Retrato vivo de um idealista pragmático

07-06-2017
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A vida quotidiana e o combate político de Álvaro Cunhal entre 1960 e 1968 contados no novo livro de José Pacheco Pereira. O quarto volume da biografia do líder histórico do PCP

d.r.

Que pode fazer juntar numa noite fria de Novembro no Forte de Peniche, antiga prisão política do salazarismo, pessoas tão diferentes como o filósofo Eduardo Lourenço, o militar de Abril Vasco Lourenço, a historiadora Irene Pimentel, o novo ministro da Cultura, João Soares ou o candidato presidencial Marcelo Rebelo de Sousa? A resposta é simples: o lançamento do IV volume de “Álvaro Cunhal, uma Biografia Política” de José Pacheco Pereira, realizado esta semana.

Ver um ministro (João Soares) e uma secretária de Estado (da Cultura, Isabel Botelho Leal) chegar a um ato público sem estarem ostensivamente rodeados de guarda-costas e isso acontecer numa sala cheia de ex-presos políticos, de figuras da Resistência e de antigos militantes da esquerda revolucionária, tudo isto sugere que alguma coisa mudou na situação política.

A presença de um Marcelo Rebelo de Sousa, muito sorridente mas em contido silêncio, não significou apenas um ato de relações públicas na perspetiva da sua pré-campanha presidencial (uma piscadela de olha ao eleitorado de esquerda) como, objetivamente, uma desautorização da fação ultramontana do PSD (corporizada no deputado Duarte Marques) que na véspera pedira a saída de Pacheco Pereira do partido por ter aparecido associado a um evento da campanha da candidata do Bloco de Esquerda Marisa Matias.

Um lampejo da vida pessoal

A grande diferença entre este volume da obra dedicada a Cunhal e os três anteriores é que, pela primeira vez, o período estudado permite fazer alguma luz sobre a vida pessoal do dirigente histórico do PCP. E permite também perceber os difíceis exercícios de gestão que teve de fazer perante novos e complicados problemas: o começo da guerra colonial, o cisma sino-soviético e o despontar da esquerda maoísta ou a perturbação causada no movimento comunista internacional pelo esmagamento soviético da Primavera de Praga.

Esta opção do autor, que dá um interesse renovado ao livro teve, contudo, um custo na estrutura da obra, como sublinhou o historiador Fernando Rosas ao fazer a sua apresentação: há menos explicação do que se passava em Portugal entre 1960 e 1968, em particular das lutas populares de 1960/61, do começo da luta estudantil e do advento do marcelismo após a doença de Salazar.

Isso não o impediu de defender que “este livro, não sendo fácil, é incontornável para a história do PCP e de Portugal”.

Fuga aventurosa de Peniche

Quando, em Janeiro de 1960, Cunhal e outros dirigentes do PCP, incluindo o futuro dissidente maoísta Francisco Martins Rodrigues, fogem do Forte de Peniche, o secretário-geral tem 46 anos. Passou parte da vida adulta na cadeia e, pela primeira vez, o seu exílio em Moscovo (após ano e meio de clandestinidade em Portugal) vai-lhe permitir ter alguma vida pessoal. É algo de que, pouco fala, como explicou Pacheco Pereira na apresentação do livro, a não ser por sinais indiretos. Numa carta a Mário Dionísio faz referência aos seus primeiros cabelos brancos mas por aí se fica.

“O que virá a revelar sobre o seu percurso de vida encontra-se oculto nos seus romances, (publicados sob o pseudónimo Manuel Tiago) que acabam por ser largamente autobiográficos e representativos de diferentes fases do seu percurso enquanto militante”, explicou Pacheco Pereira.

Exilado em Moscovo, onde em 1961 é recebido como um herói pelo poder soviético, Cunhal vive com Isaura, a sua primeira companheira, de quem tem uma filha. Passa a ter à sua disposição uma infra-estrutura até aí impensável: dinheiro para o partido, gabinete, carro, motorista… Sabe-se que nesta altura ocupa algum tempo livre a ver museus, coisa que aparecerá refletida, também indiretamente, em futuros textos que publicará sobre temas artísticos.

Uma boneca para a filha do camarada

Tenta um difícil exercício de recursos humanos, gerindo os estados de alma dos comunistas desiludidos com o facto de o Estado Novo não ter caído com as crises de 1960/61. Dá apoio moral aos militantes exilados, desanimados por terem de criar os filhos em escolas próprias na URSS. Tenta que as tensões entre os quadros que estavam no exterior e os que tinham ficado em Portugal e continuavam a correr riscos diários, não se agudizassem.

Dessa altura foi referido um episódio significativo: um militante de Alpiarça que tinha ido frequentar um curso de formação a Moscovo tenta, no regresso, levar uma boneca para a filha. Cunhal diz-lhe: “Não podes, porque é perigoso. Mas está descansado que a boneca irá lá ter”. E o aparelho clandestino do PCP fará chegar o presente à destinatária…

Clandestino em Paris

Em Agosto de 1966 Cunhal escolhe voltar clandestinamente a Paris para estar mais perto de um país cuja evolução teme não estar a conseguir acompanhar. A polícia francesa tem ordens de expulsão contra ele, Amílcar Cabral e Piteira Santos. Como se explicou em tempos no Expresso, numa reportagem de Daniel Ribeiro, correspondente em Paris, De Gaulle pagava assim a Salazar a colaboração da Pide na vigilância dos seus inimigos em Portugal, nomeadamente de membros da organização armada de extrema-direita OAS que o tentara assassinar após o referendo e a concessão da independência à Argélia.

Clandestino e apoiado pela estrutura do PC francês, Cunhal vai, apesar de tudo, poder satisfazer outro desejo pessoal: ir frequentemente ao cinema. Fá-lo de forma tão discreta que os seus camaradas franceses lhe chamarão “rase-murailles”, ou seja aquele que anda sempre colado às paredes… É nesta altura que se separa e tem nova ligação, enquanto a primeira mulher vai trabalhar para a Rádio Portugal Livre em Argel.

A ambivalência de Moscovo

Politicamente, o percurso de Cunhal não é fácil. A URSS de Krutschev vê-o com ambivalência: um herói da luta antifascista e o protagonista de uma fuga aventurosa mas, também, um esquerdista que prefere a luta armada contra Salazar à coexistência pacífica advogada pelo PC soviético. O movimento comunista internacional acha que o PC espanhol é mais importante que o português e que Salazar só cairá depois de Franco cair. O cisma sino-soviético é a oportunidade para o PCP e o seu dirigente ganharem projeção internacional, alinhando a 100% com Moscovo.

Mas isso custa-lhe a primeira grande dissidência à esquerda no partido, com a saída de um membro do comité central, Francisco Martins Rodrigues e a formação da FAP e do CMLP, primeiras organizações maoístas que a PIDE não tardará a desmantelar. Outra frente crítica é a gestão da impulsividade de Humberto Delgado que chega a delinear planos para bombardear o Rossio de avião ou para desembarcar em Portugal com 80 comandos e o apoio do presidente argelino Ben Bella para tentar tomar o poder. Cunhal achava que, independentemente das divergências ideológicas que os separavam, Delgado corria riscos insensatos. O assassínio deste em 1965, após uma armadilha montada pela Pide perto de Badajoz, deu-lhe razão.

Romper com os mitos da Guerra Fria

“Todos fomos muito influenciados pela história da Guerra Fria mas, após ter consultado arquivos, fosse dos soviéticos, fosse do FBI, verifiquei que as coisas não eram a preto e branco, que havia muito menos unanimidade do que se pensava e que os soviéticos tinham muitas vezes que negociar com os PC estrangeiros”, explicou Pacheco Pereira na apresentação do livro. Em particular “a cúpula soviética nunca conseguiu convocar um congresso extraordinário para banir do movimento comunista internacional os chineses por causa da oposição de muitos partidos estrangeiros”.

A própria reacção à invasão da Checoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia em 1968 é vista por Pacheco Pereira como um fenómeno complexo. Se, por um lado, Cunhal tinha alguma simpatia pelas ideias reformistas de Dubcek, por outro, o fator decisivo para ele era a sobrevivência da União Soviética, base indispensável do movimento comunista internacional. “Foi por considerações geo-estratégicas e não por mero seguidismo que Cunhal apoiou os soviéticos e, ainda assim, fê-lo gradualmente, preparando o terreno para a decisão final”.

Os custos da Primavera de Praga

Por isso mesmo, Pacheco Pereira caracterizou o percurso de Cunhal como o de um “idealista pragmático”, enquanto Fernando Rosas falou de um dirigente político que “conseguia intuir o que eram as mudanças em curso no mundo mas que, por constrangimentos ideológicos, não conseguia ir tão longe como quereria”.

É claro que a rutura com a Primavera de Praga teve custos políticos: Carlos Antunes que viria a fundar as Brigadas Revolucionárias e a iniciar ações armadas contra a ditadura abandonou o PCP nessa altura. “Eu próprio”, explicou Fernando Rosas, “saí do partido nessa altura por causa da invasão da Checoslováquia”.

Cunhal que criticara o PCF por não aproveitar as potencialidades revolucionárias do Maio de 68, tinha agora a Primavera de Praga à perna. De resto, e esse será o tema a abordar no quinto e último volume desta obra, os anos do marcelismo (1968/74) “não serão” – disse Pacheco Pereira – “os anos mais felizes para o PCP”.

A vida quotidiana e o combate político de Álvaro Cunhal entre 1960 e 1968 contados no novo livro de José Pacheco Pereira. O quarto volume da biografia do líder histórico do PCP

d.r.

Que pode fazer juntar numa noite fria de Novembro no Forte de Peniche, antiga prisão política do salazarismo, pessoas tão diferentes como o filósofo Eduardo Lourenço, o militar de Abril Vasco Lourenço, a historiadora Irene Pimentel, o novo ministro da Cultura, João Soares ou o candidato presidencial Marcelo Rebelo de Sousa? A resposta é simples: o lançamento do IV volume de “Álvaro Cunhal, uma Biografia Política” de José Pacheco Pereira, realizado esta semana.

Ver um ministro (João Soares) e uma secretária de Estado (da Cultura, Isabel Botelho Leal) chegar a um ato público sem estarem ostensivamente rodeados de guarda-costas e isso acontecer numa sala cheia de ex-presos políticos, de figuras da Resistência e de antigos militantes da esquerda revolucionária, tudo isto sugere que alguma coisa mudou na situação política.

A presença de um Marcelo Rebelo de Sousa, muito sorridente mas em contido silêncio, não significou apenas um ato de relações públicas na perspetiva da sua pré-campanha presidencial (uma piscadela de olha ao eleitorado de esquerda) como, objetivamente, uma desautorização da fação ultramontana do PSD (corporizada no deputado Duarte Marques) que na véspera pedira a saída de Pacheco Pereira do partido por ter aparecido associado a um evento da campanha da candidata do Bloco de Esquerda Marisa Matias.

Um lampejo da vida pessoal

A grande diferença entre este volume da obra dedicada a Cunhal e os três anteriores é que, pela primeira vez, o período estudado permite fazer alguma luz sobre a vida pessoal do dirigente histórico do PCP. E permite também perceber os difíceis exercícios de gestão que teve de fazer perante novos e complicados problemas: o começo da guerra colonial, o cisma sino-soviético e o despontar da esquerda maoísta ou a perturbação causada no movimento comunista internacional pelo esmagamento soviético da Primavera de Praga.

Esta opção do autor, que dá um interesse renovado ao livro teve, contudo, um custo na estrutura da obra, como sublinhou o historiador Fernando Rosas ao fazer a sua apresentação: há menos explicação do que se passava em Portugal entre 1960 e 1968, em particular das lutas populares de 1960/61, do começo da luta estudantil e do advento do marcelismo após a doença de Salazar.

Isso não o impediu de defender que “este livro, não sendo fácil, é incontornável para a história do PCP e de Portugal”.

Fuga aventurosa de Peniche

Quando, em Janeiro de 1960, Cunhal e outros dirigentes do PCP, incluindo o futuro dissidente maoísta Francisco Martins Rodrigues, fogem do Forte de Peniche, o secretário-geral tem 46 anos. Passou parte da vida adulta na cadeia e, pela primeira vez, o seu exílio em Moscovo (após ano e meio de clandestinidade em Portugal) vai-lhe permitir ter alguma vida pessoal. É algo de que, pouco fala, como explicou Pacheco Pereira na apresentação do livro, a não ser por sinais indiretos. Numa carta a Mário Dionísio faz referência aos seus primeiros cabelos brancos mas por aí se fica.

“O que virá a revelar sobre o seu percurso de vida encontra-se oculto nos seus romances, (publicados sob o pseudónimo Manuel Tiago) que acabam por ser largamente autobiográficos e representativos de diferentes fases do seu percurso enquanto militante”, explicou Pacheco Pereira.

Exilado em Moscovo, onde em 1961 é recebido como um herói pelo poder soviético, Cunhal vive com Isaura, a sua primeira companheira, de quem tem uma filha. Passa a ter à sua disposição uma infra-estrutura até aí impensável: dinheiro para o partido, gabinete, carro, motorista… Sabe-se que nesta altura ocupa algum tempo livre a ver museus, coisa que aparecerá refletida, também indiretamente, em futuros textos que publicará sobre temas artísticos.

Uma boneca para a filha do camarada

Tenta um difícil exercício de recursos humanos, gerindo os estados de alma dos comunistas desiludidos com o facto de o Estado Novo não ter caído com as crises de 1960/61. Dá apoio moral aos militantes exilados, desanimados por terem de criar os filhos em escolas próprias na URSS. Tenta que as tensões entre os quadros que estavam no exterior e os que tinham ficado em Portugal e continuavam a correr riscos diários, não se agudizassem.

Dessa altura foi referido um episódio significativo: um militante de Alpiarça que tinha ido frequentar um curso de formação a Moscovo tenta, no regresso, levar uma boneca para a filha. Cunhal diz-lhe: “Não podes, porque é perigoso. Mas está descansado que a boneca irá lá ter”. E o aparelho clandestino do PCP fará chegar o presente à destinatária…

Clandestino em Paris

Em Agosto de 1966 Cunhal escolhe voltar clandestinamente a Paris para estar mais perto de um país cuja evolução teme não estar a conseguir acompanhar. A polícia francesa tem ordens de expulsão contra ele, Amílcar Cabral e Piteira Santos. Como se explicou em tempos no Expresso, numa reportagem de Daniel Ribeiro, correspondente em Paris, De Gaulle pagava assim a Salazar a colaboração da Pide na vigilância dos seus inimigos em Portugal, nomeadamente de membros da organização armada de extrema-direita OAS que o tentara assassinar após o referendo e a concessão da independência à Argélia.

Clandestino e apoiado pela estrutura do PC francês, Cunhal vai, apesar de tudo, poder satisfazer outro desejo pessoal: ir frequentemente ao cinema. Fá-lo de forma tão discreta que os seus camaradas franceses lhe chamarão “rase-murailles”, ou seja aquele que anda sempre colado às paredes… É nesta altura que se separa e tem nova ligação, enquanto a primeira mulher vai trabalhar para a Rádio Portugal Livre em Argel.

A ambivalência de Moscovo

Politicamente, o percurso de Cunhal não é fácil. A URSS de Krutschev vê-o com ambivalência: um herói da luta antifascista e o protagonista de uma fuga aventurosa mas, também, um esquerdista que prefere a luta armada contra Salazar à coexistência pacífica advogada pelo PC soviético. O movimento comunista internacional acha que o PC espanhol é mais importante que o português e que Salazar só cairá depois de Franco cair. O cisma sino-soviético é a oportunidade para o PCP e o seu dirigente ganharem projeção internacional, alinhando a 100% com Moscovo.

Mas isso custa-lhe a primeira grande dissidência à esquerda no partido, com a saída de um membro do comité central, Francisco Martins Rodrigues e a formação da FAP e do CMLP, primeiras organizações maoístas que a PIDE não tardará a desmantelar. Outra frente crítica é a gestão da impulsividade de Humberto Delgado que chega a delinear planos para bombardear o Rossio de avião ou para desembarcar em Portugal com 80 comandos e o apoio do presidente argelino Ben Bella para tentar tomar o poder. Cunhal achava que, independentemente das divergências ideológicas que os separavam, Delgado corria riscos insensatos. O assassínio deste em 1965, após uma armadilha montada pela Pide perto de Badajoz, deu-lhe razão.

Romper com os mitos da Guerra Fria

“Todos fomos muito influenciados pela história da Guerra Fria mas, após ter consultado arquivos, fosse dos soviéticos, fosse do FBI, verifiquei que as coisas não eram a preto e branco, que havia muito menos unanimidade do que se pensava e que os soviéticos tinham muitas vezes que negociar com os PC estrangeiros”, explicou Pacheco Pereira na apresentação do livro. Em particular “a cúpula soviética nunca conseguiu convocar um congresso extraordinário para banir do movimento comunista internacional os chineses por causa da oposição de muitos partidos estrangeiros”.

A própria reacção à invasão da Checoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia em 1968 é vista por Pacheco Pereira como um fenómeno complexo. Se, por um lado, Cunhal tinha alguma simpatia pelas ideias reformistas de Dubcek, por outro, o fator decisivo para ele era a sobrevivência da União Soviética, base indispensável do movimento comunista internacional. “Foi por considerações geo-estratégicas e não por mero seguidismo que Cunhal apoiou os soviéticos e, ainda assim, fê-lo gradualmente, preparando o terreno para a decisão final”.

Os custos da Primavera de Praga

Por isso mesmo, Pacheco Pereira caracterizou o percurso de Cunhal como o de um “idealista pragmático”, enquanto Fernando Rosas falou de um dirigente político que “conseguia intuir o que eram as mudanças em curso no mundo mas que, por constrangimentos ideológicos, não conseguia ir tão longe como quereria”.

É claro que a rutura com a Primavera de Praga teve custos políticos: Carlos Antunes que viria a fundar as Brigadas Revolucionárias e a iniciar ações armadas contra a ditadura abandonou o PCP nessa altura. “Eu próprio”, explicou Fernando Rosas, “saí do partido nessa altura por causa da invasão da Checoslováquia”.

Cunhal que criticara o PCF por não aproveitar as potencialidades revolucionárias do Maio de 68, tinha agora a Primavera de Praga à perna. De resto, e esse será o tema a abordar no quinto e último volume desta obra, os anos do marcelismo (1968/74) “não serão” – disse Pacheco Pereira – “os anos mais felizes para o PCP”.

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