinha na qual a “Adelaide da
Facada” apoia o cotovelo, ao mesmo tempo que a uma chinela lhe pende dum pé
calçado com uma meia às riscas. O tunante que canta – e que era o verdadeiro
fadista Amâncio que posou para o artista caldense – olha para o espectador do
quadro como se nos dirigisse uma mensagem directa e pessoal, suscitada, talvez,
pelo escândalo que, na época – era o ano em que a República seria proclamada –,
provocara, pois havia quem a achasse ignóbil e quem se revisse neste retrato
“nacional” com orgulho e auto-satisfação: “tudo isto existe, tudo isto é
triste, tudo isto é fado?” (palavras dum fado que Amália havia de imortalizar
algumas décadas depois, já no contexto da ditadura nacionalista do Dr.
Salazar). Falando de Malhoa, o crítico de arte Braz Burity (i.e., Joaquim
Madureira) dizia que ele “pintava em português” – o que daria razão a Almada,
nos já referidos termos do seu manifesto de 1915, para a sua indignada recusa
da nacionalidade, preferindo ser espanhol.

Quanto a
Alberto de Sousa (1880-1961), foi ele um exemplo do K. nos cartoons durante a I República, tendo sido merecidamente incluído
no manifesto de Almada de 1915 e nesse pelourinho infame definido como “o Júlio
Dantas do desenho”.[21] Colaborou
como cartoonista na Ilustração Portuguesa, no Mundo, Vanguarda, Novidades, A Capital, República,
etc., mostrando-se sempre o cultor do K. no cartoon
ou nas suas pinturas, tendo realizado diversas exposições de pintura desde 1913 a 1938. Pintor,
desenhador – as imagens e capas das edições das peças de Dantas, nomeadamente a
Soror Mariana, que tanto indignou
Almada em 1915, são dele – e ilustrador de obras didácticas como os Quadros da História de Portugal de Chagas
Franco e João Soares, bem como dos selos do correio dedicadas a Camões em 1924,
Alberto de Sousa epitomiza, de algum modo, a essência do pechisbeque do desenho
no seu tempo.
 

José Vilhena (n. 1927)

Já José Vilhena (nas. em
1927 em Figueira de Castelo Rodrigo), pode ser considerado um exemplo curioso
desse mesmo género, a começar a sua carreira de humorista em livros
provocadoramente eróticos e políticos que se vendiam em semi-clandestinidade
para escaparem às apreensões da censura salazarista, assim como em caricaturas
publicadas nos anos 50, tendo colaborado em duas revistas de um humor de voos
curtos por causa do mesmo Lápis Azul da ditadura, o Mundo Ri, e Cara Alegre.
Frequentou a Escola de Belas Artes do Porto sem concluir o curso de
arquitectura, fixa-se em Lisboa e publica em 1956 a sua primeira colecção
de cartoons, Este Mundo e o Outro, e em 1959 Manuel
de etiqueta, livro de humor desabrido e em geral grosseiro. Nos anos 60
publica vários livros, sendo detido pela PIDE em 1962, 1964 e 1966; em 1973
inicia a edição da Grande Enciclopédia Vilhena.
Depois do 25 de Abril edita a revista Gaiola
Aberta, o que lhe valeu vários processos em tribunal, a que se seguem O Fala Barato, primeiro como jornal e
depois como revista, O Cavaco e O Moralista. Reuniu-se em folheto uma
colecção de cartoons de Vilhena dedicada
a factos e figuras da revolução de Abril, Crónica
duma Revolução, edição da C.M. de Lisboa em 1996, prefaciada por João
Soares. A sua inclusão no K. deve-se ao facto de, mau grado a sua capacidade de
provocação e ruptura com os regimes políticos vigentes, o da ditatura e o
actual, o humor de Vilhena, tanto gráfico como literário, não ter real
consistência artística ou cultural, já pelo desenho canhestro e convencional,
já pelo recurso a formas grosseiras e desbragadas de humor que o desqualificam
como verdadeiro cartoonista, reduzindo-o a um profissional do pechisbeque da
graçola licenciosa.

A cerâmica popular de
Rosa Ramalho (São Martinho de Galegos, Barcelos, 1888-1977) é outro exemplo.
Casada com um moleiro e mãe de sete filhos, Rosa só se dedicou ao artesanato em
barro após a morte do marido, tornando-se depressa famosa. O pintor António
Quadros descobriu-a e tornou-a conhecida nos meios artísticos. Rosa Ramalho
recebeu em 1968 a
medalha das “Artes ao Serviço da Nação”. O escritor Mário Cláudio dedicou-lhe o
livro Rosa (1988). O pendor K. da sua
cerâmica popular é inegável. Já o oleiro e ceramista José Franco (Sobreiro,
Mafra, 1920 – Lisboa, 2009) nos parece antes um artista popular e escultor de
mérito indesmentível, pois que, além de cerâmica utilitária da região mafrense,
de jarros para águia e vinho, produziu também graciosas estatuetas de cerâmica,
sendo de especial interesse as suas figuras de Santo António. O escritor
brasileiro Jorge Amado, que o conheceu, tinha por José Franco grande apreço. Criou-se
uma Aldeia Típica de José Franco para servir de museu natural do seu talento de
oleiro e escultor, com a construção ali de uma aldeia saloia do século XX,
habitada por bonecos mecanizados, com lojas em miniatura, etc. Franco foi agraciado
com a comenda de São Tiago pelo presidente Ramalho Eanes.

Jorge Colaço (1868-?),
pintor, caricaturista e azulejista, monárquico, colaborou com caricaturas
acerbas em vários semanários satíricos como O
Talassa, que ele mesmo fundou. Dirigiu também o Suplemento humorístico do Século,
tendo publicado na Voz uma série de
caricaturas pró-franquistas durante a guerra civil de Espanha. [22] Como
cartoonista, Colaço tinha um traço pesado e uma rigidez falha de humor. Contudo,
em reacção ao tema em causa, Colaço é sobretudo autor de painéis de azulejos
que decoram as estações da linha ferroviária Lisboa-Porto, aqueles em estilo
verdadeiramente K. A sua produção no azulejo está presente em vários países,
como Brasil, Argentina, Suíça (palácio da SDN em Genebra), Cuba, etc. No
Hotel-Palace no do Buçaco,[23]  outro expoente do K. luso,  em estilo neomanuelino, tem Colaço também
painéis de azulejo.

 

 

 

João Medina

Monte Estoril, 20-XI-2013

 

BIBLIOGRAFIA essencial:

 
 

– Abraham A. Moles, Le Kitsch. L'Art du Bonheur, Paris, H.M.H., ilustr.

 .

– Antonio Munoz Molina, "«Kitsch» nacional", Babelia, suplemento cultural de El País, 21-IX-2013, p. 3.

 .

– João Medina, Portuguesismo(s), Acerca  da identidade nacional, Lisboa, Centro de
História de Universidade de Lisboa, 2006, ilustr.

.
– José-Augusto França, A Arte em Portugal no séc. XIX, vol. I,
Lisboa, Livraria Bertrand, 1967, ilustr.

.

– José-Augusto França, A Arte em Portugal no Século XX, Venda
Nova, Bertrand Editora, 1991, ilustr.,

.

– José Fernandes Pereira, Dicionário de Escultura Portuguesa,
Lisboa, Caminho, 2005, ilustr.
.

– Rafael Laborde Ferreira
e Victor Manuel Lopes Vieira, Estatuária
de Lisboa, Amigos do Livro, 1985, ilustr.

– Osvaldo Macedo de
Sousa, História da Arte da Caricatura em
Portugal, vol. II: Na República,
1910-1933, Edfição Humorgrafe /SECS, 1999.

 

 

[1] Pechisbeque,
no sentido de ouro falso, imitação ou relojoaria barata, de uma liga de cobre e
zinco a imitar o ouro vem do inglês pinchback,
nome dum relojoeiro inglês.

[2] Abraham A. Moles, Le Kitsch, L´Art du Bonheur, Paris, HMH,
1971, ilustr.

[3] Abraham A. Moles, op.
cit., pp. 98 e ss e 171 ss (psicanálise
do supermercado,  sistema neokitsch).

[4] Durante o nosso PREC de 1974-5, quando os graffiti nos muros bradavam indignados
“Socialismo sim, só ares não!”, o socialismo mole de Mário Soares aparecia como
repudiado pelos “verdadeiros socialistas” como um K., ou seja, uma ideologia inautêntica.

[5] A. Muñoz Molina, “«Kitsch» nacional”,  Babelia,
suplemento cultural de El País, 21-IX-2013.

[6] Prémio de arquitectura resultante duma doação feita
nesse sentido pelo diplomata português Fausto de Queirós Guedes, 2º visconde de
Valmor (1837-1898), atribuído em Lisboa desde 1902, galardoando arquitectos
famosos como Ventura Terra ou Raul Lino.

[7] Note-se que este escultor foi um enorme erro de casting, já que a obra de Soares Branco
se desenvolveu quase toda dentro da temática e da ideologia da Ditadura, com
obras dedicadas a figuras religiosas e políticas dentro dos parâmetros do
Estado Novo, como os monumentos a Santo António, na então chamada Lourenço
Marques (1958), ao Paraquedista, em Tancos (1968, erecto em plena guerra
colonial), uma estátua a Pio XII, em Fátima (1972), a Nuno Álvares Pereira, no
Museu Militar, em 1972; já no período pós-25 de Abril, apontamos outros
exemplos de obras K. nos mesmos domínios.

[8] Já o seu andrógino D. Sebastião em mármore, em Lagos,
1973, no final da Ditadura, teve a vantagem de romper com o cânone tradicional
do “rei menino” dos sebastianistas, apresentando antes o “pedaço de asno” como
um ET dentro duma grande armadura de astronauta que desceu à Terra e olha em
atemorizado redor, inseguro como alguém que acaba de desembarcar num deserto
vazio, sendo a figura, sem pedestal, constituída por junção de pedaços de mármore
de cores diferentes. A Cutileiro se deve também um amargurado e bastante
atípico conjunto na Gandarinha, em Cascais (1960), o que mostra bem que o mesmo
artista K. do “Pirilau” sabe romper com cânones solenes.

[9] Fialho de Almeida, Os Gatos, vol.6, 1892, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1953,
p.102.                                                                                                                                                                                                                   
                                                                    

[10] Luís Cristino da Silva (Lisboa, 1896-1976) estudou em
Paris e foi entre nós um dos mestres do modernismo arquitectónico do Estado
Novo, também designado pela expressão “português suave”, ao mesmo tempo
modernista e tradicionalista, deixando alguns edifícios exemplares como o
Pavilhão Oficial do Mundo Português (1940), a nova Universidade de Coimbra
(1948) e a referida praça do Areeiro, assim como o plano de urbanização da Nova
Oeiras. Os outros grandes arquitectos do salazarismo foram Carlos Ramos
(Instituto Português de Oncologia, Pavilhão da Rádio), Jorge Segurado (Casa da
Moeda, Lisboa), Cassiano Branco (Cinema Capitólio, Hotel Vitória) e Cottineli
Telmo, Pardal Monteiro (Instituto Técnico).

[11] Um
notório escândalo sexual em 1989, assim como a sua expulsão, em 2003, da
Faculdade de Arquitectura de Lisboa, onde ensinava, parecem ter posto fim à
carreira deste arquitecto K.

[12] Bissaia Barreto Rosa (Castanheira de Pêra, 1886-1974),
médico e professor universitário, amigo íntimo de Salazar, deputado à
assembleia constituinte da I República, filiado na maçonaria com o nome
simbólico de Saint-Just, e dirigente
do Partido Evolucionista e, depois, da União Liberal Republicana, colega do
ditador na Universidade e também filado no CADC, viria a integrar os quadros da
União Nacional do Estado Novo, (1932), tornando-se desde então uma figura
influente do novo regime. Juntamente com Manuel Rodrigues, Armindo Monteiro e
outros, criou em 1936 a
Fundação Bissaia Barreto. Escreveu obras de medicina e de assistência.

[13] Abraham A. Moles, op.
cit., p.14.

[14] José Rodrigues dos Santos, locutor da TV, nasc. na
Beira, Moçambique, em 1964, licenciado em Comunicação Social pela Universidade Nova
de Lisboa, locutor da BBC, da Rádio Macau (1981) e da RTP (1991), sendo o
segundo escritor português mais vendido depois de José Saramago,  autor de A
Mão do Diabo (2012), O Homem de Constantinopla
e o Homem de Lisboa (2013), Fúria Divina e O Codex 632 (2005), livros traduzidos em espanhol, francês, italiano
e inglês. Margarida Rebelo Pinto, nas. em 1965, licenciada em Letras da FL-UL,  edita o seu primeiro romance em 1999,
colabora em vários jornais e revistas como as Selecções do Reader’s Digest. 
Maria João Lopo de Carvalho, nasc. em Lisboa em 1962,  trabalha numa agência de publicidade, depois
no município de Lisboa e é autora de vários livros infantis, publicando
abundantemente desde 2000, tendo editado em 2013 A Padeira de Aljubarrota. Fernando
Dacosta nasc. em 1940 em Angola, licenciou-se em Letras na FLUL, enveredando
pelo jornalismo em 1967 ligado a um órgão da Opus Dei, colaborando ainda no Comércio do Funchal, Diário de Lisboa, Diário de Notícias,
Público. Publicou diversos livros como Salazar
- Fotobiografia (2000) e Máscaras de
Salazar (1997, reedit.); este último teve 26 edições até 2010.

[15] Abraham A. Moles, op.
cit., p.6.

[16] Almada Negreiros Manifesto
Anti-Dantas in  Obras Completas, vol. 6 (Textos
de intervenção), Lisboa, Estampa, 1972, p.11.

[17] Almda Negreiros, op.
cit., p.16.

[18]  Ibidem, p.17.

[19] O
pintor José Maria Fernandes Marques, nascido em Guimarães em 1939, adoptou o
nome artístico de José Guimarães, ingressou na Academia Militar (1957),
licenciou-se em engenharia em 1965 e fez carreira como militar do ramo de
engenharia, combatendo em Angola, de 1967 a 1974, tendo exposto pela primeira vez em
Luanda (1968). Foi galardoado por Mário Soares com a comenda do Infante D. Henrique.

[20]  Sobre a forma como foi pintado este óleo e as
figuras dos que posaram para ele, veja-se o depoimento de António Montês Malhoa íntimo, Caldas da Rainha, Museu
de José Malhoa, 1983, pp. 36ss. Acrescente-se que as sessões de pose da
“Adelaide da Facada” custaram ao pintor seis vinténs cada. O tunante que canta
era na realidade o verdadeiro fadista Amâncio, rufião exímio no uso da navalha
e amante da Adelaide, que ele, roído de ciúmes, sovava depois de cada sessão. As
sessões decorreram na Rua do Capelão, no bairro da Mouraria, onde o artista das
Caldas era conhecido como “o Pintor Fino”. Acabada a obra, Malhoa convidou o
casal de fadistas a irem visitar o quadro exposto no seu atelier da Avenida 5 de Outubro, em companhia dos amigos, o que deu
ocasião a uma romaria de rameiras e moinas, que o artista recebeu sem
desprazer.

[21] Almada Negreiros, op.
cit., p.16.

[22] Essas caricaturas pró-franquistas são referidas e
coligidas no livro de Alberto Pena Rodríguez, El Grande Aliado de Franco. Portugal y la Guerra civil de España:
prensa, rádio, cine y propaganda, Corunha, Edicios do Castro, 1998, pp. 236-239
e selecção de desenhos da Voz, de 1936 a 1939, pp. 242-248; a
sua antipatia por Bernardino Machado, então exilado em França, leva-o a
dedicar-lhe cartoons agressivos.

[23]  O Hotel do
Buçaco, ideado pelo rei D. Carlos, que não chegaria a utilizá-lo. O edifício é de
Luigi Manini (1848-?) – responsável pelo palácio da Regaleira, em Sintra,
propriedade do capitalista Carvalho Monteiro, o “Monteiro dos Milhões” –, arquitecto
e cenógrafo italiano que veio para Portugal em 1879, aqui se mantendo até 1913.
Nele colaborou também Norte Júnior (nasc. em 1878) e galardoado com vários
Prémios Valmor. Como o Hotel-Palace du Buçaco, feito em estilo manuelino, só
terminou em 1907, e D. Carlos foi assassinado em começos de 1908, coube ao seu
filho D. Manuel usá-lo, ainda havendo nele uma suite Rainha D. Amélia.

 

 

O   KITSCH  PORTUGUÊS

Reflexões
sobre o inautêntico na história cultural lusa

 

por João
Medina

 

 

“O mundo dos valores estéticos deixou
de ser dicotomizado

entre o Belo e o Feio;

entre a arte e o conformismo
estende-se a vasta praia do Kitsch.”

(Abraham A. Moles, O Kitsch, 1971)

 

                              “…o kitsch é o império dos espaventos descontrolados da emoção e a
sensibilidade, da desproporção entre a substância e o invólucro (…). O kitsch define-se por comparação porque a
sua natureza é derivada e parasitária. O kitsch
está para a arte como a margarina para a manteiga, o Arcopal para a louça, o
romance histórico para a História, a Isabel Allende para o melhor Garcia
Marquez, (…). O que os anúncios turísticos da Junta da Andaluzia para a
realidade da Andaluzia (…). O kitsch
é inseparável da efusão nacional porque esta consiste na translação para o
público daquilo que em rigor pertence ao âmbito das emoções privadas. (…).”

Antonio Muñoz Molina, “«Kitsch»
nacional”, Babelia,  21-IX-2013.

            

 

 

O conceito de K.

 

          Uma
simples evocação de alguns versos bem conhecidos da nossa poesia bastarão para
nos situarem no domínio do kitsch literário
português: “Batem leve, levemente,/ Como quem chama por mim./ Será chuva,
será gente?/ Gente não é certamente / E a chuva não bate assim.” (Augusto Gil),
“ Em quanto é diferente o amor em Portugal!/Nem a frase subtil, nem o duelo
sangrento…/É o amor coração…É o amor sentimento…” (Júlio Dantas, A Ceia dos Cardeais, peça em verso,
1902) .”O melro, eu conheci-o:/ Era negro, vibrante, luzidio” (Guerra
Junqueiro, “O Melro”). “Ser poeta é ser mais alto” (Florbela Espanca). Em todos
estes versos há uma característica comum que merece a designação de Kitsch, tanto em sentido estético ou
sociológico e que, em linguagem vulgar, designaríamos como mau gosto,
banalidade, cliché, estilo possidónio,
pechisbeque [1], etc.. No domínio das
ciências sociais, o termo Kitsch
torna-se consagrado desde o estudo Le
Kitsch. L’Art du Bonheur (1971), do sociólogo francês Abraham A. Moles
(1920-1992).[2] Quanto a este termo alemão,
surge ele na segunda metade do século XIX, derivado do verbo kitschen (atamancar, fazer móveis novos
a partir de velhos trastes) e de verkitschen
(vender a alguém qualquer coisa diferente do que se tinha prometido). O termo aplica-se
a tudo o que pode ser tachado de mau gosto, inautêntico, falsificado, cliché, como aos objectos de fancaria
como aqueles que se vendem hoje nas lojas dos chineses, nos supermercados e nas
chamadas livrarias dos caminhos de ferro. A sua articulação com os grandes
armazéns, nascidos no século XIX – e transformados nos nossos actuais
supermercados – torna estes templos do comércio 
como o paraíso do K., diz Moles, onde reina uma “atmosfera de festa”, a
“festa da compra”, “a embriaguez mercantil e a vertigem.” [3]

O K. pertence ao mundo
mais díspar da nossa vida quotidiana, nos aspectos mais diversos da cultura de
massa, das artes visuais, da literatura, da arquitectura das nossas cidades, da
música, da escultura dos monumentos públicos, dos espectáculos, e tem como
grande difusor mediático a televisão, etc., já que tudo pode ser suporte do K. ou, como dizem os alemães, Kitschträger (portadores de K.), o que
não exclui as modas, as ideias, as atitudes políticas, as pessoas e as próprias
ideologias.[4] Num artigo recente sobre o
problema do independentismo catalão, o romancista Antonio Muñoz Molina, autor
de O Inverno de Lisboa (1992), natural
da província de Jaén, fazia interessantes reflexões sobre a variante política
do K., mostrando que o caso do súbito
fervor autonomista da Catalunha com visita a uma independência política desta
região constituía uma forma de K., precisamente porque este fervor
nacionalista, reforçando os chamados vínculos de sangue e o férvido
nacionalismo que o procura viabilizar, estaria na base a alegada fantasia de
dar aos catalães um Estado-nação desvinculado da hispanidade abrangente que se
acolhe debaixo do pendão da nossa nação vizinha. Diz ele: “O K. é inseparável
da efusão nacional porque esta consiste na translação para o público do que em
rigor pertence ao âmbito da emoções privadas. (…). O K. nacional converte os
laços objectivos da cidadania em vínculos de sangue (…). O K. torna claro e simples o que é tão ambíguo na arte como na
realidade e, se necessário, modela e corrige a realidade para a subordinar a
uma ficção exaltadora. (…). Alentado sem pausa por todas as estratégias da
propaganda e da publicidade e pela força esmagadora das emissões de massa, o K.
nacional leva ao delírio colectivo.”[5]

Este caso mostra até que ponto é vasto o conceito do K., nele se incluindo terrenos tão vastos
que vão desde a vida quotidiana até ao domínio estético propriamente dito,
abrangendo o urbanismo, os seus edifícios, a cerâmica popular e o cartoon. Lembremos uma pequena lista de
obras que consideramos pertencerem a esta primeira categoria de K., a dos edifícios
citadinos:

a) as habitações
galardoadas com  prémios Valmor,
atribuídos em Lisboa desde 1902, premiando arquitectos reputados como Ventura
Terra (três vezes galardoado), Norte Júnior, Adães Bermudes, Jorge Segurado
(1947), etc.[6];  

Réplica do Padrão dos Descobrimentos

b) alguns monumentos
públicos mais emblemáticos da nossa capital, como aquele que inclui a estátua do
marquês de Pombal, na Rotunda da Avenida da liberdade, de autoria do arquitecto
Adães Bermudes e do escultor Francisco Santos, concebido em  1914 mas só completado em 1934; o consagrado  aos Mortos da Grande Guerra, de autoria do
escultor Maximiano Alves e do arquitecto Guilherme de Andrade, concebido em
1924 e inaugurado só em 1931; alguns monumentos mais tipicamente executados na
estética e ideologia comemorativa e triunfalista do Estado Novo, feita de
heróis, navegadores,  monarcas, clérigos
e figuras da cultura do passado, de que é paradigma o Padrão dos Descobrimentos
Marítimos, de Leopoldo de Almeida e Cotinelli Telmo, concebido para a exposição
em Belém, na praça do Império – denominada Exposição do Mundo Português,  por ocasião do Duplo Centenário de 1940 –, obra
elaborada então em  estafe (moldagem do
gesso cozido sobre fibra de cânhamo ou sisal) e só em 1960, por ocasião do quinto  centenário do nascimento do Infante D.
Henrique,  passada à pedra; a Fonte Monumental
da Alameda Afonso Henriques (1942), concebida pelos arquitectos Rebelos de
Andrade e pelos escultores Maximiano Alves e, sobretudo, Diogo de Macedo, o
autor da escultura de Neptuno na bacia central, e das quatro pesadas matronas
que são as Tágides que ladeiam a fonte, havendo ainda baixos-relevos laterais de
Jorge Barradas; depois, já no pós-25 de Abril, o grotesco monumento de Domingos
Soares Branco (1925-1991) a Francisco Sá Carneiro, de 1982, com o busto do
político como que decapitado e pendurado num obelisco com placas inox recortadas a laser.[7] Neste período, comecemos
com a Homenagem ao 25 de Abril, como
se chama o pouco inspirado monumento de João Cutileiro (nasc. em 1937), monumento
conhecido popularmente como “o Pirilau”, erguido no alto do Parque Eduardo VII,
de 1997, além de mal enquadrado no ambiente concebido pelo arquitecto estado-novista
Keil do Amaral.[8]

 

 

 

Estátua a Sá Carneiro, 1982.

Domingos Soares Branco (1925-1991)

 

Monumento ao 25 de Abril, 1997

João Cutileiro (1937-)

O K. também está presente de modo patente na arquitectura
urbana, em edifícios, como a oitocentista estação do Rossio (1886), em Lisboa,
do arquitecto José Luís Monteiro (1848-1942) em estilo pastiche neo-manuelino – e ao qual o ácido Fialho de Almeida chamou
de “macaco-árabe”[9] –, com uma rampa de acesso
pelo largo do Carmo e um túnel do Rossio por onde saem as linhas de Sintra e do
Oeste. Com o Estado Novo e a presença do engenheiro Duarte Pacheco (1900-1943)
como ditatorial Ministro das Obras Públicas de Salazar, de 1932 a 1936 e de novo de
1938 até à sua morte por acidente na estrada, o urbanização e a arquitectura de
Lisboa ganharam não só um plano geral de urbanismo em moldes tipicamente
estado-novistas, assim como o dinâmico renovador da urbe deixaria o complexo
comemorativo da Exposição do Mundo Português – erguido para celebrar o Duplo
Centenário nacional, da qual examinamos noutro local o padrão dos
Descobrimentos – como marcas indeléveis duma opção político-estética na reconstrução
da capital e, para além disso, dum estilo perdurável na epiderme material da
cidade. Neste vasto conjunto urbanístico resultante da dinâmica acção de Duarte
Pacheco ficariam como forma específica de K. não só alguns monumentos e
pavilhões em Belém, mas, sobretudo, a vasta praça do Areeiro e as avenidas circundantes
João XXI e de Roma, sem esquecer a aqui referida Fonte Monumental da Alameda
Afonso Henriques – oposta ao Instituto Superior Técnico –, risco dos
arquitectos Rebelos da Silva e esculturas de Macedo, Maximiniano e Barradas. No
primeiro caso, o da vasta conjunto das praça do Areeiro (1938-43), com a sua
monumentalidade enfática, hirta e arrebicada, avulta a marca do arquitecto Cristino
da Silva (1876-1946), formado em Paris e de tendências modernistas mescladas de
elementos de tradição portuguesa. [10]

 

 

 

Tomás Taveira (n. 1938)

 

 

No período pós-Abril, a
arquitectura K. tem um dos seus expoentes máximos no conjunto das torres das
Amoreiras, em Lisboa, erguidas entre 1980 e 1987, com risco de Tomás Taveira
(nasc. em 1938), arquitecto que fez estudos nos Estados Unidos, donde trouxe
tiques arquitectónicos decorativos de modas então vigentes ali, com arrebiques,
materiais e coloridos que tiveram voga na América do Norte, dando ainda apoio a
três dos “elefantes brancos” dos estádios construídos entre nós na fase do Euro
do futebol. As “taveiradas” das Amoreiras desfeiam bastante a capital,
sobretudo quando o viajante chega a ela de avião, dando-se conta desses pregos
monstruosos cravados no corpo lisboeta.[11] O K.
arquitectónico e monumental não se fica, porém, apenas na capital, já que se pode
lembrar ainda o parque temático e histórico, construído a partir de 1938 e
inaugurado em 1940, erguido nos arredores de Coimbra, no largo de Santa Clara,
projecto que se ficou a dever a um dos barões do salazarismo, o médico Bissaia
Barreto (1886-974), o chamado Portugal dos Pequenitos.[12] Este
complexo lúdico e etnográfico, com um projecto do arquitecto Cassiano Branco,
pretendia compendiar com sentido pedagógico-cultural os monumentos portugueses
mais prestigiados, reproduzidos aqui em escala reduzida, donde o seu nome, além
de que se guiava por um enfático e evidente ideal estado-novista de exaltação
da casticidade e da identidade nacionais  através dum conjunto de casas regionais
portuguesas, solares de Trás-os-Montes e Minho, típicas dessas regiões com as
suas hortas, jardins, azenhas e pelourinhos. Numa fase posterior, procurou-se
sobretudo erguer réplicas miniaturais dos referidos monumentos mais emblemáticos
do país, assim como, a partir de 1950, se quis alargar o seu alcance e  representatividade a todos o espaço colonial,
com as “províncias ultramarinas” africanas, mais Macau, Estado Português da
Índia, Timor e ainda o Brasil, com as suas floras nativas. Como este parque
sobreviveu ao 25 de Abril, hoje encontramos nele as nossas antigas colónias,
agora com pavilhões sob a alçada dos chamados “palops” e da lusofonia, o que
permite que uma instituição K., retrógrada e ao serviço de ideais
estado-novistas, se tornasse hoje politicamente correcta. A verdade, contudo, é
que, mesmo reciclado e normalizado em conformidade com um discurso
neo-ortodoxo, o Portugal dos Pequenitos não perdeu a sua dimensão inautêntica
de K., como uma espécie de Disneylândia do nacionalismo português, com os seus velhos
mitos identitários e folclóricos, incluindo o nosso império colonial, agora independentizado.

 

 

 

José Rodrigues dos Santos

 

Margarida Rebelo Pinto

 

Fernando Dacosta

 

 

 

O
“best-seller” como K.

Neste ensaio, o nosso
conceito de K. cinge-se exclusivamente ao domínio estético-sociológico. No
sentido que lhe deu Abraham Moles, o fenómeno K. pertence à “civilização do consumo“, que produz para consumir e
cria para produzir, num ciclo cultural cuja definição fundamental é o da
aceleração.[13] Compreende-se assim que o
sociólogo de Estrasburgo considere o K.
como uma “arte da felicidade”, como reza o subtítulo do seu livro fundador. O K. é indissociável da cultura de massa, do mercado, do
consumismo que tudo perverte ou banaliza, mesmo quando vende nos supermercados reproduções
emolduradas da Seara na Crau de Van
Gogh, um pintor trágico e autêntico que não pertence, em si mesmo, ao género em
causa, a qualquer forma de inautenticidade estética ou existencial. Por outras
palavras, é o consumismo que transforma os objectos culturais em K.

Neste campo semântico-social
do K. convém recordar o fenómeno do best-seller, ou seja, do livro de grande
tiragem vendido em larga escala, o que na América do Norte novecentista e do
nosso presente século transformou certos escritores como Tom Clancy, Dan Brown,
Stephen King, Leon Uris ou Morris West em autores de enorme público e que o
cinema multiplicou o impacto ao passar para a tela essas narrativas de impacto
popular. Nem todos esse autores agora mencionados são de todo em todo do género
K., já que os três últimos podem ser
considerados escritores de valia indubitável, ao passo que os dois primeiros se
inscrevem sem dúvida no paradigma típico do K.,
ou seja, da literatura mais vulgar, de nível medíocre ou até desprezível, como
o serão, sem dúvida, Tom Clancy (1947-2013) ou Dan Brown (nasc. em 1964), ambos
cultores duma literatura vazia de conteúdo estético, a não ser as demagogias ou
preconceitos que ambos servem, ou seja, o belicismo nacionalista
norte-americano no primeiro e a aversão à Opus Dei no segundo. Sendo o best-seller um produto extremamente popular
e um êxito de edição da literatura de massa que é, tal fenómeno não exclui que
algumas dessas obras sejam de qualidade, como serão, sem dúvida os casos de romances
de Leon Uris como Exodus ou Mila 18, tendo do primeiro sido
extraído, por Otto Preminger, um filme de grande impacto, em 1960, com
excelentes actores (Paul Newman, Lee J. Cobb, Eva Marie Saint, Peter Lawford,
etc). Também se deve ao romancista best-seller
australiano Morris West um romance de valia, intitulado As Sandálias do Pescador (1963, adaptado ao cinema por  Michael Anderon,em 1968, com Anthony Quinn,
Lawrence Olivier, Vittorio de Sica e 
Oscar Werner entre os actores), sobre um papa reformador russo, que
saíra do Gulag soviético para se tornar cardeal e, por fim, papa que modifica profundamente
o Vaticano com a sua heróica simplicidade cristã, assim com um outro, intitulado
Torre de Babel (1968), sobre a
implacável rivalidade entre serviços judeus e árabes. Também digno de leitura,
o norte-americano Stephen King (nasc. em 
1947), autor de romances e livros de contos com imensa popularidade e
logo potenciados pela 7ª Arte, tal como Carrie
(1974, adaptado ao cinema por Brian de Palma em 1976 e, depois, em 2013), além
de Shining (1978, levado ao cinema
por Stanley Kubrick, 1980), ou Coração na
Atlântida (1999, feito filme por 
Scott Hicks, em 2001), excelente retrato da geração americana que fez
a  guerra do Vietname. Em contraste
flagrante com o valor deste autores populares, já os referidos Tom Clancy e Dan
Brown são exemplos dum K. demagógico e desprovido de qualquer substância
cultural, o primeiro com o famoso Caça ao
Outubro Vermelho (1984, adaptado ao cinema em  1986) e o segundo com o famigerado Código Da Vinci (2003), levado ao cinema
por Ron Howard (2006), uma das obras mais indigentes deste género, embora as
suas vendas andem pelo milhões de exemplares

Se estes dois últimos casos
ilustram a natureza entranhadamente kitsch
de certa literatura de massas, já os nomes de King ou West mostram como há, de
algum modo, a possibilidade de um escritor popular e de grande êxito de vendas
poder ter talento e capacidade de romancear histórias de interesse real e que
encontram estrondoso eco no público leitor, como já sucedera no século XIX com
autores como Dickens, Eugène Sue, Hugo e Zola, ainda que este último merecesse
a sua fama sobretudo ao seu alistamento na turbulenta questão Dreyfus que
agitou a França e o mundo. Entre nós, nas nossas liliputianas dimensões de pequeno
país pouco alfabetizado, os casos dos romances de autores como o jornalista e
apresentador do Telejornal da RTP chamado José Rodrigues dos Santos, Margarida Rebelo
Pinto, Maria João Lopo de Carvalho ou do jornalista e jornalista Fernando Dacosta[14]
pertencem sem dúvida ao K. mais
categoricamente negativo, ou seja, ao inautêntico puro, como fabricantes de
pechisbeque impresso ou cultores duma escrita que não passa de inautenticidade
cultural, quer escrevam romances popularuchos, quer componham obras inqualificáveis
como As Máscaras de Salazar, actualmente
em 26ª edição, o que comprova o abaixamento intelectual do nosso público leitor
e a ignorância generalizada do público que lê em Portugal.

No século XIX, o sucesso estrondosamente
popular de obras de Junqueiro (1850-1923) como A Morte de D. João (1874), do panfleto anticlerical A Velhice do Padre Eterno (1885) e dos seus poemas
rabidamente anti-ingleses como À Inglaterra
(1890, com o histérico incipit “Ó cínica
Inglaterra, ó bêbada impudente / Que
tens levado, tu, ao negro e à escravidão?/ Chitas e hipocrisia, evangelho e
aguardente…”, 1890), ou o delírio de ódio antibrigantino do poema-panfleto Pátria (1891),  mostrando até que ponto, mesmo quando o pobre
poeta de  Freixo de Espada à Cinta optava
pelo registo lírico popular, como na “Moleirinha” da Musa em Férias (1879)  - com versos
K. como este: “Pela estrada plana,
toc, toc, toc,/ Guia o jumentinho uma velhinha errante ,/ Como vão ligeiros,
ambos a reboque,/ Antes que anoiteça, toc, toc, toc,/ A velhinha atrás, o
jumentinho adiante!...”  -, a sua
produção literária vazava-se em moldes K. Mas, mesmo assim, havia em Junqueiro,
pelo menos, algum talento, alguma cultura, alguma capacidade retórica ou
sarcástica de engendrar obras de vitríolo demagógico que aliciavam e encantavam
um público faccioso. E se pensarmos que continuam a editar-se regularmente
estes vários títulos seus, tal facto de sucesso editorial não deixa de
constituir uma persistência do gosto K.
numa receita que parecia totalmente dependente do Weltgeist… Já os casos de Rodrigues dos Santos, Dacosta, Margarida
Rebelo Pinto – esta, colaborando na revista K. chamada Selecções do Reader´s Digest,
acentua a sua inclusão nesta categoria -, assim como Maria João Lopo de
Carvalho, comprovam que o K. se gera sobretudo em mentes privadas de talento,
sem capacidade real de escrita, como produtos que são duma cultura indigente, de
escrita zero e carecida de qualquer valia literária ou cultural, penúrias que
são inseparáveis do conceito em causa.

 

 

 

Almada Negreiros

Ilustr. Arnaldo Ressano, 1935

 

 

Júlio Dantas

Ilustr. Arnaldo Ressano, 1935

 

 

 

O catálogo anti-Kitsch de Almada
Negreiros, de 1915

 

Chegados a este ponto no
nosso levantamento da problemática do conceito de K., essa “vasta praia do Kitsch”, [15] será
altura de tentarmos um breve panorama sintético de umas quantas manifestações
culturais lusas dos nomes, figuras, géneros artísticos e obras em que essa
inautenticidade ou mau gosto estético-artístico se reflectem, sem esquecer uma
breve tentativa de apresentarmos o seu par dialéctico, o anti-Kitsch, que aqui
se resumirá ao famoso e fogoso panfleto de Almada Negreiros, ao Manifesto anti-Dantas (1915), talvez o mais
fulgurante caso de catálogo de nomes e obras vilipendiadas pelo nosso futurista
e que se prendem ao nosso conceito de K., texto vitriólico no qual o clown lírico vergastava com furor declamatório
todo um escol que, no fundo, era a geração completa dos artistas, escritores,
gurus e intelectuais da I República, espécie de arca de Noé comandado por esse supremo
piloto-símbolo chamado Júlio Dantas, “que saberá tudo menos escrever que é a
única coisa que ele faz!”[16] Este
colérico catálogo imprecatório de 1915, além de ser um impiedoso manifesto
contra a cultura do regime republicano iniciado cinco anos antes, era um
autêntico inventário do K. dessa época nos campos culturais mais diversos,
começando com a literatura de Dantas – sob o pretexto de ridicularizar a sua
peça Soror Mariana, estreada na
altura – e a continuar com os demais escritores, “jornalistas de todos os
jornais”, “todos os pintores das Belas Artes e todos os artistas de Portugal,
que eu não gosto”, mais “os palermas de Coimbra” e todos os que eram “
políticos e artistas” [17],
mais os músicos, com mais um “Morra o Dantas, morra! Pim!” rematando com um apelo
para que Portugal viesse um dia a abrir os olhos – “se é que a sua cegueira é incurável
e então gritará comigo, a meu lado, a necessidade  que Portugal tem de ser qualquer coisa de asseado!”[18] O
manifesto de Almada era, antes de mais, uma denúncia feroz e universal do K. avant la lettre  que reinava na cultura da novo regime, todos
esses gurus e manipansos das artes e  das
letras da vida intelectual portuguesa de então, exceptuados os modernistas, da
sua própria geração, que ele não mencionava, os colegas do Orpheu...

 

Breve inventário do K.
português

 

Hoje, quase um século
depois deste manifesto imprecatório de Almada, se tivéssemos de inventariar,
embora sem vis polemica, o K.
nacional, que nomes apontaríamos, além dos que atrás fomos mencionando? Antes
de mais, o de Joana de Vasconcelos (nasc. em 1971), representante de Portugal
na Bienal de Veneza de 2013, verdadeira rainha do nosso K., de que ela é uma
dinâmica e operosa produtora de artefactos que vende ao mercado, ora pendurando
bolas de Natal na torre de Belém, ora reciclando motivos e peças de cerâmica de
Rafael Bordalo Pinheiro, ora confeccionando um gigantesco sapato de Marylin com
caçarolas brilhantes, chamada a mostrar obra sua por museus e palácios de referência,
como os de Versalhes ou da Ajuda, para ali expor as suas derradeiras trouvailles, ou objectos publicitários –
como o que fez em 2013 para uma marca célebre de perfumes franceses –, ela que,
tendo nascido em França, sabe cosmopolitizar o seu habilidoso kitschismo
lusitano e vender os seu artefactos de pechisbeque ao mercado das modas. Aluna
do Ar.Co. e tendo começado a expor regularmente na década de 90, Vasconcelos
surge como um exemplo da habilidade mercantil de ver acolhida com entusiasmo e
delícia uma obra de K. que se constrói essencialmente a partir do inautêntico,
bem como da reciclagem e desenvolta manipulação de temas alheios e de peças do
quotidiano, tudo confeccionado com o talento duma desembaraçada pasteleira que
sabe agradar às modas do dia e aos seus consumidores. Ao lado de profissionais
menos bem sucedidos como Maluda, Cargaleiro e outros nomes do nosso K., Joana
Vasconcelos já se instalou naquele nível de patamar de celebridade cosmopolita que
nenhuma denúncia estética ou cultural logrará afastar do sucesso comercial que
os seus produtos obtiveram e enchem os seus entusiastas da tal felicidade  a que Moles
se referia como essencial no fenómeno – o seu livro chama-se precisamente Kitsch, a Arte da Felicidade – e que o ouro falso do pechisbeque
satisfaz. Se a grande arte, sobretudo pela sua irreverência, ruptura ou heresia
muitas vezes provoca a cólera unânime ou a indiferença generalizada – pense-se em Van Gogh, Cézanne ou o
Picasso das Demoiselles d’Avignon –,
já uma arte de supermercado ou a aceitação tão unânime não deixa de ser um
sintoma do agrado imediato que o fenómeno K. em causa provoca. O facto de revistas
de arte e editoras de relevo no domínio artístico como a Thames & Hudson referirem
Joana Vasconcelos com admiração só comprova que entre o belo e mau gosto se
estende uma praia imensa.

 

 

Joana Vasconcelos

 

 

 

Outro nome inseparável do
conceito de K. é o do pintor, escultor e gravador José de Guimarães (nasc. em
1939), [19] cujo
monumento a Adamastor na praça 25 de Abril, na zona do Parque das Nações, em
Lisboa, pode ser considerado como exemplar do novo estilo artístico K. em Portugal. Esta
peça, de factura abstracta, tanto podia ser tomada como uma estátua da Padeira
de Aljubarrota como uma evocação do diálogo amoroso entre Papageno e Papagena
ou ainda como qualquer outra fantasia.

Adamastor, 1999

José de Guimarães (1939-)

O sucesso de José de Guimarães mede-se
ainda pelas livros que têm tratado dos seus talentos ou pelos prémios recebidos
e pelas exposições por ele feitas em Portugal e 
no estrangeiro, bem como pela cornucópia de prémios que o galardoaram,
além dos museus nacionais e estrangeiros em que está representado, desde o da
Fundação Gulbenkian, em Lisboa,  o Museu
de Arte Moderna em Antuérpia (Bélgica), o Museu de Arte Moderna de São Paulo
(Brasil), a Fundação Akemi (Osaka, Japão), a Casa de Serralves (Porto), o Museu
das Cruzes (Funchal), o museu do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, etc., participando
em várias exposições em Portugal e no estrangeiro.

 

 

José Malhoa, O Fado, 1910

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Outro nome expoente do nosso
K, é o de José Malhoa (1855-1933), autor do célebre óleo O Fado (Museu da Cidade, Lisboa, 1910),[20]  que constitui, sem dúvida, um dos emblemas
máximos do K. luso, tanto pela sua atmosfera sórdida como pela sua complacência
para com a canção nacional, ali traduzida numa cena lôbrega de alcouce, com a
cantadeira e o seu guitarrista. Esta obra, que merecia sem dúvida a mesma cruel
indignação extrema de Almada Negreiros quando dizia que, se ele é português, preferia
então ser espanhol. Ícone plástico de retumbante fama, nesse óleo vemos um
fadista de aspecto sórdido e de má compleição física dedilhar uma guitarra no
quarto duma prostituta desleixada, de cigarrinho na ponta dos dedos, suada e
feia, que o escuta embevecida, tudo isto no meio duma atmosfera lúgubre e suja
de prostíbulo, com imagens religiosas na parede, um espelho partido e uma
garrafa de vinho, meio bebida, em cima da mesinha na qual a “Adelaide da
Facada” apoia o cotovelo, ao mesmo tempo que a uma chinela lhe pende dum pé
calçado com uma meia às riscas. O tunante que canta – e que era o verdadeiro
fadista Amâncio que posou para o artista caldense – olha para o espectador do
quadro como se nos dirigisse uma mensagem directa e pessoal, suscitada, talvez,
pelo escândalo que, na época – era o ano em que a República seria proclamada –,
provocara, pois havia quem a achasse ignóbil e quem se revisse neste retrato
“nacional” com orgulho e auto-satisfação: “tudo isto existe, tudo isto é
triste, tudo isto é fado?” (palavras dum fado que Amália havia de imortalizar
algumas décadas depois, já no contexto da ditadura nacionalista do Dr.
Salazar). Falando de Malhoa, o crítico de arte Braz Burity (i.e., Joaquim
Madureira) dizia que ele “pintava em português” – o que daria razão a Almada,
nos já referidos termos do seu manifesto de 1915, para a sua indignada recusa
da nacionalidade, preferindo ser espanhol.

Quanto a
Alberto de Sousa (1880-1961), foi ele um exemplo do K. nos cartoons durante a I República, tendo sido merecidamente incluído
no manifesto de Almada de 1915 e nesse pelourinho infame definido como “o Júlio
Dantas do desenho”.[21] Colaborou
como cartoonista na Ilustração Portuguesa, no Mundo, Vanguarda, Novidades, A Capital, República,
etc., mostrando-se sempre o cultor do K. no cartoon
ou nas suas pinturas, tendo realizado diversas exposições de pintura desde 1913 a 1938. Pintor,
desenhador – as imagens e capas das edições das peças de Dantas, nomeadamente a
Soror Mariana, que tanto indignou
Almada em 1915, são dele – e ilustrador de obras didácticas como os Quadros da História de Portugal de Chagas
Franco e João Soares, bem como dos selos do correio dedicadas a Camões em 1924,
Alberto de Sousa epitomiza, de algum modo, a essência do pechisbeque do desenho
no seu tempo.
 

José Vilhena (n. 1927)

Já José Vilhena (nas. em
1927 em Figueira de Castelo Rodrigo), pode ser considerado um exemplo curioso
desse mesmo género, a começar a sua carreira de humorista em livros
provocadoramente eróticos e políticos que se vendiam em semi-clandestinidade
para escaparem às apreensões da censura salazarista, assim como em caricaturas
publicadas nos anos 50, tendo colaborado em duas revistas de um humor de voos
curtos por causa do mesmo Lápis Azul da ditadura, o Mundo Ri, e Cara Alegre.
Frequentou a Escola de Belas Artes do Porto sem concluir o curso de
arquitectura, fixa-se em Lisboa e publica em 1956 a sua primeira colecção
de cartoons, Este Mundo e o Outro, e em 1959 Manuel
de etiqueta, livro de humor desabrido e em geral grosseiro. Nos anos 60
publica vários livros, sendo detido pela PIDE em 1962, 1964 e 1966; em 1973
inicia a edição da Grande Enciclopédia Vilhena.
Depois do 25 de Abril edita a revista Gaiola
Aberta, o que lhe valeu vários processos em tribunal, a que se seguem O Fala Barato, primeiro como jornal e
depois como revista, O Cavaco e O Moralista. Reuniu-se em folheto uma
colecção de cartoons de Vilhena dedicada
a factos e figuras da revolução de Abril, Crónica
duma Revolução, edição da C.M. de Lisboa em 1996, prefaciada por João
Soares. A sua inclusão no K. deve-se ao facto de, mau grado a sua capacidade de
provocação e ruptura com os regimes políticos vigentes, o da ditatura e o
actual, o humor de Vilhena, tanto gráfico como literário, não ter real
consistência artística ou cultural, já pelo desenho canhestro e convencional,
já pelo recurso a formas grosseiras e desbragadas de humor que o desqualificam
como verdadeiro cartoonista, reduzindo-o a um profissional do pechisbeque da
graçola licenciosa.

A cerâmica popular de
Rosa Ramalho (São Martinho de Galegos, Barcelos, 1888-1977) é outro exemplo.
Casada com um moleiro e mãe de sete filhos, Rosa só se dedicou ao artesanato em
barro após a morte do marido, tornando-se depressa famosa. O pintor António
Quadros descobriu-a e tornou-a conhecida nos meios artísticos. Rosa Ramalho
recebeu em 1968 a
medalha das “Artes ao Serviço da Nação”. O escritor Mário Cláudio dedicou-lhe o
livro Rosa (1988). O pendor K. da sua
cerâmica popular é inegável. Já o oleiro e ceramista José Franco (Sobreiro,
Mafra, 1920 – Lisboa, 2009) nos parece antes um artista popular e escultor de
mérito indesmentível, pois que, além de cerâmica utilitária da região mafrense,
de jarros para águia e vinho, produziu também graciosas estatuetas de cerâmica,
sendo de especial interesse as suas figuras de Santo António. O escritor
brasileiro Jorge Amado, que o conheceu, tinha por José Franco grande apreço. Criou-se
uma Aldeia Típica de José Franco para servir de museu natural do seu talento de
oleiro e escultor, com a construção ali de uma aldeia saloia do século XX,
habitada por bonecos mecanizados, com lojas em miniatura, etc. Franco foi agraciado
com a comenda de São Tiago pelo presidente Ramalho Eanes.

Jorge Colaço (1868-?),
pintor, caricaturista e azulejista, monárquico, colaborou com caricaturas
acerbas em vários semanários satíricos como O
Talassa, que ele mesmo fundou. Dirigiu também o Suplemento humorístico do Século,
tendo publicado na Voz uma série de
caricaturas pró-franquistas durante a guerra civil de Espanha. [22] Como
cartoonista, Colaço tinha um traço pesado e uma rigidez falha de humor. Contudo,
em reacção ao tema em causa, Colaço é sobretudo autor de painéis de azulejos
que decoram as estações da linha ferroviária Lisboa-Porto, aqueles em estilo
verdadeiramente K. A sua produção no azulejo está presente em vários países,
como Brasil, Argentina, Suíça (palácio da SDN em Genebra), Cuba, etc. No
Hotel-Palace no do Buçaco,[23]  outro expoente do K. luso,  em estilo neomanuelino, tem Colaço também
painéis de azulejo.

 

 

 

João Medina

Monte Estoril, 20-XI-2013

 

BIBLIOGRAFIA essencial:

 
 

– Abraham A. Moles, Le Kitsch. L'Art du Bonheur, Paris, H.M.H., ilustr.

 .

– Antonio Munoz Molina, "«Kitsch» nacional", Babelia, suplemento cultural de El País, 21-IX-2013, p. 3.

 .

– João Medina, Portuguesismo(s), Acerca  da identidade nacional, Lisboa, Centro de
História de Universidade de Lisboa, 2006, ilustr.

.
– José-Augusto França, A Arte em Portugal no séc. XIX, vol. I,
Lisboa, Livraria Bertrand, 1967, ilustr.

.

– José-Augusto França, A Arte em Portugal no Século XX, Venda
Nova, Bertrand Editora, 1991, ilustr.,

.

– José Fernandes Pereira, Dicionário de Escultura Portuguesa,
Lisboa, Caminho, 2005, ilustr.
.

– Rafael Laborde Ferreira
e Victor Manuel Lopes Vieira, Estatuária
de Lisboa, Amigos do Livro, 1985, ilustr.

– Osvaldo Macedo de
Sousa, História da Arte da Caricatura em
Portugal, vol. II: Na República,
1910-1933, Edfição Humorgrafe /SECS, 1999.

 

 

[1] Pechisbeque,
no sentido de ouro falso, imitação ou relojoaria barata, de uma liga de cobre e
zinco a imitar o ouro vem do inglês pinchback,
nome dum relojoeiro inglês.

[2] Abraham A. Moles, Le Kitsch, L´Art du Bonheur, Paris, HMH,
1971, ilustr.

[3] Abraham A. Moles, op.
cit., pp. 98 e ss e 171 ss (psicanálise
do supermercado,  sistema neokitsch).

[4] Durante o nosso PREC de 1974-5, quando os graffiti nos muros bradavam indignados
“Socialismo sim, só ares não!”, o socialismo mole de Mário Soares aparecia como
repudiado pelos “verdadeiros socialistas” como um K., ou seja, uma ideologia inautêntica.

[5] A. Muñoz Molina, “«Kitsch» nacional”,  Babelia,
suplemento cultural de El País, 21-IX-2013.

[6] Prémio de arquitectura resultante duma doação feita
nesse sentido pelo diplomata português Fausto de Queirós Guedes, 2º visconde de
Valmor (1837-1898), atribuído em Lisboa desde 1902, galardoando arquitectos
famosos como Ventura Terra ou Raul Lino.

[7] Note-se que este escultor foi um enorme erro de casting, já que a obra de Soares Branco
se desenvolveu quase toda dentro da temática e da ideologia da Ditadura, com
obras dedicadas a figuras religiosas e políticas dentro dos parâmetros do
Estado Novo, como os monumentos a Santo António, na então chamada Lourenço
Marques (1958), ao Paraquedista, em Tancos (1968, erecto em plena guerra
colonial), uma estátua a Pio XII, em Fátima (1972), a Nuno Álvares Pereira, no
Museu Militar, em 1972; já no período pós-25 de Abril, apontamos outros
exemplos de obras K. nos mesmos domínios.

[8] Já o seu andrógino D. Sebastião em mármore, em Lagos,
1973, no final da Ditadura, teve a vantagem de romper com o cânone tradicional
do “rei menino” dos sebastianistas, apresentando antes o “pedaço de asno” como
um ET dentro duma grande armadura de astronauta que desceu à Terra e olha em
atemorizado redor, inseguro como alguém que acaba de desembarcar num deserto
vazio, sendo a figura, sem pedestal, constituída por junção de pedaços de mármore
de cores diferentes. A Cutileiro se deve também um amargurado e bastante
atípico conjunto na Gandarinha, em Cascais (1960), o que mostra bem que o mesmo
artista K. do “Pirilau” sabe romper com cânones solenes.

[9] Fialho de Almeida, Os Gatos, vol.6, 1892, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1953,
p.102.                                                                                                                                                                                                                   
                                                                    

[10] Luís Cristino da Silva (Lisboa, 1896-1976) estudou em
Paris e foi entre nós um dos mestres do modernismo arquitectónico do Estado
Novo, também designado pela expressão “português suave”, ao mesmo tempo
modernista e tradicionalista, deixando alguns edifícios exemplares como o
Pavilhão Oficial do Mundo Português (1940), a nova Universidade de Coimbra
(1948) e a referida praça do Areeiro, assim como o plano de urbanização da Nova
Oeiras. Os outros grandes arquitectos do salazarismo foram Carlos Ramos
(Instituto Português de Oncologia, Pavilhão da Rádio), Jorge Segurado (Casa da
Moeda, Lisboa), Cassiano Branco (Cinema Capitólio, Hotel Vitória) e Cottineli
Telmo, Pardal Monteiro (Instituto Técnico).

[11] Um
notório escândalo sexual em 1989, assim como a sua expulsão, em 2003, da
Faculdade de Arquitectura de Lisboa, onde ensinava, parecem ter posto fim à
carreira deste arquitecto K.

[12] Bissaia Barreto Rosa (Castanheira de Pêra, 1886-1974),
médico e professor universitário, amigo íntimo de Salazar, deputado à
assembleia constituinte da I República, filiado na maçonaria com o nome
simbólico de Saint-Just, e dirigente
do Partido Evolucionista e, depois, da União Liberal Republicana, colega do
ditador na Universidade e também filado no CADC, viria a integrar os quadros da
União Nacional do Estado Novo, (1932), tornando-se desde então uma figura
influente do novo regime. Juntamente com Manuel Rodrigues, Armindo Monteiro e
outros, criou em 1936 a
Fundação Bissaia Barreto. Escreveu obras de medicina e de assistência.

[13] Abraham A. Moles, op.
cit., p.14.

[14] José Rodrigues dos Santos, locutor da TV, nasc. na
Beira, Moçambique, em 1964, licenciado em Comunicação Social pela Universidade Nova
de Lisboa, locutor da BBC, da Rádio Macau (1981) e da RTP (1991), sendo o
segundo escritor português mais vendido depois de José Saramago,  autor de A
Mão do Diabo (2012), O Homem de Constantinopla
e o Homem de Lisboa (2013), Fúria Divina e O Codex 632 (2005), livros traduzidos em espanhol, francês, italiano
e inglês. Margarida Rebelo Pinto, nas. em 1965, licenciada em Letras da FL-UL,  edita o seu primeiro romance em 1999,
colabora em vários jornais e revistas como as Selecções do Reader’s Digest. 
Maria João Lopo de Carvalho, nasc. em Lisboa em 1962,  trabalha numa agência de publicidade, depois
no município de Lisboa e é autora de vários livros infantis, publicando
abundantemente desde 2000, tendo editado em 2013 A Padeira de Aljubarrota. Fernando
Dacosta nasc. em 1940 em Angola, licenciou-se em Letras na FLUL, enveredando
pelo jornalismo em 1967 ligado a um órgão da Opus Dei, colaborando ainda no Comércio do Funchal, Diário de Lisboa, Diário de Notícias,
Público. Publicou diversos livros como Salazar
- Fotobiografia (2000) e Máscaras de
Salazar (1997, reedit.); este último teve 26 edições até 2010.

[15] Abraham A. Moles, op.
cit., p.6.

[16] Almada Negreiros Manifesto
Anti-Dantas in  Obras Completas, vol. 6 (Textos
de intervenção), Lisboa, Estampa, 1972, p.11.

[17] Almda Negreiros, op.
cit., p.16.

[18]  Ibidem, p.17.

[19] O
pintor José Maria Fernandes Marques, nascido em Guimarães em 1939, adoptou o
nome artístico de José Guimarães, ingressou na Academia Militar (1957),
licenciou-se em engenharia em 1965 e fez carreira como militar do ramo de
engenharia, combatendo em Angola, de 1967 a 1974, tendo exposto pela primeira vez em
Luanda (1968). Foi galardoado por Mário Soares com a comenda do Infante D. Henrique.

[20]  Sobre a forma como foi pintado este óleo e as
figuras dos que posaram para ele, veja-se o depoimento de António Montês Malhoa íntimo, Caldas da Rainha, Museu
de José Malhoa, 1983, pp. 36ss. Acrescente-se que as sessões de pose da
“Adelaide da Facada” custaram ao pintor seis vinténs cada. O tunante que canta
era na realidade o verdadeiro fadista Amâncio, rufião exímio no uso da navalha
e amante da Adelaide, que ele, roído de ciúmes, sovava depois de cada sessão. As
sessões decorreram na Rua do Capelão, no bairro da Mouraria, onde o artista das
Caldas era conhecido como “o Pintor Fino”. Acabada a obra, Malhoa convidou o
casal de fadistas a irem visitar o quadro exposto no seu atelier da Avenida 5 de Outubro, em companhia dos amigos, o que deu
ocasião a uma romaria de rameiras e moinas, que o artista recebeu sem
desprazer.

[21] Almada Negreiros, op.
cit., p.16.

[22] Essas caricaturas pró-franquistas são referidas e
coligidas no livro de Alberto Pena Rodríguez, El Grande Aliado de Franco. Portugal y la Guerra civil de España:
prensa, rádio, cine y propaganda, Corunha, Edicios do Castro, 1998, pp. 236-239
e selecção de desenhos da Voz, de 1936 a 1939, pp. 242-248; a
sua antipatia por Bernardino Machado, então exilado em França, leva-o a
dedicar-lhe cartoons agressivos.

[23]  O Hotel do
Buçaco, ideado pelo rei D. Carlos, que não chegaria a utilizá-lo. O edifício é de
Luigi Manini (1848-?) – responsável pelo palácio da Regaleira, em Sintra,
propriedade do capitalista Carvalho Monteiro, o “Monteiro dos Milhões” –, arquitecto
e cenógrafo italiano que veio para Portugal em 1879, aqui se mantendo até 1913.
Nele colaborou também Norte Júnior (nasc. em 1878) e galardoado com vários
Prémios Valmor. Como o Hotel-Palace du Buçaco, feito em estilo manuelino, só
terminou em 1907, e D. Carlos foi assassinado em começos de 1908, coube ao seu
filho D. Manuel usá-lo, ainda havendo nele uma suite Rainha D. Amélia.

 

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