Nómadas ao seu serviço

22-05-2019
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GNR Alerta para os perigos dos contos do vigário… e da Internet JOÃO SILVA – BARBEIRO DA VILA Faz barba e cabelo em 15 aldeias do Alentejo SÉRGIO COELHO – PIZZA DA SERRA Faz nascer a tradição da pizza na serra algarvia ADORINDA BERNARDO – CABELEIREIRA Quer fazer ‘brushings’ às transmontanas JOÃO RODRIGUES – JR DENTAL Trata idosos que nunca tinham ido ao dentista

O que têm em comum um barbeiro em Beja, um dentista em Castelo Branco, uma cabeleireira em Miranda do Douro, um posto de polícia em Évora ou um pizzaiolo em Messines? Todos, com carrinhas adaptadas às suas profissões, percorrem várias aldeias portuguesas, em busca de clientes. Para as populações envelhecidas do Interior, na sua maioria sem transportes acessíveis para as cidades, a chegada destes serviços sobre rodas é sempre um acontecimento

João Silva – Faz barba e cabelo em 15 aldeias Do Alentejo

Estranharam o atraso de quase uma hora. Não é costume, mas os sete primeiros clientes não arredaram pé da porta da Sociedade Columbófila Asas Alentejanas, em Beringel. João Silva, conhecido por Barbeiro da Vila, sabe que o segredo do seu negócio ambulante é a lealdade. “Apareço sempre.” Se houver algum imprevisto, telefona para o café a avisar. Esta atenção ao cliente é tão importante como o acessível preço dos seus cortes de cabelo: 5 euros. Desta vez, a culpa do atraso foi a nossa sessão fotográfica, seguida de uma paragem no restaurante A Hortinha, onde, depois de almoçar umas pataniscas de bacalhau estaladiças com um arroz de tomate malandrinho, ainda cortou o cabelo do cozinheiro Ricardo Horta. “Quer a patilha assim ou mais subida?”, pergunta, antes de zarpar para o largo da igreja.

A passagem da carrinha branca transformada em barbearia é sempre motivo de conversa naquela aldeia alentejana. “Por vezes, vou na estrada que liga Santa Vitória a Beringel e outros condutores fazem-me sinais de luzes. A princípio, pensava que poderia ser algum problema com a carrinha… Mas querem é um corte de cabelo na hora. Estaciono na bomba de gasolina mais próxima e o problema resolve-se.”

Aprender com o pai

João Silva, 49 anos, voltou à aldeia de Faro do Alentejo há oito anos, depois de uma vida em Palmela, a trabalhar na empresa do sogro, ligada à transformação de mármore. Nada fazia prever que iria ficar com os clientes da barbearia do pai, estabelecido na sua terra natal, mas essa foi a saída lógica quando a fábrica onde trabalhava abriu falência.

Em 2010, percebeu que a clientela fixa naquela zona desertificada do concelho de Cuba era insuficiente e pensou: “Bom, bom era conseguir 30 a 40 clientes em cada aldeia.” Começou à procura de uma carrinha que pudesse ser transformada por dentro e, nove meses depois, já tinha sala de espera, casa de banho, lavatório e cadeira com espelho. Com um painel solar conseguiu autonomia para as luzes, bomba de água e degrau elevatório. Como carrega as baterias das máquinas em casa, quase não precisa de eletricidade para trabalhar.

Dois anos depois do arranque, a aposta parece ganha. O Barbeiro da Vila criou um calendário semestral com os dias em que passa pelas 15 aldeias dos concelhos de Beja, Mértola, Vidigueira e Faro do Alentejo e distribui-o nas juntas de freguesia, cafés centrais e aos clientes. “Já pensei numa frota de carrinhas, mas ainda não tenho capital suficiente. Só no final do ano recupero o investimento inicial, no valor de 45 mil euros.”

Barbeiro, confidente e músico

Enquanto aguardam a sua vez para se sentarem na cadeira do barbeiro, os septuagenários recordam o tempo em que Beringel tinha mais do que uma barbearia – e médico, cadeia, bombeiros, oleiros, banda filarmónica… -, lamentando o facto de, na última meia dúzia de anos, tudo ter fechado. “E um sapateiro também faz aqui falta”, acrescentam.

“Esta malta nova agora quer é poupas, parecem umas galinhas. No tempo do meu pai a tosquia era no sítio dos burros”, comenta Juvenal Pimentinha, 80 anos, recordando que aos 14 já andava na monda e ia buscar as galinhas à estrumeira. Carlos Amador ouve-o, divertido. Foi o único que numa tarde de inverno, que mais parecia de primavera, fez a barba à navalha com direito a creme hidratante no fim. Como tem diabetes, apressa-se a ir lanchar para manter os níveis de glicemia equilibrados. João Silva é o confidente de muitos destes homens. “Sei mais dos segredos das aldeias do que outras pessoas.”

A viola anda sempre na carrinha e, muitas vezes, toca umas “alentejanas” depois do serviço, enquanto come um petisco e dá dois dedos de conversa. “Como não bebo, é mesmo pelo convívio.”

GNR – alerta para os perigos ?dos contos do vigário… e da Internet

Com as aldeias portuguesas cada vez mais desertificadas, redobram-se os cuidados com os idosos. O posto móvel da GNR de Évora, na estrada desde dezembro passado, faz patrulhamento em 69 freguesias dos 14 concelhos do distrito. Em São Sebastião da Giesteira, a 15 km de Évora, associou-se à carrinha de acesso à internet da CIMAC – Comunidade Intermunicipal do Alentejo Central, e, lado a lado, passaram a manhã a alertar os moradores para os perigos a que estão expostos.

“A ideia é aproximarmo-nos da população para que nos ajudem a identificar problemas e os esquemas de burlas e contos do vigário. O mais comum é dizerem às pessoas que as notas foram descontinuadas pelo Banco de Portugal e que, se as trocarem agora, não perdem o dinheiro. Muitos ainda o guardam debaixo do colchão, no frigorífico, nos frascos dos feijões… Assim como nós sabemos, os bandidos também o sabem”, explica o tenente-coronel Rogério Copeto, oficial de Comunicação e Relações Públicas da GNR.

Os agentes pedem às pessoas para apontarem as matrículas dos carros suspeitos que andem a rondar a terra e para denunciarem casos de violência doméstica. “Como é um crime público, muitos familiares e vizinhos já metem a colher entre marido e mulher”, assegura o tenente-coronel.

Em frente a um dos portáteis, Jacinto Vaqueirinho, 67 anos, torneiro-mecânico aposentado, mostra ao militar as 1 200 amigas que tem no Facebook, na sua maioria latino-americanas. Rogério Copeto recorda-lhe a história da burlona em Bencatel, perto de Vila Viçosa, que drogava os homens para depois os roubar.

Sérgio Coelho – faz nascer a tradição da pizza na serra algarvia

Os velhotes da serra algarvia andam perdidos de amores pelas pizzas de Sérgio Coelho e Daniela Gomes. A roulotte da Pizza da Serra anda, há quase dois anos, a espalhar o cheirinho da massa estaladiça por Benafim, Tôr, Portela de Messines e Santa Margarida, entre o barrocal e a serra do Caldeirão.

Sérgio, 36 anos, é vendedor ambulante e tem licença para trabalhar no País todo. Mas se estacionar num terreno privado não há tanta burocracia para tratar e, como não vende bebidas, não faz concorrência ao ?comércio local – na verdade, ainda lhes arranja clientes. Jesuíno Guerreiro, 74 anos, apreciador do “panito de alho”, é o vizinho que lhe facilita a vida, autorizando o estacionamento da roulotte mesmo em frente ao portão da sua garagem, ao lado do café A Adega, na Portela de Messines. O pior é quando o senhor se atrasa, conta Sérgio. “Preciso de uma hora para aquecer o forno mas não posso montar o estaminé enquanto o carro dele não está na garagem.”

Para este pizzaiolo o negócio partilhado com a namorada só funciona graças ao espírito nómada do casal. Abrir um restaurante numa cidade estaria, garante, fora de questão. “Sou alérgico a cidades.”

O exemplo francês

Esta é a segunda vez que Sérgio Coelho, natural de Alte, tenta assentar arraiais em Portugal. Aos 8 anos acompanhou os pais numa aventura rumo aos Pirenéus franceses e regressou aos 19 para se tornar agricultor biológico nas terras da família. Apesar das boas condições climatéricas, o negócio não vingou. Seis anos mais tarde voltou a França para estudar Padaria, onde aprendeu a trabalhar a massa sem fermento, o que a torna mais leve e menos indigesta. Foi precisamente na Bretanha, numa roulotte em Quimper, que o português provou a que considera ser “a melhor pizza”, feita com vieiras, salmão e um molho branco (sem tomate). “Em França qualquer aldeia tem uma roulotte de pizzas estacionada, pelo menos uma vez por semana”, conta. “Em Marselha, por exemplo, há 50 lugares para pizzarias ambulantes e uma extensa lista de espera.”

Já passa das seis da tarde quando uma campainhada marca o início do serviço. De jaleca cinzenta empoeirada de farinha, Sérgio estica a massa com um rolo feito de oliveira, à medida que os pedidos caem. Em casa, Daniela, 26 anos, já preparou o molho de tomate, fatiou os cogumelos, as curgetes e as cebolas, e desfiou o peito de frango. É dela a autoria de uma das pizzas mais comidas, a Serra e Mar (atum, queijo de cabra, tomate fresco e cebola).

Tiago chega de cachecol do Benfica ao pescoço e quer levar para casa um pão de alho e uma Florestal (cogumelos, bacon e azeitonas). “O bom cliente é o que vem de 15 em 15 dias”, diz Sérgio, antes de atender o telemóvel com mais uma encomenda. Em alta voz toma nota de um pão de alho e de uma Vegetariana (tofu, cogumelos, curgete, pimento e cebola). Antes das sete e meia da tarde, ainda passa pela roulotte o fornecedor dos frescos; só o chouriço e o queijo de cabra são comprados aos produtores locais.

Lígia e Carlos Soares, donos da pizzaria Mamma Mia, no Pinhal Novo, vieram de propósito perceber o que é preciso para montar este negócio ambulante. “Queremos marcar presença em feiras e já temos o equipamento, só nos falta o meio de transporte”, explicam, enquanto provam uma pizza Algarvia (cogumelos, chouriço e pimento). Sérgio enumera as vantagens de usar uma roulotte. “Se o jipe falhar, posso puxá-la com outro carro; mas se o motor de uma carrinha avariar fico sem trabalhar uma série de dias”. Está decidido, Lígia e Carlos vão procurar uma roulotte usada.

Adorinda Bernardo – quer fazer ‘brushings’ ?às transmontanas

Há uma cabeleireira em Miranda do Douro que sabe muito bem o transtorno que é ter a carrinha avariada. Nos últimos três meses, parou durante 15 dias, com o gerador e a bomba de água estragados. Um infortúnio a juntar à recém-diagnosticada artrite reumatoide e a uma luxação na cervical que a obriga a descansar mais. Ainda assim, faz-se à estrada três vezes por semana.

Em Picote, a 16 km de Miranda do Douro, onde as amendoeiras já estão em flor e o rio serpenteia a paisagem, a tarde fria não afasta um grupo de senhoras que, pela primeira vez, vão experimentar o corte de Adorinda. Apesar dos preços acessíveis, entre os sete e os nove euros, gastar dinheiro num “brushing” não é habitual nestas aldeias.

A cliente mais nova da tarde, Idalina Louçano, 57 anos, trabalha como auxiliar no lar, onde fez o turno que terminou às oito da manhã. No salão ambulante encontra a sua vizinha Glória Moreira, 69 anos, e enquanto esperam, no sofá que as recebe à entrada da carrinha, põem a conversa em dia.

O vento está a soprar de feição, por isso é preciso reforçar a dose de laca. Com os homens, Adorinda não precisa destes retoques finais. Antes de ir cortar o cabelo a duas pessoas acamadas, reserva tempo para atender o senhor Miguel, um dos maiores produtores de nozes da região, que aos 90 anos está a receber formação à noite sobre produtos fitofarmacêuticos para saber comprá-los e aplicá-los nas suas vinhas – requisito obrigatório a partir do próximo outono.

As nove clientes foram todas cortar o cabelo; para já, continuam a lavar e secar em casa, e até a pintar os brancos. Com o tempo, pode ser que comecem a querer explorar outros serviços da carrinha de Adorinda, que está preparada para fazer qualquer trabalho técnico, como colorações, ondulações, madeixas, além de tirar o buço e as sobrancelhas com cera. No futuro, a cabeleireira sonha ter serviço de manicure e gabinete de estética.

A carrinha preta está estacionada mesmo ao lado da Igreja de São João Batista, que a antiga professora primária Fátima Lourenço, 72 anos, cruzava de marcha atrás quando já ia atrasada para a escola. E se antes costumava ir ao cabeleireiro em Sendim, agora “a disponibilidade de Adorinda é uma grande mais-valia”. Foi também nesta rua que Adília Preto, 73 anos, estranhou quando um dia, em janeiro, a cabeleireira andava para a frente e para trás com a carrinha, em repetitivos trajetos curtos, acompanhada de forasteiros. Percebeu tudo ao ver uma campanha publicitária da marca sueca Ikea, que transformou a transmontana de 37 anos numa estrela de televisão, promovendo as suas casas de banho.

Aquele largo da igreja tem sido central na vida de Adorinda. Aos 18 anos, quando conheceu o marido, na festa no primeiro fim de semana de agosto, não imaginava que haveria de estacionar o seu cabeleireiro junto à igreja, onde, no final da missa de domingo, Gonçalo Santos, presidente da Junta de Freguesia de Picote, faz o “conselho da aldeia”, e discute com os 200 habitantes as decisões dessa semana.

Na bagagem, Adorinda guarda, além de muita genica, a experiência de ter vivido em Madrid. Aos 15 anos, emigrou com quatro irmãos e foi, durante 11 anos, cozinheira na casa particular de Leopoldo Calvo-Sotelo y Bustelo, ex-presidente do governo espanhol entre 1981 e 1982. Foi também na capital vizinha que tirou o curso de ?cabeleireira, para concretizar “um sonho de pequena”.

Regressou a Portugal há 12 anos e montou um salão no centro de Miranda do Douro. Porém, um aborrecimento com o senhorio ditaria o fim do negócio. Determinada, lembrou-se de criar um cabeleireiro ambulante e só ficou um mês em casa até comprar a carrinha em segunda-mão e entregá-la a uma autotransformadora, que a modificou por dentro e a legalizou: “Um investimento de cerca de 50 mil euros.” Agora anda numa roda-viva para fidelizar as clientes e conseguir ir, pelo menos uma vez por mês, a cada uma das trinta freguesias dos concelhos de Miranda do Douro e de Mogadouro.

João Rodrigues – trata idosos que nunca tinham ido ao dentista

É na missa dominical que o padre António Neto anuncia a vinda do consultório ambulante ao Estreito, aldeia a 14 km de Oleiros. Na clínica dentária JR Dental, cujo conta-quilómetros começou a funcionar há quatro meses nos concelhos de Castelo Branco, Oleiros, Idanha-a-Nova e Vila Velha de Ródão, uma equipa com médico dentista, assistente e técnico de prótese dentária trata cáries, faz desvitalizações e muda placas. Apesar de não faltar trabalho na clínica montada em Castelo Branco, João Rodrigues, 36 anos, quis levar os tratamentos às aldeias. O técnico de prótese dentária reconhece que a cidade vive muito das aldeias em redor. Mas, “como os transportes públicos entre freguesias não é bom, as pessoas vão cada vez menos à cidade”, constatou. Como “não seria sustentável ter um consultório em cada uma destas povoações”, a solução encontrada foi a criação de um gabinete ambulante.

É à tomada elétrica da Junta de Freguesia do Estreito que o condutor liga a ficha da autocaravana, assim que chega. Numa das zonas mais carenciadas do País no acesso à medicina dentária, há pessoas com mais de 70 anos que nunca foram ao dentista na vida. “Noventa por cento dos nossos pacientes são idosos que fizeram a sua primeira prótese há pouco tempo”, conta João Rodrigues.

Desta vez, Adelaide Dias, 87 anos, veio desvitalizar mais um dente. Trabalhadora no campo, onde semeava milho e batatas, tecendo tapetes, toalhas e mantas em casa, nunca tinha ido ao dentista antes de a carrinha parar no Estreito.

Com a agenda preenchida, o médico dentista brasileiro Paulo Bacalhau, 34 anos, ainda consegue encaixar algumas urgências. A Acácio Almeida, 78 anos, dói-lhe um dos poucos dentes que lhe restam. Apesar dos comprimidos que tomou para as dores, elas persistiam. Na consulta foi preciso extrair o tal dente e uma outra raiz. De saída leva uma receita para aviar na farmácia: um antibiótico e um anti-inflamatório. A próxima consulta fica marcada para daí a duas semanas.

Às sextas-feiras, a viagem faz-se até à vizinha aldeia de Monsanto, onde são atendidas cerca de vinte pessoas, incluindo alguns estrangeiros, também já idosos. É o suficiente para manter o negócio sobre rodas e para provar que valeu a pena a ousadia de olhar para os clientes com mobilidade reduzida, reinterpretando o velho ditado: “Se Maomé não vai à montanha, vai a montanha a Maomé.”

GNR Alerta para os perigos dos contos do vigário… e da Internet JOÃO SILVA – BARBEIRO DA VILA Faz barba e cabelo em 15 aldeias do Alentejo SÉRGIO COELHO – PIZZA DA SERRA Faz nascer a tradição da pizza na serra algarvia ADORINDA BERNARDO – CABELEIREIRA Quer fazer ‘brushings’ às transmontanas JOÃO RODRIGUES – JR DENTAL Trata idosos que nunca tinham ido ao dentista

O que têm em comum um barbeiro em Beja, um dentista em Castelo Branco, uma cabeleireira em Miranda do Douro, um posto de polícia em Évora ou um pizzaiolo em Messines? Todos, com carrinhas adaptadas às suas profissões, percorrem várias aldeias portuguesas, em busca de clientes. Para as populações envelhecidas do Interior, na sua maioria sem transportes acessíveis para as cidades, a chegada destes serviços sobre rodas é sempre um acontecimento

João Silva – Faz barba e cabelo em 15 aldeias Do Alentejo

Estranharam o atraso de quase uma hora. Não é costume, mas os sete primeiros clientes não arredaram pé da porta da Sociedade Columbófila Asas Alentejanas, em Beringel. João Silva, conhecido por Barbeiro da Vila, sabe que o segredo do seu negócio ambulante é a lealdade. “Apareço sempre.” Se houver algum imprevisto, telefona para o café a avisar. Esta atenção ao cliente é tão importante como o acessível preço dos seus cortes de cabelo: 5 euros. Desta vez, a culpa do atraso foi a nossa sessão fotográfica, seguida de uma paragem no restaurante A Hortinha, onde, depois de almoçar umas pataniscas de bacalhau estaladiças com um arroz de tomate malandrinho, ainda cortou o cabelo do cozinheiro Ricardo Horta. “Quer a patilha assim ou mais subida?”, pergunta, antes de zarpar para o largo da igreja.

A passagem da carrinha branca transformada em barbearia é sempre motivo de conversa naquela aldeia alentejana. “Por vezes, vou na estrada que liga Santa Vitória a Beringel e outros condutores fazem-me sinais de luzes. A princípio, pensava que poderia ser algum problema com a carrinha… Mas querem é um corte de cabelo na hora. Estaciono na bomba de gasolina mais próxima e o problema resolve-se.”

Aprender com o pai

João Silva, 49 anos, voltou à aldeia de Faro do Alentejo há oito anos, depois de uma vida em Palmela, a trabalhar na empresa do sogro, ligada à transformação de mármore. Nada fazia prever que iria ficar com os clientes da barbearia do pai, estabelecido na sua terra natal, mas essa foi a saída lógica quando a fábrica onde trabalhava abriu falência.

Em 2010, percebeu que a clientela fixa naquela zona desertificada do concelho de Cuba era insuficiente e pensou: “Bom, bom era conseguir 30 a 40 clientes em cada aldeia.” Começou à procura de uma carrinha que pudesse ser transformada por dentro e, nove meses depois, já tinha sala de espera, casa de banho, lavatório e cadeira com espelho. Com um painel solar conseguiu autonomia para as luzes, bomba de água e degrau elevatório. Como carrega as baterias das máquinas em casa, quase não precisa de eletricidade para trabalhar.

Dois anos depois do arranque, a aposta parece ganha. O Barbeiro da Vila criou um calendário semestral com os dias em que passa pelas 15 aldeias dos concelhos de Beja, Mértola, Vidigueira e Faro do Alentejo e distribui-o nas juntas de freguesia, cafés centrais e aos clientes. “Já pensei numa frota de carrinhas, mas ainda não tenho capital suficiente. Só no final do ano recupero o investimento inicial, no valor de 45 mil euros.”

Barbeiro, confidente e músico

Enquanto aguardam a sua vez para se sentarem na cadeira do barbeiro, os septuagenários recordam o tempo em que Beringel tinha mais do que uma barbearia – e médico, cadeia, bombeiros, oleiros, banda filarmónica… -, lamentando o facto de, na última meia dúzia de anos, tudo ter fechado. “E um sapateiro também faz aqui falta”, acrescentam.

“Esta malta nova agora quer é poupas, parecem umas galinhas. No tempo do meu pai a tosquia era no sítio dos burros”, comenta Juvenal Pimentinha, 80 anos, recordando que aos 14 já andava na monda e ia buscar as galinhas à estrumeira. Carlos Amador ouve-o, divertido. Foi o único que numa tarde de inverno, que mais parecia de primavera, fez a barba à navalha com direito a creme hidratante no fim. Como tem diabetes, apressa-se a ir lanchar para manter os níveis de glicemia equilibrados. João Silva é o confidente de muitos destes homens. “Sei mais dos segredos das aldeias do que outras pessoas.”

A viola anda sempre na carrinha e, muitas vezes, toca umas “alentejanas” depois do serviço, enquanto come um petisco e dá dois dedos de conversa. “Como não bebo, é mesmo pelo convívio.”

GNR – alerta para os perigos ?dos contos do vigário… e da Internet

Com as aldeias portuguesas cada vez mais desertificadas, redobram-se os cuidados com os idosos. O posto móvel da GNR de Évora, na estrada desde dezembro passado, faz patrulhamento em 69 freguesias dos 14 concelhos do distrito. Em São Sebastião da Giesteira, a 15 km de Évora, associou-se à carrinha de acesso à internet da CIMAC – Comunidade Intermunicipal do Alentejo Central, e, lado a lado, passaram a manhã a alertar os moradores para os perigos a que estão expostos.

“A ideia é aproximarmo-nos da população para que nos ajudem a identificar problemas e os esquemas de burlas e contos do vigário. O mais comum é dizerem às pessoas que as notas foram descontinuadas pelo Banco de Portugal e que, se as trocarem agora, não perdem o dinheiro. Muitos ainda o guardam debaixo do colchão, no frigorífico, nos frascos dos feijões… Assim como nós sabemos, os bandidos também o sabem”, explica o tenente-coronel Rogério Copeto, oficial de Comunicação e Relações Públicas da GNR.

Os agentes pedem às pessoas para apontarem as matrículas dos carros suspeitos que andem a rondar a terra e para denunciarem casos de violência doméstica. “Como é um crime público, muitos familiares e vizinhos já metem a colher entre marido e mulher”, assegura o tenente-coronel.

Em frente a um dos portáteis, Jacinto Vaqueirinho, 67 anos, torneiro-mecânico aposentado, mostra ao militar as 1 200 amigas que tem no Facebook, na sua maioria latino-americanas. Rogério Copeto recorda-lhe a história da burlona em Bencatel, perto de Vila Viçosa, que drogava os homens para depois os roubar.

Sérgio Coelho – faz nascer a tradição da pizza na serra algarvia

Os velhotes da serra algarvia andam perdidos de amores pelas pizzas de Sérgio Coelho e Daniela Gomes. A roulotte da Pizza da Serra anda, há quase dois anos, a espalhar o cheirinho da massa estaladiça por Benafim, Tôr, Portela de Messines e Santa Margarida, entre o barrocal e a serra do Caldeirão.

Sérgio, 36 anos, é vendedor ambulante e tem licença para trabalhar no País todo. Mas se estacionar num terreno privado não há tanta burocracia para tratar e, como não vende bebidas, não faz concorrência ao ?comércio local – na verdade, ainda lhes arranja clientes. Jesuíno Guerreiro, 74 anos, apreciador do “panito de alho”, é o vizinho que lhe facilita a vida, autorizando o estacionamento da roulotte mesmo em frente ao portão da sua garagem, ao lado do café A Adega, na Portela de Messines. O pior é quando o senhor se atrasa, conta Sérgio. “Preciso de uma hora para aquecer o forno mas não posso montar o estaminé enquanto o carro dele não está na garagem.”

Para este pizzaiolo o negócio partilhado com a namorada só funciona graças ao espírito nómada do casal. Abrir um restaurante numa cidade estaria, garante, fora de questão. “Sou alérgico a cidades.”

O exemplo francês

Esta é a segunda vez que Sérgio Coelho, natural de Alte, tenta assentar arraiais em Portugal. Aos 8 anos acompanhou os pais numa aventura rumo aos Pirenéus franceses e regressou aos 19 para se tornar agricultor biológico nas terras da família. Apesar das boas condições climatéricas, o negócio não vingou. Seis anos mais tarde voltou a França para estudar Padaria, onde aprendeu a trabalhar a massa sem fermento, o que a torna mais leve e menos indigesta. Foi precisamente na Bretanha, numa roulotte em Quimper, que o português provou a que considera ser “a melhor pizza”, feita com vieiras, salmão e um molho branco (sem tomate). “Em França qualquer aldeia tem uma roulotte de pizzas estacionada, pelo menos uma vez por semana”, conta. “Em Marselha, por exemplo, há 50 lugares para pizzarias ambulantes e uma extensa lista de espera.”

Já passa das seis da tarde quando uma campainhada marca o início do serviço. De jaleca cinzenta empoeirada de farinha, Sérgio estica a massa com um rolo feito de oliveira, à medida que os pedidos caem. Em casa, Daniela, 26 anos, já preparou o molho de tomate, fatiou os cogumelos, as curgetes e as cebolas, e desfiou o peito de frango. É dela a autoria de uma das pizzas mais comidas, a Serra e Mar (atum, queijo de cabra, tomate fresco e cebola).

Tiago chega de cachecol do Benfica ao pescoço e quer levar para casa um pão de alho e uma Florestal (cogumelos, bacon e azeitonas). “O bom cliente é o que vem de 15 em 15 dias”, diz Sérgio, antes de atender o telemóvel com mais uma encomenda. Em alta voz toma nota de um pão de alho e de uma Vegetariana (tofu, cogumelos, curgete, pimento e cebola). Antes das sete e meia da tarde, ainda passa pela roulotte o fornecedor dos frescos; só o chouriço e o queijo de cabra são comprados aos produtores locais.

Lígia e Carlos Soares, donos da pizzaria Mamma Mia, no Pinhal Novo, vieram de propósito perceber o que é preciso para montar este negócio ambulante. “Queremos marcar presença em feiras e já temos o equipamento, só nos falta o meio de transporte”, explicam, enquanto provam uma pizza Algarvia (cogumelos, chouriço e pimento). Sérgio enumera as vantagens de usar uma roulotte. “Se o jipe falhar, posso puxá-la com outro carro; mas se o motor de uma carrinha avariar fico sem trabalhar uma série de dias”. Está decidido, Lígia e Carlos vão procurar uma roulotte usada.

Adorinda Bernardo – quer fazer ‘brushings’ ?às transmontanas

Há uma cabeleireira em Miranda do Douro que sabe muito bem o transtorno que é ter a carrinha avariada. Nos últimos três meses, parou durante 15 dias, com o gerador e a bomba de água estragados. Um infortúnio a juntar à recém-diagnosticada artrite reumatoide e a uma luxação na cervical que a obriga a descansar mais. Ainda assim, faz-se à estrada três vezes por semana.

Em Picote, a 16 km de Miranda do Douro, onde as amendoeiras já estão em flor e o rio serpenteia a paisagem, a tarde fria não afasta um grupo de senhoras que, pela primeira vez, vão experimentar o corte de Adorinda. Apesar dos preços acessíveis, entre os sete e os nove euros, gastar dinheiro num “brushing” não é habitual nestas aldeias.

A cliente mais nova da tarde, Idalina Louçano, 57 anos, trabalha como auxiliar no lar, onde fez o turno que terminou às oito da manhã. No salão ambulante encontra a sua vizinha Glória Moreira, 69 anos, e enquanto esperam, no sofá que as recebe à entrada da carrinha, põem a conversa em dia.

O vento está a soprar de feição, por isso é preciso reforçar a dose de laca. Com os homens, Adorinda não precisa destes retoques finais. Antes de ir cortar o cabelo a duas pessoas acamadas, reserva tempo para atender o senhor Miguel, um dos maiores produtores de nozes da região, que aos 90 anos está a receber formação à noite sobre produtos fitofarmacêuticos para saber comprá-los e aplicá-los nas suas vinhas – requisito obrigatório a partir do próximo outono.

As nove clientes foram todas cortar o cabelo; para já, continuam a lavar e secar em casa, e até a pintar os brancos. Com o tempo, pode ser que comecem a querer explorar outros serviços da carrinha de Adorinda, que está preparada para fazer qualquer trabalho técnico, como colorações, ondulações, madeixas, além de tirar o buço e as sobrancelhas com cera. No futuro, a cabeleireira sonha ter serviço de manicure e gabinete de estética.

A carrinha preta está estacionada mesmo ao lado da Igreja de São João Batista, que a antiga professora primária Fátima Lourenço, 72 anos, cruzava de marcha atrás quando já ia atrasada para a escola. E se antes costumava ir ao cabeleireiro em Sendim, agora “a disponibilidade de Adorinda é uma grande mais-valia”. Foi também nesta rua que Adília Preto, 73 anos, estranhou quando um dia, em janeiro, a cabeleireira andava para a frente e para trás com a carrinha, em repetitivos trajetos curtos, acompanhada de forasteiros. Percebeu tudo ao ver uma campanha publicitária da marca sueca Ikea, que transformou a transmontana de 37 anos numa estrela de televisão, promovendo as suas casas de banho.

Aquele largo da igreja tem sido central na vida de Adorinda. Aos 18 anos, quando conheceu o marido, na festa no primeiro fim de semana de agosto, não imaginava que haveria de estacionar o seu cabeleireiro junto à igreja, onde, no final da missa de domingo, Gonçalo Santos, presidente da Junta de Freguesia de Picote, faz o “conselho da aldeia”, e discute com os 200 habitantes as decisões dessa semana.

Na bagagem, Adorinda guarda, além de muita genica, a experiência de ter vivido em Madrid. Aos 15 anos, emigrou com quatro irmãos e foi, durante 11 anos, cozinheira na casa particular de Leopoldo Calvo-Sotelo y Bustelo, ex-presidente do governo espanhol entre 1981 e 1982. Foi também na capital vizinha que tirou o curso de ?cabeleireira, para concretizar “um sonho de pequena”.

Regressou a Portugal há 12 anos e montou um salão no centro de Miranda do Douro. Porém, um aborrecimento com o senhorio ditaria o fim do negócio. Determinada, lembrou-se de criar um cabeleireiro ambulante e só ficou um mês em casa até comprar a carrinha em segunda-mão e entregá-la a uma autotransformadora, que a modificou por dentro e a legalizou: “Um investimento de cerca de 50 mil euros.” Agora anda numa roda-viva para fidelizar as clientes e conseguir ir, pelo menos uma vez por mês, a cada uma das trinta freguesias dos concelhos de Miranda do Douro e de Mogadouro.

João Rodrigues – trata idosos que nunca tinham ido ao dentista

É na missa dominical que o padre António Neto anuncia a vinda do consultório ambulante ao Estreito, aldeia a 14 km de Oleiros. Na clínica dentária JR Dental, cujo conta-quilómetros começou a funcionar há quatro meses nos concelhos de Castelo Branco, Oleiros, Idanha-a-Nova e Vila Velha de Ródão, uma equipa com médico dentista, assistente e técnico de prótese dentária trata cáries, faz desvitalizações e muda placas. Apesar de não faltar trabalho na clínica montada em Castelo Branco, João Rodrigues, 36 anos, quis levar os tratamentos às aldeias. O técnico de prótese dentária reconhece que a cidade vive muito das aldeias em redor. Mas, “como os transportes públicos entre freguesias não é bom, as pessoas vão cada vez menos à cidade”, constatou. Como “não seria sustentável ter um consultório em cada uma destas povoações”, a solução encontrada foi a criação de um gabinete ambulante.

É à tomada elétrica da Junta de Freguesia do Estreito que o condutor liga a ficha da autocaravana, assim que chega. Numa das zonas mais carenciadas do País no acesso à medicina dentária, há pessoas com mais de 70 anos que nunca foram ao dentista na vida. “Noventa por cento dos nossos pacientes são idosos que fizeram a sua primeira prótese há pouco tempo”, conta João Rodrigues.

Desta vez, Adelaide Dias, 87 anos, veio desvitalizar mais um dente. Trabalhadora no campo, onde semeava milho e batatas, tecendo tapetes, toalhas e mantas em casa, nunca tinha ido ao dentista antes de a carrinha parar no Estreito.

Com a agenda preenchida, o médico dentista brasileiro Paulo Bacalhau, 34 anos, ainda consegue encaixar algumas urgências. A Acácio Almeida, 78 anos, dói-lhe um dos poucos dentes que lhe restam. Apesar dos comprimidos que tomou para as dores, elas persistiam. Na consulta foi preciso extrair o tal dente e uma outra raiz. De saída leva uma receita para aviar na farmácia: um antibiótico e um anti-inflamatório. A próxima consulta fica marcada para daí a duas semanas.

Às sextas-feiras, a viagem faz-se até à vizinha aldeia de Monsanto, onde são atendidas cerca de vinte pessoas, incluindo alguns estrangeiros, também já idosos. É o suficiente para manter o negócio sobre rodas e para provar que valeu a pena a ousadia de olhar para os clientes com mobilidade reduzida, reinterpretando o velho ditado: “Se Maomé não vai à montanha, vai a montanha a Maomé.”

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