Os dez capítulos da vida de Mário Soares

11-07-2019
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I - O rebelde bem nascido

Filho de um padre que se fez maçon, Soares cedo despertou para a política

"As minhas ideias vêm do meu pai e dos amigos dele. A minha casa respirava política". Mário Soares contou assim ao seu biógrafo, Joaquim Vieira, uma juventude agitada, que fez dele um rapaz interessado e irrequieto.

Filho de João Lopes Soares, político que durante a I República foi deputado, governador civil e ministro das colónias, e de Elisa Nobre Baptista, dona de uma pensão na Rua Ivens, no Chiado, Mário tem uma história familiar fora do comum.

O pai, João Soares, nascido em 1878, é ordenado padre em 1900. O que não o impede de ter um filho sete anos mais tarde e de o assumir como seu. Pouco depois da revolução republicana de 1910, e já depois de abandonar o sacerdócio, instala-se na pensão lisboeta de Elisa, onde esta vive com o marido e o filho, Cândido. E está ainda casada quando inicia a relação com o maçon João Soares. Iniciam uma vida comum com os filhos de ambos, Cândido e Tertuliano, que têm 18 e 19 anos quando nasce Mário Alberto Nobre Lopes Soares. Vem ao mundo em Lisboa, a 7 de Dezembro de 1924. João e Elisa só se casam em 1933, depois de o Vaticano anular a ordenação sacerdotal de Soares.

Estimulado pela vida agitada do pai - que com a revolução de 1928 e posterior ascensão ao poder de Salazar, se torna personna non grata para o novo regime - Mário Soares conhece desde tenra idade as grandes figuras da oposição. Tem como professor no Colégio Moderno - fundado em Lisboa pelo pai, que, para além de tantas outras coisas, era um reputado pedagogo - o militante comunista Álvaro Cunhal, que viria a tornar-se o lendário líder do PCP. Mário tem outros professores marcantes, como o filósofo Agostinho da Silva, ou marxista António Salema, mas Cunhal molda a sua maneira de pensar. "Achava-o um homem coerente e fascinante, um idealista, um puro que sonhava com a revolução e, ao mesmo tempo, um esteta: andava sempre bem vestido, trajava com gosto, embora modestamente", explica Soares a Maria João Avillez numa das suas várias biografias.

Com a consolidação do Estado Novo, João Soares passa dificuldades. É preso em várias ocasiões, vive clandestino, é deportado, exila-se. Mário guarda nas memórias de infância as visitas ao pai nas cadeias do Aljube ou do Forte de São Julião da Barra. Ou de o ver em encontros fugazes, em lugares seguros que a resistência clandestina ia forjando.

Durante o ensino secundário, Mário aproxima-se de vários movimentos comunistas e defende com convicção os ideais marxistas. Mas é ainda uma militância mais teórica do que prática. Aos 18 anos, é detido pela primeira vez, após desacatos entre um grupo de jovens comunistas (com quem estava) e uma delegação da Mocidade Portuguesa. Desta vez, o castigo limita-se a um ‘raspanete da PVDE, antecessora da PIDE.

Longe de ser um aluno brilhante - preferia alinhar com os colegas mais rebeldes em vez de ficar à sombra da condição de filho do diretor do Colégio Moderno, Soares chega ao curso de Ciências Histórico-Filosóficas, da Faculdade de Letras de Lisboa. Faria depois o curso de Direito, cumprindo a vontade do pai.

II - Comunista e alvo da PIDE

Na Faculdade de Direito, Soares aderiu ao PCP e tornou-se alvo da PIDE

Com a entrada na Universidade, Mário Soares junta-se convictamente à máquina comunista. Milita na juventude do PCP e junta-se ao PCP em 1942, apesar das reservas que tinha em relação à liderança de Estaline da União Soviética.

Não lhe falta vontade e energia para tentar mudar o estado de coisas no país, mas é, ainda assim, um jovem relativamente despreocupado, que os colegas da época lembram como "generoso" e "desapegado do dinheiro". É frequente ser Soares a pagar a conta quando se juntam nas tertúlias dos cafés de Lisboa, a discutir política. No ano lectivo de 1944/45, Soares conhece uma colega que combina os estudos de Letras com o início de uma carreira prometedora no Teatro Nacional. Chama-se Maria de Jesus Barroso e viria a tornar-se a sua companheira de toda a vida.

A vitória dos aliados na II Guerra Mundial dá alento aos jovens opositores. Soares está na organização de uma gigantesca manifestação que corre Lisboa em Maio de 1945, dando vivas aos vencedores. Mário convence-se de que a vitória do campo democrático e dos comunistas significaria, por si, o fim da ditadura portuguesa. Enganou-se.

Junta-se ao MUD, Movimento de Unidade Democrática que se formou para concorrer às eleições para a Assembleia Nacional em 1945. Mas o MUD não chegaria aos boletins de voto, desistindo com queixas de falta de condições democráticas.

Soares, com o nome de código "Duarte", vai-se afastando do PCP e recusa mesmo passar à clandestinidade. Não tinha perfil para viver escondido. "Com o meu temperamento não dava. Queria ter gajas, ir ao cinema, viajar. Tinha ambições várias, ambições literárias", contou a Joaquim Vieira numa entrevista para a biografia que este fez de Soares.

Em 1946, Soares inscreve o seu nome nas fichas da PIDE. É preso com toda a Comissão Central do MUD, acusados de atitudes "antipatrióticas". Acabariam por sair todos sob fiança e sem queixas de maus tratos. Nos anos seguintes, Soares voltaria a ser preso em várias ocasiões. Em 1948, cruza-se com o pai, preso por estar envolvido numa tentativa de golpe de estado, na prisão do Aljube.

Os colegas de cárcere recordam a sua coragem e espírito otimista. E até a altivez de quem recusava tomar um duche de água fria no mesmo sítio onde os prisioneiros faziam as suas necessidades. Soares, menino de boas famílias, preferia ficar a cheirar mal do que sujeitar-se a essas circunstâncias.

Membro da equipa do general Norton de Matos na candidatura deste às presidenciais de 1949, Soares consolidava a sua posição de destacado oposicionista, mas cai em desgraça junto do candidato presidencial quando o PCP o obriga a contar-lhe a sua ligação ao partido. Soares não perdoa o gesto e começa aí o seu afastamento definitivo da causa comunista.

Norton de Matos desiste da corrida presidencial, Soares voltou a ser preso. A quarta vez, desta vez com requintes de malvadez de um interrogador da PIDE que lhe aponta uma pistola e lhe garante que, se o matasse ali "como um cão", seria considerado legítima defesa. É na prisão que se casa, por procuração, com Maria de Jesus Barroso, já então grávida de três meses de João, o primeiro filho do casal. Maria vive tempos difíceis. Duas peças em que participa no Teatro Nacional são proibidas pela censura e a direção do Teatro recebe instruções para não a voltar a contratar. A auspiciosa carreira de atriz, que então despontava, ficava prematuramente comprometida.

João Soares nasce a 29 de agosto de 1949, pouco depois de o pai ser libertado da prisão. Isabel, a segunda filha do casal, viria ao mundo em janeiro de 1951.

III - Preso, vigiado, deportado

Mário Soares fez-se advogado para sustentar a família, mas vivia para a política

Concluído o curso de Histórico-Filosóficas, em janeiro de 1952, Mário Soares continua a depender financeiramente do pai. Sem poder dar aulas, não só por não ter concluído a parte pedagógica do curso mas também por a PIDE lhe recusar o indispensável atestado de idoneidade, Soares inscreve-se no curso de Direito da Faculdade de Lisboa, cumprindo o desejo do seu pai. Casado e pai de dois filhos, Soares tira o curso entre 1952 e 1957. É aluno de Marcelo Caetano, então eminente professor de Direito Administrativo, que então iniciava o percurso político que faria dele o sucessor de Salazar.

Depois de concluir a segunda licenciatura, Soares dá aulas na escola privada do pai, o Colégio Moderno. O corte com o PCP tinha-se consumado e Soares estava menos ativo politicamente, mas nem por isso deixava de se empenhar na oposição. Era um professor pouco assíduo e pouco dado a seguir o currículo oficial. Inicia atividade como advogado, abrindo escritório com uma nova geração de juristas, entre os quais o grande amigo Salgado Zenha. Mas nunca teve grandes ambições na advocacia: "Era um meio de subsistência, uma almofada para me dedicar à política".

Em 1958, a candidatura do general Humberto Delgado à Presidência da República traz Soares de volta à ribalta dos movimentos oposicionistas. Soares nem é um adepto entusiasmado de Delgado - considerava-o demasiado próximo do Salazarismo, dado que fora um dos mais empenhados obreiros dos primeiros anos do Estado Novo. Mas o apoio popular ao general que prometia "obviamente demitir" António Salazar convence-o de que Delgado pode ser o homem que faria abalar o regime. Humberto Delgado perde as eleições para Américo Tomaz, numas eleições em que se torna difícil ao regime disfarçar a fraude monumental do processo eleitoral.

Sempre próximo dos líderes de golpes como a Revolta da Sé, em 1959, ou o Golpe do Quartel de Beja, em 1962, Soares volta a ser preso. No total, Soares é detido em12 ocasiões, somando um total de mais de três anos de detenção. Na maioria das vezes, é libertado sem chegar a conhecer qualquer acusação.

Sem nunca esmorecer a atividade política, em 1964, está na fundação da Acção Socialista Portuguesa (ASP), movimento criado na Suíça.

No plano pessoal, as coisas complicam-se. No início dos anos 60, Soares viaja cada vez mais para o estrangeiro e a mulher e os filhos sofrem as ausências. As cartas sofridas da mulher, Maria Barroso sucedem-se.

Em 1965, Humberto Delgado é assassinado com a sua secretária perto de Badajoz. Um brigada da PIDE abate-o em Espanha. Soares oferece os seus serviços de advogado à viúva, Iva Delgado, o que esta aceita. Soares forma uma equipa de advogados para esclarecer o caso, em Portugal, Espanha e Itália e volta a ser detido pela PIDE. É cada vez mais vigiado.

O líder da ASP viaja por toda a Europa. Estabelece contatos com partidos socialistas e sociais democratas das democracias europeias e visita o bloco de Leste. As viagens à Checoslováquia, Cuba e Jugoslávia confirmam nele a ideia de que o ideal comunista não era, na prática, o que a teoria prometia.

Em 1967, bate-lhe à porta do escritório de advogados um jornalista do jornal britânico ‘Daily Telegraph’. Estava a investigar o famoso caso das ‘Ballets Rose’, em que figuras do vulto do regime eram acusadas de frequentar uma casa de meninas onde tinham sexo com menores. O artigo faz escândalo, ao revelar o encobrimento do caso pelo regime. Soares é detido, acusado de divulgar notícias falsas e de pôr em casa a moralidade de Salazar.

É o período mais duro que passa na prisão. Fica isolado durante três meses em Caxias, sem falar com ninguém. Passa o natal sozinho, sem um livro, um jornal, uma palavra.

Solto em março de 1968, mal tem tempo de gozar a liberdade. O Conselho de Ministro decide a sua deportação para São Tomé e Príncipe, sem esperar pela acusação ou julgamento.

Soares chega à ilha de São Tomé com um fato de inverno, para enfrentar um calor de 40 graus. Mas Soares mostra mais uma vez a sua tremenda capacidade de adaptação. Estabelece-se numa pensão de São Tomé. Poucos dias depois chega Maria Barroso e mudam-se para um apartamento em frente ao mar. O nervosíssimo chefe da PIDE local empenha-se em seguir todos os passos do ilustre deportado, que depressa conquista simpatias. Recebe vários jornalistas estrangeiros, desdobra-se em entrevistas. Mesmo a milhares de quilómetros de Lisboa, Soares continua a ser um incómodo.

Da permanência de Soares em São Tomé, sobram episódios anedóticos. Como a vez em que o deportado sai com o velho e gasto Volkswagen que comprou em quinta mão e a máquina se recusa a arrancar. Soares não está com meias medidas e resolve pedir boleia ao PIDE que o seguia nesse dia. Este fica tão estupefacto que o deixa entrar no carro, e leva Soares ao destino pretendido.

Entretanto, o cenário muda em Lisboa. Em Agosto de 1968, Salazar cai da cadeira no Forte de Santo António, no Estoril, e nunca mais recupera a saúde. Marcelo Caetano assume a Presidência do Conselho de Ministros e a primavera marcelista dá a ilusão de mudança. Soares é autorizado a deixar São Tomé em novembro. Chega a Lisboa na madrugada dos dia 13. Às cinco da manhã, há uma grande festa na casa do Campo Grande. Soares, então com 43 anos, abraça os filhos e o pai, que daí a poucos dias completa 90 anos.

IV - Do exílio ao 25 de Abril

Fora do país, fundou o PS e correu mundo, para desespero da família

Em 1969, a oposição aparece dividida às eleições para a Assembleia Constituinte, as primeiras que se realizam no País depois de Marcelo Caetano substituir Salazar na Presidência do Conselho de Ministros. O partido do Regime, a União Nacional, ganha com 86 por cento dos votos e fica com todos os assentos parlamentares.

Mas não é essa derrota, já esperada, que desanima Soares. O líder da Acção Socialista Portuguesa empenhara-se na candidatura da CEUD (Comissão Eleitoral de Unidade Democrática), mas ficou muito atrás das Comissões Democráticas Eleitorais (CDE) onde estavam vários outros oposicionistas, como o futuro presidente Jorge Sampaio.

Desiludido, Soares parte, em 1970, para uma solitária viagem ao continente americano. Uma viagem que tem custos pessoais. O sogro tinha morrido há um mês a sogra luta com um contra um cancro. A saúde do pai também se revela precária. Maria de Jesus Barroso vê com maus olhos a viagem e isso mesmo diz ao marido numa carta que depois seria publicada no livro "Cartas a Mário Soares", de 2012. "Tinhas mesmo de fazer esta viagem, senão morrias. Tem paciência, sou muito tua amiga, mas a verdade é que tu nunca medes as consequências dos teus atos - tens um capricho e tens de o satisfazer, doa a quem doer, custe o que custar".

Há muito que Barroso se queixa das ausências do marido e do pouco tempo que este dedica à família. Sente-se abandonada e desprezada. Mas aguenta, como fez toda a vida.

Soares continua a denunciar os abusos do regime português. Numa conferência de imprensa em Nova Iorque, critica a guerra colonial e defende a autodeterminação das colónias, atitude que é especialmente mal recebida em Lisboa. A família de Soares começa a receber ameaças, incluindo uma carta com balas, conta Joaquim Vieira na biografia "Mário Soares, Uma Vida". Soares vai para Paris, onde a mulher lhe diz que a DGS - sucessora da PIDE - abriu contra ele um novo processo, sob a grave acusação de Soares defender a dissolução da pátria.

Retirado para Itália, onde escreve o grosso do livro ‘Portugal Amordaçado’, recebe aí a vista da mulher e dos filhos. Estes são informados durante a viagem de uma notícia trágica e comunicam-na a Mário Soares já em Itália: o pai deste, João Soares, morre em Lisboa, a 31 de julho de 1970, aos 91 anos. Apesar de saber que se arrisca a ser preso, Soares embarca em Roma com destino a Lisboa. Assiste ao funeral do pai e é informado pela PIDE que tem quatro horas para deixar o país, senão é preso e deportado "para um sítio mais longe" (provavelmente Timor, apura o oposicionista). Soares sai de Portugal de carro com a mulher e os filhos, Isabel e João. Atravessam Espanha num Morris 1300 e conduzem até França. Estava, oficialmente, banido do país.

Soares fixa-se em Paris e começa a dar aulas na Universidade de Vincennes, nos arredores de Paris e também em Rennes, na Bretanha. Mais tarde, chega a lecionar na prestigiada Sorbonne. Em 1972, sai em França o livro ‘Portugal Amordaçado’, que parte da sua experiência pessoal para revelar as ideias de Soares para a mudança de regime em Portugal. O livro é recebido com interesse em França e lido às escondidas em Portugal.

Em Paris, Soares desdobra-se em contatos com os oposicionistas no exílio. Membro da Internacional Socialista, viaja por toda a Europa e pela América Latina. E vai também a Moscovo, a convite das autoridades soviéticas.

Em Abril de 1973, a ASP reúne na Alemanha com filiados vindos de Portugal e de várias partes da Europa. A 19 de Abril é lavrada a ata da fundação do Partido Socialista num hotel da estância termal de Bad Munstereifell. Estavam presentes 27 delegados.

E é na Alemanha, onde estava com Maria de Jesus Barroso, Tito de Morais e Ramos da Costa para se reunir com o líder socialista Willy Brandt que, um ano depois, Soares sabe do golpe militar que tem lugar a 25 de Abril de 1974.

V - Entre o Governo e a rua

Os dias loucos de um político após a revolução de abril

Mário Soares chega a Lisboa no dia 28 de abril de 1974. Desembarca no chamado ‘comboio da liberdade’, que trouxe para a estação de Santa Apolónia, em Lisboa, dezenas de exilados ilustres.

A 1 de Maio, Soares junta-se ao líder comunista Álvaro Cunhal, que chegara entretanto a Lisboa de avião, para o primeiro grande comício após a revolução. O povo saiu à rua em Lisboa e em várias cidades do país para celebrar a liberdade recém-conquistada e Soares é uma das vozes que se faz ouvir no estádio da FNAT (hoje estádio 1º de Maio, em Lisboa). O tom é ainda de total esquerdismo revolucionário:

"O fascismo foi vencido, mas as bases sociais de suporte do fascismo continuam intactas. É o poder económico, são os bancos, são os monopólios, são os corruptos desse baronato político-corporativo, que são em Portugal os agentes do imperialismo do estrangeiro", grita Soares à multidão.

Soares não demora muito a assumir funções em vários dos governos provisórios que se sucedem naqueles tempos de agitação política. A 15 de maio, assume a importante pasta do Ministério dos Negócios Estrangeiros do I Governo Provisório, liderado por Palma Carlos. No Governo estão representados três partidos, o PS, o PCP de Álvaro Cunhal e o recém-formado PPD, liderado por Francisco Sá Carneiro. Soares mantém-se à frente do MNE até março de 1975, continuando nessas funções nos três primeiros governos provisórios, que procuravam dar alguma ordem ao país saído da revolução.

O líder socialista assume o mais incómodo dos assuntos que o novo regime tem de resolver - o fim da guerra colonial, a independência de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, e também de Cabo-Verde e São Tomé e Príncipe, onde a guerra nunca chegou. O processo começa com a tentativa de estabelecer acordos de cessar-fogo com as forças beligerantes, o que põe Soares em rota de colisão com o Presidente da República, o general António Spínola, que preferia uma solução menos drástica do que conceder, de imediato, a independência das colónias.

Soares assinou a paz com as forças beligerantes, mas o fim dos conflitos teve um efeito brutal. Estima-se que meio milhão de pessoas se viram obrigadas a vir para Portugal entre 1974 e o verão de 1975, abandonando tudo o que tinham em África. Muitos dos ‘retornados’ tinham nascido no Ultramar sem nunca ter visitado a Metrópole. Soares ganhou inimigos para a vida. Defendeu sempre o seu papel, explicando que fez a "descolonização possível". "Salazar é que é o responsável. E culpam-me a mim por fazermos a paz?".

Em clima de profunda agitação social e política, Soares leva o PS para a rua, desafiando o PCP e outras forças mais à esquerda. Temia-se que o país caísse na órbita soviética e Soares empenha-se em evitá-lo. Ao mesmo tempo, opõe-se à intenção de Spínola, que queria reforçar os poderes presidenciais antes da eleição da Assembleia Constituinte. Mário Soares defendia que o novo regime devia legitimar primeiro o poder dos partidos. António de Spínola acaba por se demitir em setembro de 1974, sendo substituído na Presidência da República pelo General Costa Gomes.

A 25 de Abril de 1975, o país vai a votos pela primeira vez na era democrática. A eleição para a Assembleia Constituinte dá ao PS de Soares uma vitória surpreendente, com quase 38% dos votos e 116 dos 250 deputados. O PPD (antecessor do atual PSD) fica em segundo com 26% dos votos e 81 deputados, remetendo o PCP para o terceiro lugar, com 12% dos votos e 30 deputados.

No ‘Verão Quente’ de 1975, o país está a ferro e fogo. Grupos de extrema-esquerda e extrema direita fazem atentados à bomba, manifestações e contra-manifestações sucedem-se nas ruas. Soares opõe-se aos governos provisórios liderados por Vasco Gonçalves, próximo das posições do PCP. O líder do PS demite-se do cargo de ministro sem pasta do IV Governo Provisório e faz oposição ao "gonçalvismo". O comício da Fonte Luminosa, em Junho de 1975, mostra a capacidade do PS de levar multidões à rua.

A 6 de novembro, Soares e Cunhal travam um debate histórico na RTP. Durante mais de três horas, os líderes do PS e do PCP trocam acusações. Soares acusa Cunhal de querer instaurar um estado comunista em Portugal, contra a vontade do povo. Cunhal exalta-se, repete várias vezes uma frase que fica na memória: "Olhe que não, olhe que não".

O movimento militar de 25 de Novembro de 1975 encerra o chamado Processo Revolucionário em Curso (PREC), período em que o país vive à beira de uma guerra civil. Sob a liderança do então coronel Ramalho Eanes, os militares do comandos neutralizam as tropas afetas ao Partido Comunista, que estariam na iminência de provocar um golpe de Estado. Cai o executivo liderado por Vasco Gonçalves. O regime entra numa nova era de normalização democrática. Soares, que mobilizara apoios internacionais, incluindo o do embaixador americano em Lisboa, Frank Carlucci, está do lado dos vitoriosos.

A 25 de Abril de 1976, o PS tem uma nova vitória, nas primeiras eleições legislativas do novo regime. Mário Soares sonhava com uma maioria absoluta, mas tem de se contentar com 35% dos votos, uma descida em relação ao escrutínio para a Constituinte. Soares tenta uma coligação com o PPD, então liderado por Pinto Balsemão, mas este recusa. O PS terá de governar sozinho, em minoria na Assembleia da República. Mas a formação do primeiro governo constitucional é adiada para depois das eleições presidenciais.

Em junho de 1976, o general Ramalho Eanes é eleito Presidente da República, o primeiro chefe de estado a ser escolhido por sufrágio universal e direto após a revolução de 74. O PS apoia o militar, apesar do pouco entusiasmo de Soares em relação ao homem que acabaria por se tornar um dos seus maiores rivais políticos. Eanes toma posse a 14 de Julho de 1976 e dá posse a Soares como primeiro-ministro no dia 23. O Executivo conta só com nomes do PS e alguns independentes. Todos sabem que o governo não vai durar muito tempo.

VI - Governando sobre brasas

Soares governou sempre em minoria. Era mestre na arte de negociar

Há episódios que definem uma personalidade. E José Silva Lopes, que foi ministro das Finanças em dois Governos Provisórios e Governador do Banco de Portugal durante os anos de brasa do pós 25 de Abril gostava de contar uma história que viveu quando Mário Soares era primeiro-ministro.

O País estava à beira da bancarrota e, a dado momento, a situação torna-se insustentável. Numa das muitas noites em que a brutalidade dos números o deixava desconcertado, Silva Lopes liga a Soares. Explica-lhe que o País só tem reservas cambiais para mais dois dias. A resposta fica nos anais da política portuguesa. "Ó homem, são duas da manhã! Se o problema é assim tão grave, tenho de ter a cabeça fresca. Deixe-me dormir! Amanhã logo se vê o que podemos fazer".

Uma resposta que diz muito sobre o político Soares. Pouco dado a estudar dossiês ou a mergulhar em questões técnicas complexas, mas lesto a decidir e a seguir o seu instinto político.

Entre 1976 e 1985, Soares lidera três governos (de 1976 a 78 e de 1983 a 1985). Sempre em minoria, faz acordos com o CDS, com o PPD (depois PSD), engole o Bloco Central com Mota Pinto, faz o que pode para se manter no poder. É contestado dentro do seu próprio partido, tem de enfrentar uma nova geração que quer o poder. Encontra no Presidente da República um adversário, que decide a queda do II Governo Constitucional e avança com vários executivos de iniciativa presidencial.

Nas legislativas de 1979, o PS perde para a coligação PSD/CDS/PPM, liderada por Sá Carneiro, que forma Governo. Quando Sá Carneiro morre na queda do avião em Camarate, em 1980, Há novas eleições e Soares volta a perder. Resta-lhe fazer oposição ao novo Governo, liderado por Francisco Pinto Balsemão.

Em 1983, o PS volta a ganhar eleições e Soares volta a ser primeiro-ministro num governo que junta PS e PSD, então liderado por Mota Pinto. O Bloco Central tem de enfrentar a grave crise financeira do País e, tal como em 1977, Soares vê-se obrigado a pedir a intervenção do FMI para tirar Portugal da bancarrota. Em clima de descontentamento geral perante a austeridade imposta, com Mota Pinto fora do Governo (que morreria pouco depois de doença súbita), o executivo treme quando um tal de Aníbal Cavaco Silva vai ao congresso da Figueira da Foz, em maio de 1985, fazer a rodagem do seu novo Citroën e sai de lá eleito líder do PSD.

Cavaco Silva estava muito longe de ser um entusiasta do Bloco Central e as negociações que enceta com Soares para se juntar ao Governo fracassam. Até por episódio anedótico: Cavaco diz à imprensa que se vai reunir com Soares no Largo do Rato num encontro "de trabalho, não de flores". ‘Picado’, Soares manda encher a sede do PS de ramos de flores, desde a entrada até à sala de reuniões. Cavaco entende a piada como uma falta de respeito. Nasce mais uma inimizade que fica para a vida.

Oficializado o fim prematuro do Governo, um do últimos atos de Mário Soares como primeiro-ministro é assinar o acordo de adesão de Portugal e Espanha à CEE, antecessora da atual União Europeia, no Mosteiro dos Jerónimos. Era a concretização de um projeto em que Soares se tinha empenhado desde os primeiros tempos após a revolução de 74.

Em 1985, Soares tem a popularidade nos mínimos. Mas lança-se numa corrida que, apesar de preparar há muito, parecia condenada ao fracasso - bater-se pela Presidência da República. O próprio admite a delicadeza do momento, numa entrevista que deu mais tarde a Joaquim Vieira para a biografia ‘Mário Soares, Uma Vida’: "Como o Presidente era Eanes, em quem não tinha nenhuma confiança, eu estava bloqueado pelos dois lados. Não podia estar pior".

VII - Soares é Fixe

Campanha de 1986 começou em depressão, acabou em euforia

Quando Soares se lança na corrida para as eleições presidenciais de 1986, as circunstâncias jogam todas contra si. Cavaco Silva tinha ganho as eleições legislativas de 1985, iniciando o caminho que o haveria de levar a duas maiorias absolutas de governos do PSD. O candidato presidencial da direita é Diogo Freitas do Amaral, até há pouco líder do CDS.

À esquerda, o campo está minado. Francisco Salgado Zenha - amigo íntimo de Soares e fundador, com ele, do PS - está na corrida. Maria de Lurdes Pintassilgo, a única mulher que - por iniciativa do Presidente Eanes - tinha liderado um governo em Portugal granjeava muitas simpatias. O PCP apresenta à disputa eleitoral Ângelo Veloso, que viria a desistir antes das urnas a favor de Salgado Zenha, que também reúne o apoio do PRD, o partido que nasceu da (pouco) discreta iniciativa do ainda presidente Ramalho Eanes.

O PS decide apoiar Soares, uma desilusão para Zenha, que nunca perdoará a traição do amigo que tantas vezes apoiara nas horas mais difíceis. As relações entre ambos esfriam definitivamente, uma mágoa que Soares guardará para sempre.

Antes de começar a campanha eleitoral, as sondagens não davam mais de 5% das intenções de voto a Mário Soares. Mas a chamada ‘campanha alegre’ traz o melhor do animal político que Soares sempre foi. A rua é o seu território. Afinal é o Mário, o ‘Marocas’, o ‘Bochechas’ que está ali a distribuir beijos e abraços, o homem que pega num anão e o beija, pensando tratar-se de uma criança. ‘Soares é fixe’, é um dos lemas da campanha que se cola ao candidato.

O ponto de viragem surge numa ação de rua na Marinha Grande. Os operários da indústria vidreira estão em luta, manifestantes afetos ao PCP recebem Soares e a sua comitiva com hostilidade. Um segurança é ferido, as câmaras de televisão filmam-no a sangrar, o próprio Soares leva uma paulada.

A perceção sobre o candidato muda naquele dia. Afinal é o herói de abril que acaba de ser sovado, mas não vira a cara à luta. Os apoiantes animam-se, a campanha ganha novo fôlego...

Na televisão, Soares trava um tenso debate com Freitas do Amaral. Mais racional, o candidato centrista passa uma imagem de excessiva frieza perante o emocional Soares.

Vota-se a 26 de janeiro de 1986. Soares ganha à esquerda reunindo 25% dos votos, contra 20% de Salgado Zenha e 7% de Lourdes Pintassilgo. Freitas ganha, destacado, com uns confortáveis 46% dos votos, muito próximo da maioria que o poderia levar a Belém.

Na segunda volta, Álvaro Cunhal faz o inesperado. Apesar da desconfiança que tem no líder socialista, faz um apelo inédito ao eleitorado comunista: "Se for preciso tapem a cara [de Soares no boletim de voto] com uma mão e votem com a outra".

A 16 de fevereiro, os portugueses voltam à urnas. E Soares ganha, à tangente. Consegue 51,1 por centos dos votos, contra 48,8 de Freitas do Amaral. A eleição decide-se por pouco mais de 260 mil votos, a menor diferença de sempre. Mário Soares torna-se o primeiro civil a chegar ao Palácio de Belém desde o 25 de Abril de 1974.

VIII - Presidente em luta contra o Cavaquismo

Soares quis liderar em Belém a luta contra os governos laranja

Os dez anos que Mário Soares passa em Belém, dividem-se em fases bem distintas. Eleito em 1986, o Presidente vê-se obrigado a conviver com um rival político que desconsidera, desde a primeira hora. O primeiro-ministro Aníbal Cavaco Silva é, para Soares, um tecnocrata sem passado e sem carisma. Soares subestima-o. Ainda assim, não o deixa cair.

Em abril de 1987, o PRD apresenta uma moção de censura ao Governo. Esta é aprovada pela maioria dos deputados - com os votos do PS e do PCP. Soares tem a possibilidade constitucional de promover um acordo à esquerda que levasse à formação de um novo Governo, mantendo o Parlamento em funções. Mas, ao contrário do que pediam muitos dos seus amigos e apoiantes, Soares decide dissolver a Assembleia da República e convocar novas eleições legislativas.

Talvez Soares não esperasse o resultado que sai do novo escrutínio. Cavaco Silva alcança uma vitória esmagadora. Consegue 50,2% dos votos e o PSD fica com 148 dos 250 deputados. É a primeira maioria absoluta da democracia. O PRD, que tinha provocado a queda do governo, sofre uma hecatombe, ao passar de 45 para 7 deputados.

O PS, liderado por Vítor Constâncio, até consegue reforçar a sua votação e passa de 57 para 60 deputados. Mas longa será a travessia dos socialistas. Jorge Sampaio sucede a Constâncio em 1989, mas não sobrevive a novo desaire eleitoral, com a segunda maioria absoluta de Cavaco, em 1991. O PS só regressa ao poder em 1995, pela mão de António Guterres.

Obrigado à convivência com Cavaco, Soares atua em Belém com o pragmatismo que sempre o caracterizou. O presidente percebe que é na rua que ganha simpatias e cria a figura das "presidência abertas", que o levam a todo o país. Desdobra-se em viagens de Estado ao estrangeiro, revela verdadeira vocação para ser "o presidente de todos os portugueses".

Tanto que, terminado o primeiro mandato, Cavaco Silva toma a inédita decisão de o PSD não apoiar qualquer candidato contra Soares. É Basílio Horta, então líder do CDS, quem assume o dever de representar a direita, mas é esmagado nas urnas por Soares, que ganha o plebiscito com uns esmagadores 70% dos votos, o melhor resultado alguma vez conseguido por um candidato presidencial.

O segundo mandato seria marcado por uma mudança drástica na relação entre Belém e São Bento. Soares aposta no desgaste do Governo e não perde uma ocasião de criticar, com mais ou menos subtileza. Mas a poucos escapam o verdadeiro alcance de iniciativas como o congresso "Portugal, que futuro?", em 1993, ou a Presidência Aberta na Área Metropolitana de Lisboa, também no mesmo ano, que o Presidente tudo faz para sublinhar os defeitos da "política do betão".

Cavaco haveria de sair de cena em 1995. Agastado com anos de combate contra Soares, a oposição e os próprios membros do seu partido - a quem Cavaco nunca deu a atenção que tantos reclamavam - deixa a Fernando Nogueira a ingrata tarefa de defender o seu legado contra a popularidade crescente de António Guterres.

O resultado é um estrondosa vitória dos socialistas, que falham a maioria absoluta por uma nesga. Soares tem ainda uma segunda vingança. Em 1996, Cavaco apresenta-se à corrida para a sua sucessão e perde, inapelavelmente, para Jorge Sampaio, logo à primeira volta.

Mário Soares termina o seu segundo mandato em Belém com a popularidade em alta. Parte de Belém com o projeto de viajar com a mulher durante largos meses. Mas todos sabem que a vida política de Soares está longe de ter chegado ao fim.

IX - Dias negros em Belém

Um drama pessoal e um escândalo político abalaram o Presidente

A Presidência da República revela Soares no fulgor da sua vida política, mas os oito anos que passa em Belém são marcados por grandes dissabores políticos e pessoais.

A palavra Emaudio é a espinha no currículo político de Soares. A empresa, constituída no início do mandato de Mário Soares em Belém era uma sociedade constituída com capitais de fundações ligadas ao PS e que tinha por finalidade constituir um novo grupo de comunicação social. O objetivo principal seria o de criar o primeiro canal privado de televisão em Portugal. Soares sempre negou qualquer envolvimento no projeto, mas os acontecimentos tornam essa tese difícil de sustentar.

No início de 1986, o então empresário de televisão italiano Silvio Berlusconi (fundador do império mediático Mediaset e depois primeiro-ministro de Itália) visitou Soares em Belém. Conta Joaquim Vieira na sua biografia de Mário Soares que Berlusconi e o Presidente discutiram longamente as possibilidades que se abriam com a criação de um novo canal privado em Portugal.

Mas o projeto empresarial, que tinha entre os principais dirigentes Almeida Santos e João Soares, filho do presidente, não avançaria com Berlusconi. A sociedade Emaudio é constituída formalmente em janeiro de 1987. O principal investidor era a Fundação para as Relações Internacionais, dirigida por Rui Mateus. Um nome que se tornaria maldito para Soares. Colaborador próximo do líder socialista durante décadas, acabou por ser rudemente afastado. E ‘vingou-se’ escrevendo ‘Contos Proibidos - Memórias de um PS Desconhecido’ - livro em que pôs a nu os esquemas do PS para se financiar. Mas isso seria bem mais tarde, em 1996. Nove anos antes, Mateus estava no coração do projeto Emaudio.

Depois de Berlusconi, o alvo seguinte é o magnata australiano da comunicação Rupert Murdoch, ainda hoje dono de meios como o tablóide ‘The Sun’ ou o cadeia de TV Fox. Também ele é recebido por Mário Soares em Belém, onde discutem o projeto da nova televisão portuguesa. Há ainda um terceiro interveniente. Robert Maxwell outro magnata dos media e rival de Murdoch também vem a Belém. E será este a celebrar um acordo com a Emaudio, que tinha inicialmente como objeto de investimento a televisão de Macau.

A TDM - Televisão pública de Macau - estava em processo de privatização e interessava ao media internacionais. Porque do pequeno território português era possível fazer chegar as emissões à vizinha Hong Kong, uma das grandes capitais financeiras da Ásia. E a Emaudio seria a ‘muleta’ para entrar nessa operação.

Entretanto, Soares nomeia Carlos Melancia, um homem ligado à Emaudio, para Governador de Macau. E tudo se precipita por causa de outro negócio, o da construção do novo aeroporto de Macau, em que a Emaudio também estava envolvida. A empresa alemã Weidleplan quer entrar na corrida e faz um pagamento de 50 mil contos (250 mil euros), recebido pela Emaudio, para facilitar o acesso ao negócio - isto segundo a versão de Rui Mateus, já que Soares negou sempre qualquer envolvimento no assunto.

A Weidleplan fica de fora no concurso de adjudicação da obra do aeroporto. Mateus entra em rota de conflito com Soares, sendo a Fundação para as Relações Internacionais esvaziada de funções e capital. No verão de 1989, Mateus larga a bomba. Faz chegar ao jornal ‘O Independente’ o famoso fax da Weidleplan dirigido ao governador Carlos Melancia, em que os alemães pedem a devolução do dinheiro pago. O escândalo ameaça o Presidente, que deixa cair Melancia, seu amigo e sua escolha pessoal para governar Macau.

É forçado a demitir-se. Acusado de corrupção passiva, Melancia inicia uma longa travessia no deserto, que só se resolveria anos depois, com a sua absolvição na justiça. Soares defendeu publicamente a sua inocência, mas Melancia acabou por ser a grande vítima política do caso. Na corrida para a reeleição presidencial, em 1991, o candidato da direita, Basílio Horta, tentou colar Soares ao escândalo, mas a estratégia não resultou. Soares vence com uns confortáveis 70% dos votos, marca inédita na democracia portuguesa.

Filho às portas da morte

Em Setembro de 1989, João Soares parte para Angola e visita Jonas Savimbi na base da UNITA na Jamba, na companhia dos deputados Rui Gomes da Silva (do PSD, hoje mais conhecido como comentador de futebol afeto ao Benfica) e Nogueira de Brito, do CDS. O Cessna em que seguem despenha-se na floresta e o filho do presidente fica gravemente ferido. Quando Soares e Maria Barroso são informados, durante a madrugada, o prognóstico clínico de João Soares era muito reservado.

Soares tem visitas de Estado marcadas para a Hungria e para a Holanda, e mantém as deslocações previstas. Maria Barroso viaja para a África do Sul, para onde João é transferido. Soares vai sabendo notícias do filho pelo telefone. Parte depois para Pretória, onde João vai dando sinais de melhoria. O episódio marca o reencontro de Maria Barroso com a fé católica, Soares permanecerá agnóstico até ao fim.

João recupera dos ferimentos. Sobrevive quase miraculosamente, após várias cirurgias, vencendo o pessimismo dos primeiros diagnósticos.

Mas nem em circunstâncias tão dramáticas Soares deixa de fazer política. A África do Sul vive um momento histórico, o apartheid está à beira do fim e especula-se que Mandela poderá ser libertado a qualquer momento. Soares encontra-se como chefe de governo, De Klerk, o homem que haveria de abrir portas ao fim da segregação racial. Soares aconselha-o a libertar Mandela, puxando o exemplo falhado de Marcelo Caetano, que caiu por não saber reformar a ditadura que herdara de Salazar. Soares é dos primeiros a saber da intenção de De Klerk de libertar Mandela, que acontece poucos meses depois.

XX - Há sempre mais uma batalha

A vida política de Mário Soares não acabou depois da Presidência

Quando Mário Soares deixa o Palácio de Belém, em 1996, tem 71 anos. Deixa várias promessas: "Não desejo fazer mais política partidária, nem tenciono aceitar quaisquer outros cargos de tipo estritamente político, no plano nacional ou internacional. Quem foi, durante dez anos, Presidente da República, com a ampla aceitação que lhe foi conferida pelos seus concidadãos, não deve aspirar, politicamente, a mais nada. É uma regra de ouro, de que não me afastarei". As câmaras de televisão mostram-no a sair de Belém com Maria Barroso, pronto para "uma viagem prolongada" a dois, que nunca tinham conseguido fazer.

A promessa não resistiu muito tempo. A Fundação Mário Soares, criada em 1991, só arranca realmente com o fim do segundo mandato em Belém, mas Soares não queria ser um mero Conselheiro de Estado, remetido ao papel de opinar amiúde sobre o estado da nação.

A oportunidade de voltar à arena política aparece em 1999. António Guterres liderava um governo mal cotado nas sondagens e temia um desaire nas eleições europeias. Insiste com Soares para ele ser o cabeça de lista a Bruxelas. E Soares acede. Mas fá-lo com um objetivo concreto, o de ser eleito Presidente do Parlamento Europeu, cargo de prestígio internacional que seria o corolário de uma carreira política brilhante. Mas estava tudo dependente de os socialistas europeus elegerem mais deputados que o PPE (coligação de centro-direita onde se inscrevem o PSD e o CDS).

Os socialistas falham a maioria. Cabe ao PPE indicar o novo Presidente do Parlamento Europeu e Soares não esconde a desilusão. Quando a francesa Nicole Fontaine assume o cargo, Mário Soares diz que a francesa tem "um discurso de dona de casa".

A ‘boutade’ é mal recebida. Soares passa por chauvinista e por ressabiado. Mas cumpriu os cinco anos de mandato com espírito aberto. "Gostei muito, aprendi muita coisa", diria sobre a experiência.

Nova corrida a Belém

Em 2004, Soares completa 80 anos de vida, e a família organiza-lhe um jantar de homenagem. Mas o que começa por ser uma celebração em tom familiar depressa escala como o embrião de mais uma batalha. Apesar de Soares voltar a prometer que a política é, para ele, um assunto encerrado, sabe que as coisas podem não ser bem assim.

As eleições presidenciais de 2006 dividem os socialistas. José Sócrates lidera um governo minoritário e não quer apoiar o seu rival político Manuel Alegre, cuja candidatura se adivinha. Para Soares, as eleições são a oportunidade de se bater contra Cavaco Silva, o seu inimigo de estimação. Um apelo demasiado sedutor para o velho guerreiro fugir ao combate.

Contra a opinião de grande parte dos amigos e dos próprios filhos e mulher, Soares é mesmo apresentado como candidato do PS. A luta fratricida com Manuel Alegre vale o corte de relações entre os dois, tanto mais quando se apuram os resultados: Cavaco Silva ganha à primeira volta, Alegre fica em segundo, com larga vantagem para Soares, remetido a um humilhante terceiro lugar. A desastrosa campanha leva à rutura da relação pessoal de Soares com o sobrinho Alfredo Barroso - seu colaborador próximo de décadas. O último combate redunda numa derrota total.

O esquerdista

Curadas as feridas da derrota, nem por isso Soares adormece o espírito combativo. Torna-se um crítico feroz dos partidos à direita do PS. Apoia convictamente a liderança de Sócrates e, quando este cai em 2011, O governo de Passos Coelho e Portas é um dos seus alvos diletos. Soares parece cada vez mais próximo de uma visão extrema da esquerda da qual sempre fugiu quando liderava o PS. Crítico da globalização, abraça o camarada Lula no Brasil, defende o líder venezuelano Hugo Chávez, é a estrela do ‘Congresso das Alternativas’, em 2012, que o põe lado a lado com Francisco Louçã, Carvalho da Silva e outros líderes à esquerda do PS.

As crónicas semanais que escreve no Diário de Notícias revelam um homem inquieto, cada vez mais crítico do capitalismo global e dos destinos incertos da União Europeia, dominada por burocratas e pela ditadura das finanças. Na casa do Campo Grande, continua a receber os amigos de sempre. A política, sempre a política, domina as conversas.

Em Janeiro de 2013, Soares sofre uma encefalite. Internado de urgência aos 88 anos, o seu estado é delicado. Recupera, mas o discurso já não lhe volta a sair com a fluidez de sempre.

A última grande causa pública que Soares abraça é a defesa de José Sócrates. Quando o antigo primeiro-ministro é detido, por suspeitas de corrupção, Soares é dos primeiros a visitá-lo na prisão. Critica ferozmente o processo e os seus protagonistas, chega a dizer a escrever que o juiz Carlos Alexandre "é melhor que se cuide". Quando António Costa faz a sua única visita a Sócrates, na Prisão de Évora, é Mário Soares quem o acompanha.

A 26 de junho de 2015, Soares recebe o golpe mais duro. Maria de Jesus Barroso cai em casa e fica em coma profundo. Não recupera do traumatismo sofrido e morre duas semanas depois. Desde então, tornam-se raras as aparições públicas de Mário Soares.

Homenageado pelo Parlamento, recebe de Ferro Rodrigues, em abril de 2016, o diploma que comemora os 40 anos da Assembleia Constituinte. Marcelo Rebelo de Sousa promove, em setembro uma sessão de homenagem, em que Soares, sentado numa cadeira, já não toma a palavra. Nem ele escapa ao peso irreversível do tempo.

I - O rebelde bem nascido

Filho de um padre que se fez maçon, Soares cedo despertou para a política

"As minhas ideias vêm do meu pai e dos amigos dele. A minha casa respirava política". Mário Soares contou assim ao seu biógrafo, Joaquim Vieira, uma juventude agitada, que fez dele um rapaz interessado e irrequieto.

Filho de João Lopes Soares, político que durante a I República foi deputado, governador civil e ministro das colónias, e de Elisa Nobre Baptista, dona de uma pensão na Rua Ivens, no Chiado, Mário tem uma história familiar fora do comum.

O pai, João Soares, nascido em 1878, é ordenado padre em 1900. O que não o impede de ter um filho sete anos mais tarde e de o assumir como seu. Pouco depois da revolução republicana de 1910, e já depois de abandonar o sacerdócio, instala-se na pensão lisboeta de Elisa, onde esta vive com o marido e o filho, Cândido. E está ainda casada quando inicia a relação com o maçon João Soares. Iniciam uma vida comum com os filhos de ambos, Cândido e Tertuliano, que têm 18 e 19 anos quando nasce Mário Alberto Nobre Lopes Soares. Vem ao mundo em Lisboa, a 7 de Dezembro de 1924. João e Elisa só se casam em 1933, depois de o Vaticano anular a ordenação sacerdotal de Soares.

Estimulado pela vida agitada do pai - que com a revolução de 1928 e posterior ascensão ao poder de Salazar, se torna personna non grata para o novo regime - Mário Soares conhece desde tenra idade as grandes figuras da oposição. Tem como professor no Colégio Moderno - fundado em Lisboa pelo pai, que, para além de tantas outras coisas, era um reputado pedagogo - o militante comunista Álvaro Cunhal, que viria a tornar-se o lendário líder do PCP. Mário tem outros professores marcantes, como o filósofo Agostinho da Silva, ou marxista António Salema, mas Cunhal molda a sua maneira de pensar. "Achava-o um homem coerente e fascinante, um idealista, um puro que sonhava com a revolução e, ao mesmo tempo, um esteta: andava sempre bem vestido, trajava com gosto, embora modestamente", explica Soares a Maria João Avillez numa das suas várias biografias.

Com a consolidação do Estado Novo, João Soares passa dificuldades. É preso em várias ocasiões, vive clandestino, é deportado, exila-se. Mário guarda nas memórias de infância as visitas ao pai nas cadeias do Aljube ou do Forte de São Julião da Barra. Ou de o ver em encontros fugazes, em lugares seguros que a resistência clandestina ia forjando.

Durante o ensino secundário, Mário aproxima-se de vários movimentos comunistas e defende com convicção os ideais marxistas. Mas é ainda uma militância mais teórica do que prática. Aos 18 anos, é detido pela primeira vez, após desacatos entre um grupo de jovens comunistas (com quem estava) e uma delegação da Mocidade Portuguesa. Desta vez, o castigo limita-se a um ‘raspanete da PVDE, antecessora da PIDE.

Longe de ser um aluno brilhante - preferia alinhar com os colegas mais rebeldes em vez de ficar à sombra da condição de filho do diretor do Colégio Moderno, Soares chega ao curso de Ciências Histórico-Filosóficas, da Faculdade de Letras de Lisboa. Faria depois o curso de Direito, cumprindo a vontade do pai.

II - Comunista e alvo da PIDE

Na Faculdade de Direito, Soares aderiu ao PCP e tornou-se alvo da PIDE

Com a entrada na Universidade, Mário Soares junta-se convictamente à máquina comunista. Milita na juventude do PCP e junta-se ao PCP em 1942, apesar das reservas que tinha em relação à liderança de Estaline da União Soviética.

Não lhe falta vontade e energia para tentar mudar o estado de coisas no país, mas é, ainda assim, um jovem relativamente despreocupado, que os colegas da época lembram como "generoso" e "desapegado do dinheiro". É frequente ser Soares a pagar a conta quando se juntam nas tertúlias dos cafés de Lisboa, a discutir política. No ano lectivo de 1944/45, Soares conhece uma colega que combina os estudos de Letras com o início de uma carreira prometedora no Teatro Nacional. Chama-se Maria de Jesus Barroso e viria a tornar-se a sua companheira de toda a vida.

A vitória dos aliados na II Guerra Mundial dá alento aos jovens opositores. Soares está na organização de uma gigantesca manifestação que corre Lisboa em Maio de 1945, dando vivas aos vencedores. Mário convence-se de que a vitória do campo democrático e dos comunistas significaria, por si, o fim da ditadura portuguesa. Enganou-se.

Junta-se ao MUD, Movimento de Unidade Democrática que se formou para concorrer às eleições para a Assembleia Nacional em 1945. Mas o MUD não chegaria aos boletins de voto, desistindo com queixas de falta de condições democráticas.

Soares, com o nome de código "Duarte", vai-se afastando do PCP e recusa mesmo passar à clandestinidade. Não tinha perfil para viver escondido. "Com o meu temperamento não dava. Queria ter gajas, ir ao cinema, viajar. Tinha ambições várias, ambições literárias", contou a Joaquim Vieira numa entrevista para a biografia que este fez de Soares.

Em 1946, Soares inscreve o seu nome nas fichas da PIDE. É preso com toda a Comissão Central do MUD, acusados de atitudes "antipatrióticas". Acabariam por sair todos sob fiança e sem queixas de maus tratos. Nos anos seguintes, Soares voltaria a ser preso em várias ocasiões. Em 1948, cruza-se com o pai, preso por estar envolvido numa tentativa de golpe de estado, na prisão do Aljube.

Os colegas de cárcere recordam a sua coragem e espírito otimista. E até a altivez de quem recusava tomar um duche de água fria no mesmo sítio onde os prisioneiros faziam as suas necessidades. Soares, menino de boas famílias, preferia ficar a cheirar mal do que sujeitar-se a essas circunstâncias.

Membro da equipa do general Norton de Matos na candidatura deste às presidenciais de 1949, Soares consolidava a sua posição de destacado oposicionista, mas cai em desgraça junto do candidato presidencial quando o PCP o obriga a contar-lhe a sua ligação ao partido. Soares não perdoa o gesto e começa aí o seu afastamento definitivo da causa comunista.

Norton de Matos desiste da corrida presidencial, Soares voltou a ser preso. A quarta vez, desta vez com requintes de malvadez de um interrogador da PIDE que lhe aponta uma pistola e lhe garante que, se o matasse ali "como um cão", seria considerado legítima defesa. É na prisão que se casa, por procuração, com Maria de Jesus Barroso, já então grávida de três meses de João, o primeiro filho do casal. Maria vive tempos difíceis. Duas peças em que participa no Teatro Nacional são proibidas pela censura e a direção do Teatro recebe instruções para não a voltar a contratar. A auspiciosa carreira de atriz, que então despontava, ficava prematuramente comprometida.

João Soares nasce a 29 de agosto de 1949, pouco depois de o pai ser libertado da prisão. Isabel, a segunda filha do casal, viria ao mundo em janeiro de 1951.

III - Preso, vigiado, deportado

Mário Soares fez-se advogado para sustentar a família, mas vivia para a política

Concluído o curso de Histórico-Filosóficas, em janeiro de 1952, Mário Soares continua a depender financeiramente do pai. Sem poder dar aulas, não só por não ter concluído a parte pedagógica do curso mas também por a PIDE lhe recusar o indispensável atestado de idoneidade, Soares inscreve-se no curso de Direito da Faculdade de Lisboa, cumprindo o desejo do seu pai. Casado e pai de dois filhos, Soares tira o curso entre 1952 e 1957. É aluno de Marcelo Caetano, então eminente professor de Direito Administrativo, que então iniciava o percurso político que faria dele o sucessor de Salazar.

Depois de concluir a segunda licenciatura, Soares dá aulas na escola privada do pai, o Colégio Moderno. O corte com o PCP tinha-se consumado e Soares estava menos ativo politicamente, mas nem por isso deixava de se empenhar na oposição. Era um professor pouco assíduo e pouco dado a seguir o currículo oficial. Inicia atividade como advogado, abrindo escritório com uma nova geração de juristas, entre os quais o grande amigo Salgado Zenha. Mas nunca teve grandes ambições na advocacia: "Era um meio de subsistência, uma almofada para me dedicar à política".

Em 1958, a candidatura do general Humberto Delgado à Presidência da República traz Soares de volta à ribalta dos movimentos oposicionistas. Soares nem é um adepto entusiasmado de Delgado - considerava-o demasiado próximo do Salazarismo, dado que fora um dos mais empenhados obreiros dos primeiros anos do Estado Novo. Mas o apoio popular ao general que prometia "obviamente demitir" António Salazar convence-o de que Delgado pode ser o homem que faria abalar o regime. Humberto Delgado perde as eleições para Américo Tomaz, numas eleições em que se torna difícil ao regime disfarçar a fraude monumental do processo eleitoral.

Sempre próximo dos líderes de golpes como a Revolta da Sé, em 1959, ou o Golpe do Quartel de Beja, em 1962, Soares volta a ser preso. No total, Soares é detido em12 ocasiões, somando um total de mais de três anos de detenção. Na maioria das vezes, é libertado sem chegar a conhecer qualquer acusação.

Sem nunca esmorecer a atividade política, em 1964, está na fundação da Acção Socialista Portuguesa (ASP), movimento criado na Suíça.

No plano pessoal, as coisas complicam-se. No início dos anos 60, Soares viaja cada vez mais para o estrangeiro e a mulher e os filhos sofrem as ausências. As cartas sofridas da mulher, Maria Barroso sucedem-se.

Em 1965, Humberto Delgado é assassinado com a sua secretária perto de Badajoz. Um brigada da PIDE abate-o em Espanha. Soares oferece os seus serviços de advogado à viúva, Iva Delgado, o que esta aceita. Soares forma uma equipa de advogados para esclarecer o caso, em Portugal, Espanha e Itália e volta a ser detido pela PIDE. É cada vez mais vigiado.

O líder da ASP viaja por toda a Europa. Estabelece contatos com partidos socialistas e sociais democratas das democracias europeias e visita o bloco de Leste. As viagens à Checoslováquia, Cuba e Jugoslávia confirmam nele a ideia de que o ideal comunista não era, na prática, o que a teoria prometia.

Em 1967, bate-lhe à porta do escritório de advogados um jornalista do jornal britânico ‘Daily Telegraph’. Estava a investigar o famoso caso das ‘Ballets Rose’, em que figuras do vulto do regime eram acusadas de frequentar uma casa de meninas onde tinham sexo com menores. O artigo faz escândalo, ao revelar o encobrimento do caso pelo regime. Soares é detido, acusado de divulgar notícias falsas e de pôr em casa a moralidade de Salazar.

É o período mais duro que passa na prisão. Fica isolado durante três meses em Caxias, sem falar com ninguém. Passa o natal sozinho, sem um livro, um jornal, uma palavra.

Solto em março de 1968, mal tem tempo de gozar a liberdade. O Conselho de Ministro decide a sua deportação para São Tomé e Príncipe, sem esperar pela acusação ou julgamento.

Soares chega à ilha de São Tomé com um fato de inverno, para enfrentar um calor de 40 graus. Mas Soares mostra mais uma vez a sua tremenda capacidade de adaptação. Estabelece-se numa pensão de São Tomé. Poucos dias depois chega Maria Barroso e mudam-se para um apartamento em frente ao mar. O nervosíssimo chefe da PIDE local empenha-se em seguir todos os passos do ilustre deportado, que depressa conquista simpatias. Recebe vários jornalistas estrangeiros, desdobra-se em entrevistas. Mesmo a milhares de quilómetros de Lisboa, Soares continua a ser um incómodo.

Da permanência de Soares em São Tomé, sobram episódios anedóticos. Como a vez em que o deportado sai com o velho e gasto Volkswagen que comprou em quinta mão e a máquina se recusa a arrancar. Soares não está com meias medidas e resolve pedir boleia ao PIDE que o seguia nesse dia. Este fica tão estupefacto que o deixa entrar no carro, e leva Soares ao destino pretendido.

Entretanto, o cenário muda em Lisboa. Em Agosto de 1968, Salazar cai da cadeira no Forte de Santo António, no Estoril, e nunca mais recupera a saúde. Marcelo Caetano assume a Presidência do Conselho de Ministros e a primavera marcelista dá a ilusão de mudança. Soares é autorizado a deixar São Tomé em novembro. Chega a Lisboa na madrugada dos dia 13. Às cinco da manhã, há uma grande festa na casa do Campo Grande. Soares, então com 43 anos, abraça os filhos e o pai, que daí a poucos dias completa 90 anos.

IV - Do exílio ao 25 de Abril

Fora do país, fundou o PS e correu mundo, para desespero da família

Em 1969, a oposição aparece dividida às eleições para a Assembleia Constituinte, as primeiras que se realizam no País depois de Marcelo Caetano substituir Salazar na Presidência do Conselho de Ministros. O partido do Regime, a União Nacional, ganha com 86 por cento dos votos e fica com todos os assentos parlamentares.

Mas não é essa derrota, já esperada, que desanima Soares. O líder da Acção Socialista Portuguesa empenhara-se na candidatura da CEUD (Comissão Eleitoral de Unidade Democrática), mas ficou muito atrás das Comissões Democráticas Eleitorais (CDE) onde estavam vários outros oposicionistas, como o futuro presidente Jorge Sampaio.

Desiludido, Soares parte, em 1970, para uma solitária viagem ao continente americano. Uma viagem que tem custos pessoais. O sogro tinha morrido há um mês a sogra luta com um contra um cancro. A saúde do pai também se revela precária. Maria de Jesus Barroso vê com maus olhos a viagem e isso mesmo diz ao marido numa carta que depois seria publicada no livro "Cartas a Mário Soares", de 2012. "Tinhas mesmo de fazer esta viagem, senão morrias. Tem paciência, sou muito tua amiga, mas a verdade é que tu nunca medes as consequências dos teus atos - tens um capricho e tens de o satisfazer, doa a quem doer, custe o que custar".

Há muito que Barroso se queixa das ausências do marido e do pouco tempo que este dedica à família. Sente-se abandonada e desprezada. Mas aguenta, como fez toda a vida.

Soares continua a denunciar os abusos do regime português. Numa conferência de imprensa em Nova Iorque, critica a guerra colonial e defende a autodeterminação das colónias, atitude que é especialmente mal recebida em Lisboa. A família de Soares começa a receber ameaças, incluindo uma carta com balas, conta Joaquim Vieira na biografia "Mário Soares, Uma Vida". Soares vai para Paris, onde a mulher lhe diz que a DGS - sucessora da PIDE - abriu contra ele um novo processo, sob a grave acusação de Soares defender a dissolução da pátria.

Retirado para Itália, onde escreve o grosso do livro ‘Portugal Amordaçado’, recebe aí a vista da mulher e dos filhos. Estes são informados durante a viagem de uma notícia trágica e comunicam-na a Mário Soares já em Itália: o pai deste, João Soares, morre em Lisboa, a 31 de julho de 1970, aos 91 anos. Apesar de saber que se arrisca a ser preso, Soares embarca em Roma com destino a Lisboa. Assiste ao funeral do pai e é informado pela PIDE que tem quatro horas para deixar o país, senão é preso e deportado "para um sítio mais longe" (provavelmente Timor, apura o oposicionista). Soares sai de Portugal de carro com a mulher e os filhos, Isabel e João. Atravessam Espanha num Morris 1300 e conduzem até França. Estava, oficialmente, banido do país.

Soares fixa-se em Paris e começa a dar aulas na Universidade de Vincennes, nos arredores de Paris e também em Rennes, na Bretanha. Mais tarde, chega a lecionar na prestigiada Sorbonne. Em 1972, sai em França o livro ‘Portugal Amordaçado’, que parte da sua experiência pessoal para revelar as ideias de Soares para a mudança de regime em Portugal. O livro é recebido com interesse em França e lido às escondidas em Portugal.

Em Paris, Soares desdobra-se em contatos com os oposicionistas no exílio. Membro da Internacional Socialista, viaja por toda a Europa e pela América Latina. E vai também a Moscovo, a convite das autoridades soviéticas.

Em Abril de 1973, a ASP reúne na Alemanha com filiados vindos de Portugal e de várias partes da Europa. A 19 de Abril é lavrada a ata da fundação do Partido Socialista num hotel da estância termal de Bad Munstereifell. Estavam presentes 27 delegados.

E é na Alemanha, onde estava com Maria de Jesus Barroso, Tito de Morais e Ramos da Costa para se reunir com o líder socialista Willy Brandt que, um ano depois, Soares sabe do golpe militar que tem lugar a 25 de Abril de 1974.

V - Entre o Governo e a rua

Os dias loucos de um político após a revolução de abril

Mário Soares chega a Lisboa no dia 28 de abril de 1974. Desembarca no chamado ‘comboio da liberdade’, que trouxe para a estação de Santa Apolónia, em Lisboa, dezenas de exilados ilustres.

A 1 de Maio, Soares junta-se ao líder comunista Álvaro Cunhal, que chegara entretanto a Lisboa de avião, para o primeiro grande comício após a revolução. O povo saiu à rua em Lisboa e em várias cidades do país para celebrar a liberdade recém-conquistada e Soares é uma das vozes que se faz ouvir no estádio da FNAT (hoje estádio 1º de Maio, em Lisboa). O tom é ainda de total esquerdismo revolucionário:

"O fascismo foi vencido, mas as bases sociais de suporte do fascismo continuam intactas. É o poder económico, são os bancos, são os monopólios, são os corruptos desse baronato político-corporativo, que são em Portugal os agentes do imperialismo do estrangeiro", grita Soares à multidão.

Soares não demora muito a assumir funções em vários dos governos provisórios que se sucedem naqueles tempos de agitação política. A 15 de maio, assume a importante pasta do Ministério dos Negócios Estrangeiros do I Governo Provisório, liderado por Palma Carlos. No Governo estão representados três partidos, o PS, o PCP de Álvaro Cunhal e o recém-formado PPD, liderado por Francisco Sá Carneiro. Soares mantém-se à frente do MNE até março de 1975, continuando nessas funções nos três primeiros governos provisórios, que procuravam dar alguma ordem ao país saído da revolução.

O líder socialista assume o mais incómodo dos assuntos que o novo regime tem de resolver - o fim da guerra colonial, a independência de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, e também de Cabo-Verde e São Tomé e Príncipe, onde a guerra nunca chegou. O processo começa com a tentativa de estabelecer acordos de cessar-fogo com as forças beligerantes, o que põe Soares em rota de colisão com o Presidente da República, o general António Spínola, que preferia uma solução menos drástica do que conceder, de imediato, a independência das colónias.

Soares assinou a paz com as forças beligerantes, mas o fim dos conflitos teve um efeito brutal. Estima-se que meio milhão de pessoas se viram obrigadas a vir para Portugal entre 1974 e o verão de 1975, abandonando tudo o que tinham em África. Muitos dos ‘retornados’ tinham nascido no Ultramar sem nunca ter visitado a Metrópole. Soares ganhou inimigos para a vida. Defendeu sempre o seu papel, explicando que fez a "descolonização possível". "Salazar é que é o responsável. E culpam-me a mim por fazermos a paz?".

Em clima de profunda agitação social e política, Soares leva o PS para a rua, desafiando o PCP e outras forças mais à esquerda. Temia-se que o país caísse na órbita soviética e Soares empenha-se em evitá-lo. Ao mesmo tempo, opõe-se à intenção de Spínola, que queria reforçar os poderes presidenciais antes da eleição da Assembleia Constituinte. Mário Soares defendia que o novo regime devia legitimar primeiro o poder dos partidos. António de Spínola acaba por se demitir em setembro de 1974, sendo substituído na Presidência da República pelo General Costa Gomes.

A 25 de Abril de 1975, o país vai a votos pela primeira vez na era democrática. A eleição para a Assembleia Constituinte dá ao PS de Soares uma vitória surpreendente, com quase 38% dos votos e 116 dos 250 deputados. O PPD (antecessor do atual PSD) fica em segundo com 26% dos votos e 81 deputados, remetendo o PCP para o terceiro lugar, com 12% dos votos e 30 deputados.

No ‘Verão Quente’ de 1975, o país está a ferro e fogo. Grupos de extrema-esquerda e extrema direita fazem atentados à bomba, manifestações e contra-manifestações sucedem-se nas ruas. Soares opõe-se aos governos provisórios liderados por Vasco Gonçalves, próximo das posições do PCP. O líder do PS demite-se do cargo de ministro sem pasta do IV Governo Provisório e faz oposição ao "gonçalvismo". O comício da Fonte Luminosa, em Junho de 1975, mostra a capacidade do PS de levar multidões à rua.

A 6 de novembro, Soares e Cunhal travam um debate histórico na RTP. Durante mais de três horas, os líderes do PS e do PCP trocam acusações. Soares acusa Cunhal de querer instaurar um estado comunista em Portugal, contra a vontade do povo. Cunhal exalta-se, repete várias vezes uma frase que fica na memória: "Olhe que não, olhe que não".

O movimento militar de 25 de Novembro de 1975 encerra o chamado Processo Revolucionário em Curso (PREC), período em que o país vive à beira de uma guerra civil. Sob a liderança do então coronel Ramalho Eanes, os militares do comandos neutralizam as tropas afetas ao Partido Comunista, que estariam na iminência de provocar um golpe de Estado. Cai o executivo liderado por Vasco Gonçalves. O regime entra numa nova era de normalização democrática. Soares, que mobilizara apoios internacionais, incluindo o do embaixador americano em Lisboa, Frank Carlucci, está do lado dos vitoriosos.

A 25 de Abril de 1976, o PS tem uma nova vitória, nas primeiras eleições legislativas do novo regime. Mário Soares sonhava com uma maioria absoluta, mas tem de se contentar com 35% dos votos, uma descida em relação ao escrutínio para a Constituinte. Soares tenta uma coligação com o PPD, então liderado por Pinto Balsemão, mas este recusa. O PS terá de governar sozinho, em minoria na Assembleia da República. Mas a formação do primeiro governo constitucional é adiada para depois das eleições presidenciais.

Em junho de 1976, o general Ramalho Eanes é eleito Presidente da República, o primeiro chefe de estado a ser escolhido por sufrágio universal e direto após a revolução de 74. O PS apoia o militar, apesar do pouco entusiasmo de Soares em relação ao homem que acabaria por se tornar um dos seus maiores rivais políticos. Eanes toma posse a 14 de Julho de 1976 e dá posse a Soares como primeiro-ministro no dia 23. O Executivo conta só com nomes do PS e alguns independentes. Todos sabem que o governo não vai durar muito tempo.

VI - Governando sobre brasas

Soares governou sempre em minoria. Era mestre na arte de negociar

Há episódios que definem uma personalidade. E José Silva Lopes, que foi ministro das Finanças em dois Governos Provisórios e Governador do Banco de Portugal durante os anos de brasa do pós 25 de Abril gostava de contar uma história que viveu quando Mário Soares era primeiro-ministro.

O País estava à beira da bancarrota e, a dado momento, a situação torna-se insustentável. Numa das muitas noites em que a brutalidade dos números o deixava desconcertado, Silva Lopes liga a Soares. Explica-lhe que o País só tem reservas cambiais para mais dois dias. A resposta fica nos anais da política portuguesa. "Ó homem, são duas da manhã! Se o problema é assim tão grave, tenho de ter a cabeça fresca. Deixe-me dormir! Amanhã logo se vê o que podemos fazer".

Uma resposta que diz muito sobre o político Soares. Pouco dado a estudar dossiês ou a mergulhar em questões técnicas complexas, mas lesto a decidir e a seguir o seu instinto político.

Entre 1976 e 1985, Soares lidera três governos (de 1976 a 78 e de 1983 a 1985). Sempre em minoria, faz acordos com o CDS, com o PPD (depois PSD), engole o Bloco Central com Mota Pinto, faz o que pode para se manter no poder. É contestado dentro do seu próprio partido, tem de enfrentar uma nova geração que quer o poder. Encontra no Presidente da República um adversário, que decide a queda do II Governo Constitucional e avança com vários executivos de iniciativa presidencial.

Nas legislativas de 1979, o PS perde para a coligação PSD/CDS/PPM, liderada por Sá Carneiro, que forma Governo. Quando Sá Carneiro morre na queda do avião em Camarate, em 1980, Há novas eleições e Soares volta a perder. Resta-lhe fazer oposição ao novo Governo, liderado por Francisco Pinto Balsemão.

Em 1983, o PS volta a ganhar eleições e Soares volta a ser primeiro-ministro num governo que junta PS e PSD, então liderado por Mota Pinto. O Bloco Central tem de enfrentar a grave crise financeira do País e, tal como em 1977, Soares vê-se obrigado a pedir a intervenção do FMI para tirar Portugal da bancarrota. Em clima de descontentamento geral perante a austeridade imposta, com Mota Pinto fora do Governo (que morreria pouco depois de doença súbita), o executivo treme quando um tal de Aníbal Cavaco Silva vai ao congresso da Figueira da Foz, em maio de 1985, fazer a rodagem do seu novo Citroën e sai de lá eleito líder do PSD.

Cavaco Silva estava muito longe de ser um entusiasta do Bloco Central e as negociações que enceta com Soares para se juntar ao Governo fracassam. Até por episódio anedótico: Cavaco diz à imprensa que se vai reunir com Soares no Largo do Rato num encontro "de trabalho, não de flores". ‘Picado’, Soares manda encher a sede do PS de ramos de flores, desde a entrada até à sala de reuniões. Cavaco entende a piada como uma falta de respeito. Nasce mais uma inimizade que fica para a vida.

Oficializado o fim prematuro do Governo, um do últimos atos de Mário Soares como primeiro-ministro é assinar o acordo de adesão de Portugal e Espanha à CEE, antecessora da atual União Europeia, no Mosteiro dos Jerónimos. Era a concretização de um projeto em que Soares se tinha empenhado desde os primeiros tempos após a revolução de 74.

Em 1985, Soares tem a popularidade nos mínimos. Mas lança-se numa corrida que, apesar de preparar há muito, parecia condenada ao fracasso - bater-se pela Presidência da República. O próprio admite a delicadeza do momento, numa entrevista que deu mais tarde a Joaquim Vieira para a biografia ‘Mário Soares, Uma Vida’: "Como o Presidente era Eanes, em quem não tinha nenhuma confiança, eu estava bloqueado pelos dois lados. Não podia estar pior".

VII - Soares é Fixe

Campanha de 1986 começou em depressão, acabou em euforia

Quando Soares se lança na corrida para as eleições presidenciais de 1986, as circunstâncias jogam todas contra si. Cavaco Silva tinha ganho as eleições legislativas de 1985, iniciando o caminho que o haveria de levar a duas maiorias absolutas de governos do PSD. O candidato presidencial da direita é Diogo Freitas do Amaral, até há pouco líder do CDS.

À esquerda, o campo está minado. Francisco Salgado Zenha - amigo íntimo de Soares e fundador, com ele, do PS - está na corrida. Maria de Lurdes Pintassilgo, a única mulher que - por iniciativa do Presidente Eanes - tinha liderado um governo em Portugal granjeava muitas simpatias. O PCP apresenta à disputa eleitoral Ângelo Veloso, que viria a desistir antes das urnas a favor de Salgado Zenha, que também reúne o apoio do PRD, o partido que nasceu da (pouco) discreta iniciativa do ainda presidente Ramalho Eanes.

O PS decide apoiar Soares, uma desilusão para Zenha, que nunca perdoará a traição do amigo que tantas vezes apoiara nas horas mais difíceis. As relações entre ambos esfriam definitivamente, uma mágoa que Soares guardará para sempre.

Antes de começar a campanha eleitoral, as sondagens não davam mais de 5% das intenções de voto a Mário Soares. Mas a chamada ‘campanha alegre’ traz o melhor do animal político que Soares sempre foi. A rua é o seu território. Afinal é o Mário, o ‘Marocas’, o ‘Bochechas’ que está ali a distribuir beijos e abraços, o homem que pega num anão e o beija, pensando tratar-se de uma criança. ‘Soares é fixe’, é um dos lemas da campanha que se cola ao candidato.

O ponto de viragem surge numa ação de rua na Marinha Grande. Os operários da indústria vidreira estão em luta, manifestantes afetos ao PCP recebem Soares e a sua comitiva com hostilidade. Um segurança é ferido, as câmaras de televisão filmam-no a sangrar, o próprio Soares leva uma paulada.

A perceção sobre o candidato muda naquele dia. Afinal é o herói de abril que acaba de ser sovado, mas não vira a cara à luta. Os apoiantes animam-se, a campanha ganha novo fôlego...

Na televisão, Soares trava um tenso debate com Freitas do Amaral. Mais racional, o candidato centrista passa uma imagem de excessiva frieza perante o emocional Soares.

Vota-se a 26 de janeiro de 1986. Soares ganha à esquerda reunindo 25% dos votos, contra 20% de Salgado Zenha e 7% de Lourdes Pintassilgo. Freitas ganha, destacado, com uns confortáveis 46% dos votos, muito próximo da maioria que o poderia levar a Belém.

Na segunda volta, Álvaro Cunhal faz o inesperado. Apesar da desconfiança que tem no líder socialista, faz um apelo inédito ao eleitorado comunista: "Se for preciso tapem a cara [de Soares no boletim de voto] com uma mão e votem com a outra".

A 16 de fevereiro, os portugueses voltam à urnas. E Soares ganha, à tangente. Consegue 51,1 por centos dos votos, contra 48,8 de Freitas do Amaral. A eleição decide-se por pouco mais de 260 mil votos, a menor diferença de sempre. Mário Soares torna-se o primeiro civil a chegar ao Palácio de Belém desde o 25 de Abril de 1974.

VIII - Presidente em luta contra o Cavaquismo

Soares quis liderar em Belém a luta contra os governos laranja

Os dez anos que Mário Soares passa em Belém, dividem-se em fases bem distintas. Eleito em 1986, o Presidente vê-se obrigado a conviver com um rival político que desconsidera, desde a primeira hora. O primeiro-ministro Aníbal Cavaco Silva é, para Soares, um tecnocrata sem passado e sem carisma. Soares subestima-o. Ainda assim, não o deixa cair.

Em abril de 1987, o PRD apresenta uma moção de censura ao Governo. Esta é aprovada pela maioria dos deputados - com os votos do PS e do PCP. Soares tem a possibilidade constitucional de promover um acordo à esquerda que levasse à formação de um novo Governo, mantendo o Parlamento em funções. Mas, ao contrário do que pediam muitos dos seus amigos e apoiantes, Soares decide dissolver a Assembleia da República e convocar novas eleições legislativas.

Talvez Soares não esperasse o resultado que sai do novo escrutínio. Cavaco Silva alcança uma vitória esmagadora. Consegue 50,2% dos votos e o PSD fica com 148 dos 250 deputados. É a primeira maioria absoluta da democracia. O PRD, que tinha provocado a queda do governo, sofre uma hecatombe, ao passar de 45 para 7 deputados.

O PS, liderado por Vítor Constâncio, até consegue reforçar a sua votação e passa de 57 para 60 deputados. Mas longa será a travessia dos socialistas. Jorge Sampaio sucede a Constâncio em 1989, mas não sobrevive a novo desaire eleitoral, com a segunda maioria absoluta de Cavaco, em 1991. O PS só regressa ao poder em 1995, pela mão de António Guterres.

Obrigado à convivência com Cavaco, Soares atua em Belém com o pragmatismo que sempre o caracterizou. O presidente percebe que é na rua que ganha simpatias e cria a figura das "presidência abertas", que o levam a todo o país. Desdobra-se em viagens de Estado ao estrangeiro, revela verdadeira vocação para ser "o presidente de todos os portugueses".

Tanto que, terminado o primeiro mandato, Cavaco Silva toma a inédita decisão de o PSD não apoiar qualquer candidato contra Soares. É Basílio Horta, então líder do CDS, quem assume o dever de representar a direita, mas é esmagado nas urnas por Soares, que ganha o plebiscito com uns esmagadores 70% dos votos, o melhor resultado alguma vez conseguido por um candidato presidencial.

O segundo mandato seria marcado por uma mudança drástica na relação entre Belém e São Bento. Soares aposta no desgaste do Governo e não perde uma ocasião de criticar, com mais ou menos subtileza. Mas a poucos escapam o verdadeiro alcance de iniciativas como o congresso "Portugal, que futuro?", em 1993, ou a Presidência Aberta na Área Metropolitana de Lisboa, também no mesmo ano, que o Presidente tudo faz para sublinhar os defeitos da "política do betão".

Cavaco haveria de sair de cena em 1995. Agastado com anos de combate contra Soares, a oposição e os próprios membros do seu partido - a quem Cavaco nunca deu a atenção que tantos reclamavam - deixa a Fernando Nogueira a ingrata tarefa de defender o seu legado contra a popularidade crescente de António Guterres.

O resultado é um estrondosa vitória dos socialistas, que falham a maioria absoluta por uma nesga. Soares tem ainda uma segunda vingança. Em 1996, Cavaco apresenta-se à corrida para a sua sucessão e perde, inapelavelmente, para Jorge Sampaio, logo à primeira volta.

Mário Soares termina o seu segundo mandato em Belém com a popularidade em alta. Parte de Belém com o projeto de viajar com a mulher durante largos meses. Mas todos sabem que a vida política de Soares está longe de ter chegado ao fim.

IX - Dias negros em Belém

Um drama pessoal e um escândalo político abalaram o Presidente

A Presidência da República revela Soares no fulgor da sua vida política, mas os oito anos que passa em Belém são marcados por grandes dissabores políticos e pessoais.

A palavra Emaudio é a espinha no currículo político de Soares. A empresa, constituída no início do mandato de Mário Soares em Belém era uma sociedade constituída com capitais de fundações ligadas ao PS e que tinha por finalidade constituir um novo grupo de comunicação social. O objetivo principal seria o de criar o primeiro canal privado de televisão em Portugal. Soares sempre negou qualquer envolvimento no projeto, mas os acontecimentos tornam essa tese difícil de sustentar.

No início de 1986, o então empresário de televisão italiano Silvio Berlusconi (fundador do império mediático Mediaset e depois primeiro-ministro de Itália) visitou Soares em Belém. Conta Joaquim Vieira na sua biografia de Mário Soares que Berlusconi e o Presidente discutiram longamente as possibilidades que se abriam com a criação de um novo canal privado em Portugal.

Mas o projeto empresarial, que tinha entre os principais dirigentes Almeida Santos e João Soares, filho do presidente, não avançaria com Berlusconi. A sociedade Emaudio é constituída formalmente em janeiro de 1987. O principal investidor era a Fundação para as Relações Internacionais, dirigida por Rui Mateus. Um nome que se tornaria maldito para Soares. Colaborador próximo do líder socialista durante décadas, acabou por ser rudemente afastado. E ‘vingou-se’ escrevendo ‘Contos Proibidos - Memórias de um PS Desconhecido’ - livro em que pôs a nu os esquemas do PS para se financiar. Mas isso seria bem mais tarde, em 1996. Nove anos antes, Mateus estava no coração do projeto Emaudio.

Depois de Berlusconi, o alvo seguinte é o magnata australiano da comunicação Rupert Murdoch, ainda hoje dono de meios como o tablóide ‘The Sun’ ou o cadeia de TV Fox. Também ele é recebido por Mário Soares em Belém, onde discutem o projeto da nova televisão portuguesa. Há ainda um terceiro interveniente. Robert Maxwell outro magnata dos media e rival de Murdoch também vem a Belém. E será este a celebrar um acordo com a Emaudio, que tinha inicialmente como objeto de investimento a televisão de Macau.

A TDM - Televisão pública de Macau - estava em processo de privatização e interessava ao media internacionais. Porque do pequeno território português era possível fazer chegar as emissões à vizinha Hong Kong, uma das grandes capitais financeiras da Ásia. E a Emaudio seria a ‘muleta’ para entrar nessa operação.

Entretanto, Soares nomeia Carlos Melancia, um homem ligado à Emaudio, para Governador de Macau. E tudo se precipita por causa de outro negócio, o da construção do novo aeroporto de Macau, em que a Emaudio também estava envolvida. A empresa alemã Weidleplan quer entrar na corrida e faz um pagamento de 50 mil contos (250 mil euros), recebido pela Emaudio, para facilitar o acesso ao negócio - isto segundo a versão de Rui Mateus, já que Soares negou sempre qualquer envolvimento no assunto.

A Weidleplan fica de fora no concurso de adjudicação da obra do aeroporto. Mateus entra em rota de conflito com Soares, sendo a Fundação para as Relações Internacionais esvaziada de funções e capital. No verão de 1989, Mateus larga a bomba. Faz chegar ao jornal ‘O Independente’ o famoso fax da Weidleplan dirigido ao governador Carlos Melancia, em que os alemães pedem a devolução do dinheiro pago. O escândalo ameaça o Presidente, que deixa cair Melancia, seu amigo e sua escolha pessoal para governar Macau.

É forçado a demitir-se. Acusado de corrupção passiva, Melancia inicia uma longa travessia no deserto, que só se resolveria anos depois, com a sua absolvição na justiça. Soares defendeu publicamente a sua inocência, mas Melancia acabou por ser a grande vítima política do caso. Na corrida para a reeleição presidencial, em 1991, o candidato da direita, Basílio Horta, tentou colar Soares ao escândalo, mas a estratégia não resultou. Soares vence com uns confortáveis 70% dos votos, marca inédita na democracia portuguesa.

Filho às portas da morte

Em Setembro de 1989, João Soares parte para Angola e visita Jonas Savimbi na base da UNITA na Jamba, na companhia dos deputados Rui Gomes da Silva (do PSD, hoje mais conhecido como comentador de futebol afeto ao Benfica) e Nogueira de Brito, do CDS. O Cessna em que seguem despenha-se na floresta e o filho do presidente fica gravemente ferido. Quando Soares e Maria Barroso são informados, durante a madrugada, o prognóstico clínico de João Soares era muito reservado.

Soares tem visitas de Estado marcadas para a Hungria e para a Holanda, e mantém as deslocações previstas. Maria Barroso viaja para a África do Sul, para onde João é transferido. Soares vai sabendo notícias do filho pelo telefone. Parte depois para Pretória, onde João vai dando sinais de melhoria. O episódio marca o reencontro de Maria Barroso com a fé católica, Soares permanecerá agnóstico até ao fim.

João recupera dos ferimentos. Sobrevive quase miraculosamente, após várias cirurgias, vencendo o pessimismo dos primeiros diagnósticos.

Mas nem em circunstâncias tão dramáticas Soares deixa de fazer política. A África do Sul vive um momento histórico, o apartheid está à beira do fim e especula-se que Mandela poderá ser libertado a qualquer momento. Soares encontra-se como chefe de governo, De Klerk, o homem que haveria de abrir portas ao fim da segregação racial. Soares aconselha-o a libertar Mandela, puxando o exemplo falhado de Marcelo Caetano, que caiu por não saber reformar a ditadura que herdara de Salazar. Soares é dos primeiros a saber da intenção de De Klerk de libertar Mandela, que acontece poucos meses depois.

XX - Há sempre mais uma batalha

A vida política de Mário Soares não acabou depois da Presidência

Quando Mário Soares deixa o Palácio de Belém, em 1996, tem 71 anos. Deixa várias promessas: "Não desejo fazer mais política partidária, nem tenciono aceitar quaisquer outros cargos de tipo estritamente político, no plano nacional ou internacional. Quem foi, durante dez anos, Presidente da República, com a ampla aceitação que lhe foi conferida pelos seus concidadãos, não deve aspirar, politicamente, a mais nada. É uma regra de ouro, de que não me afastarei". As câmaras de televisão mostram-no a sair de Belém com Maria Barroso, pronto para "uma viagem prolongada" a dois, que nunca tinham conseguido fazer.

A promessa não resistiu muito tempo. A Fundação Mário Soares, criada em 1991, só arranca realmente com o fim do segundo mandato em Belém, mas Soares não queria ser um mero Conselheiro de Estado, remetido ao papel de opinar amiúde sobre o estado da nação.

A oportunidade de voltar à arena política aparece em 1999. António Guterres liderava um governo mal cotado nas sondagens e temia um desaire nas eleições europeias. Insiste com Soares para ele ser o cabeça de lista a Bruxelas. E Soares acede. Mas fá-lo com um objetivo concreto, o de ser eleito Presidente do Parlamento Europeu, cargo de prestígio internacional que seria o corolário de uma carreira política brilhante. Mas estava tudo dependente de os socialistas europeus elegerem mais deputados que o PPE (coligação de centro-direita onde se inscrevem o PSD e o CDS).

Os socialistas falham a maioria. Cabe ao PPE indicar o novo Presidente do Parlamento Europeu e Soares não esconde a desilusão. Quando a francesa Nicole Fontaine assume o cargo, Mário Soares diz que a francesa tem "um discurso de dona de casa".

A ‘boutade’ é mal recebida. Soares passa por chauvinista e por ressabiado. Mas cumpriu os cinco anos de mandato com espírito aberto. "Gostei muito, aprendi muita coisa", diria sobre a experiência.

Nova corrida a Belém

Em 2004, Soares completa 80 anos de vida, e a família organiza-lhe um jantar de homenagem. Mas o que começa por ser uma celebração em tom familiar depressa escala como o embrião de mais uma batalha. Apesar de Soares voltar a prometer que a política é, para ele, um assunto encerrado, sabe que as coisas podem não ser bem assim.

As eleições presidenciais de 2006 dividem os socialistas. José Sócrates lidera um governo minoritário e não quer apoiar o seu rival político Manuel Alegre, cuja candidatura se adivinha. Para Soares, as eleições são a oportunidade de se bater contra Cavaco Silva, o seu inimigo de estimação. Um apelo demasiado sedutor para o velho guerreiro fugir ao combate.

Contra a opinião de grande parte dos amigos e dos próprios filhos e mulher, Soares é mesmo apresentado como candidato do PS. A luta fratricida com Manuel Alegre vale o corte de relações entre os dois, tanto mais quando se apuram os resultados: Cavaco Silva ganha à primeira volta, Alegre fica em segundo, com larga vantagem para Soares, remetido a um humilhante terceiro lugar. A desastrosa campanha leva à rutura da relação pessoal de Soares com o sobrinho Alfredo Barroso - seu colaborador próximo de décadas. O último combate redunda numa derrota total.

O esquerdista

Curadas as feridas da derrota, nem por isso Soares adormece o espírito combativo. Torna-se um crítico feroz dos partidos à direita do PS. Apoia convictamente a liderança de Sócrates e, quando este cai em 2011, O governo de Passos Coelho e Portas é um dos seus alvos diletos. Soares parece cada vez mais próximo de uma visão extrema da esquerda da qual sempre fugiu quando liderava o PS. Crítico da globalização, abraça o camarada Lula no Brasil, defende o líder venezuelano Hugo Chávez, é a estrela do ‘Congresso das Alternativas’, em 2012, que o põe lado a lado com Francisco Louçã, Carvalho da Silva e outros líderes à esquerda do PS.

As crónicas semanais que escreve no Diário de Notícias revelam um homem inquieto, cada vez mais crítico do capitalismo global e dos destinos incertos da União Europeia, dominada por burocratas e pela ditadura das finanças. Na casa do Campo Grande, continua a receber os amigos de sempre. A política, sempre a política, domina as conversas.

Em Janeiro de 2013, Soares sofre uma encefalite. Internado de urgência aos 88 anos, o seu estado é delicado. Recupera, mas o discurso já não lhe volta a sair com a fluidez de sempre.

A última grande causa pública que Soares abraça é a defesa de José Sócrates. Quando o antigo primeiro-ministro é detido, por suspeitas de corrupção, Soares é dos primeiros a visitá-lo na prisão. Critica ferozmente o processo e os seus protagonistas, chega a dizer a escrever que o juiz Carlos Alexandre "é melhor que se cuide". Quando António Costa faz a sua única visita a Sócrates, na Prisão de Évora, é Mário Soares quem o acompanha.

A 26 de junho de 2015, Soares recebe o golpe mais duro. Maria de Jesus Barroso cai em casa e fica em coma profundo. Não recupera do traumatismo sofrido e morre duas semanas depois. Desde então, tornam-se raras as aparições públicas de Mário Soares.

Homenageado pelo Parlamento, recebe de Ferro Rodrigues, em abril de 2016, o diploma que comemora os 40 anos da Assembleia Constituinte. Marcelo Rebelo de Sousa promove, em setembro uma sessão de homenagem, em que Soares, sentado numa cadeira, já não toma a palavra. Nem ele escapa ao peso irreversível do tempo.

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