A ortografia “sei lá”

23-09-2019
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A questão ortográfica não é suficientemente importante para que faça sentido uma corrida ao armamento, mas é demasiado importante para que qualquer pessoa se permita emitir opiniões, especialmente se não se informar minimamente. É demasiado importante por variadíssimas razões que incluem, entre outras, o peso da escrita na sociedade actual, as relações complexas entre ortografia e fala ou a importância de aspectos etimológicos (úteis para a compreensão das palavras e para a relação com outras línguas).

Maria João Marques (MJM), membro do blogue Insurgente, cultiva uma imagem de leviandade que confunde com humorismo (e já não é a primeira vez que me dou ao trabalho de comentar aquilo que escreveu, o que me mereceu a duvidosa glória de ter tido um texto comentado pela Paula Bobone). Agora, estende a sua leveza a uma coluna do Observador, o que é um direito que lhe assiste, evidentemente.

Recentemente, resolveu emitir a sua opinião sobre o chamado acordo ortográfico, num texto ligeirinho, como convém, que a silly season é quando uma pessoa quiser.

MJM começa por reduzir o problema do acordo ortográfico a uma questão de emoções. De um lado, está a cronista e a sua bonomia, incapaz de sentir “emoções fortes” no que respeita à ortografia; do outro, estaria uma série de gente que se limita as rasgar as vestes por ver a língua desonrada.

É verdade que há muita gente que critica o AO90 sem perceber bem porquê ou que parece acreditar que, com a sua aplicação, o país será invadido por tropas estrangeiras. Pois bem: não é por aí. Se a MJM se quisesse informar, poderia ler autores como Fernando Venâncio, António Emiliano, Francisco Miguel Valada ou Rui Miguel Duarte, entre outros. É verdade que, com alguma frequência, se mostram indignados, mas essa indignação é parente daqueloutra que, por exemplo, um cardiologista mostra, quando um paciente insiste em continuar a fumar.

Depois, MJM confessa que adoptou o AO90 porque, faltando-lhe a capacidade de síntese, pensou que seria boa ideia aproveitar a supressão de consoantes mudas, a fim de poder cumprir a limitação de caracteres imposta pelos jornais e pela universidade. Parece-me uma solução tão boa como qualquer outra e não me espantaria que a blogger/cronista passasse a exprimir-se em linguagem SMS, o que lhe permitiria ser ainda mais prolixa. Por outro lado, se algum dia estiver com défice de caracteres, basta-lhe recuperar uma ou outra consoante muda, à vontade da freguesa.

Não é por acaso que MJM acaba por defender uma ortografia self-service: “Por mim, usem, não usem, tanto me faz; leio ambas as grafias com bonomia. E vou continuar a usar alguns acentos que me fazem sentido.” O problema é que, tendo em conta a essência do tema, a ortografia não é uma questão pessoal, é um problema social: um sistema ortográfico mal concebido é prejudicial ao uso e à aprendizagem da língua. Curiosamente, MJM, mulher de direita, aproxima-se de Rui Tavares, outro defensor da leviandade ortográfica. Na defesa da simplificação como facilitadora da aprendizagem, está ao lado de Heloísa Apolónia, ó deuses!

Sempre imparável no disparate, MJM declara que não tem argumentos para “defender a imutabilidade da escrita”, algo que nunca vi defendido por nenhum crítico sério do AO90, porque deixaria de ser um crítico sério. Depois de mais algumas misturas indigestas, termina com o estafado argumento de que os portugueses, nisto da língua, devem sujeitar-se à maioria brasileira, porque é do lado de lá do Atlântico que está o “poderio económico e populacional”, ficando, como de costume, a faltar a demonstração das vantagens económicas deste ou de qualquer outro acordo ortográfico. Finalmente, ninguém de boa-fé está interessado em determinar língua nenhuma, do mesmo modo que um país, por ser pequeno, não tem de ser obrigatoriamente “pendura” de ninguém, especialmente se concluir que isso lhe é prejudicial, como acontece com a aplicação do AO90.

Nunca deixarei de me espantar com a leviandade com que as tribunas de opinião são usadas, porque são locais de autoridade: mesmo que não seja obrigatório ser-se sisudo, é necessário ser-se sério e estar informado. Assim, tudo o que se relacione com o uso e com a aprendizagem da língua não pode reduzir-se a simpatias ou antipatias, revolta ou bonomia, porque a Linguística e a Didáctica já existem há demasiados anos. Sem que isso ponha em causa o valor da criatividade pessoal, um sistema ortográfico não é “giro” nem “horrível” e não pode estar dependente do que me apetecer escrever, sei lá!

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A questão ortográfica não é suficientemente importante para que faça sentido uma corrida ao armamento, mas é demasiado importante para que qualquer pessoa se permita emitir opiniões, especialmente se não se informar minimamente. É demasiado importante por variadíssimas razões que incluem, entre outras, o peso da escrita na sociedade actual, as relações complexas entre ortografia e fala ou a importância de aspectos etimológicos (úteis para a compreensão das palavras e para a relação com outras línguas).

Maria João Marques (MJM), membro do blogue Insurgente, cultiva uma imagem de leviandade que confunde com humorismo (e já não é a primeira vez que me dou ao trabalho de comentar aquilo que escreveu, o que me mereceu a duvidosa glória de ter tido um texto comentado pela Paula Bobone). Agora, estende a sua leveza a uma coluna do Observador, o que é um direito que lhe assiste, evidentemente.

Recentemente, resolveu emitir a sua opinião sobre o chamado acordo ortográfico, num texto ligeirinho, como convém, que a silly season é quando uma pessoa quiser.

MJM começa por reduzir o problema do acordo ortográfico a uma questão de emoções. De um lado, está a cronista e a sua bonomia, incapaz de sentir “emoções fortes” no que respeita à ortografia; do outro, estaria uma série de gente que se limita as rasgar as vestes por ver a língua desonrada.

É verdade que há muita gente que critica o AO90 sem perceber bem porquê ou que parece acreditar que, com a sua aplicação, o país será invadido por tropas estrangeiras. Pois bem: não é por aí. Se a MJM se quisesse informar, poderia ler autores como Fernando Venâncio, António Emiliano, Francisco Miguel Valada ou Rui Miguel Duarte, entre outros. É verdade que, com alguma frequência, se mostram indignados, mas essa indignação é parente daqueloutra que, por exemplo, um cardiologista mostra, quando um paciente insiste em continuar a fumar.

Depois, MJM confessa que adoptou o AO90 porque, faltando-lhe a capacidade de síntese, pensou que seria boa ideia aproveitar a supressão de consoantes mudas, a fim de poder cumprir a limitação de caracteres imposta pelos jornais e pela universidade. Parece-me uma solução tão boa como qualquer outra e não me espantaria que a blogger/cronista passasse a exprimir-se em linguagem SMS, o que lhe permitiria ser ainda mais prolixa. Por outro lado, se algum dia estiver com défice de caracteres, basta-lhe recuperar uma ou outra consoante muda, à vontade da freguesa.

Não é por acaso que MJM acaba por defender uma ortografia self-service: “Por mim, usem, não usem, tanto me faz; leio ambas as grafias com bonomia. E vou continuar a usar alguns acentos que me fazem sentido.” O problema é que, tendo em conta a essência do tema, a ortografia não é uma questão pessoal, é um problema social: um sistema ortográfico mal concebido é prejudicial ao uso e à aprendizagem da língua. Curiosamente, MJM, mulher de direita, aproxima-se de Rui Tavares, outro defensor da leviandade ortográfica. Na defesa da simplificação como facilitadora da aprendizagem, está ao lado de Heloísa Apolónia, ó deuses!

Sempre imparável no disparate, MJM declara que não tem argumentos para “defender a imutabilidade da escrita”, algo que nunca vi defendido por nenhum crítico sério do AO90, porque deixaria de ser um crítico sério. Depois de mais algumas misturas indigestas, termina com o estafado argumento de que os portugueses, nisto da língua, devem sujeitar-se à maioria brasileira, porque é do lado de lá do Atlântico que está o “poderio económico e populacional”, ficando, como de costume, a faltar a demonstração das vantagens económicas deste ou de qualquer outro acordo ortográfico. Finalmente, ninguém de boa-fé está interessado em determinar língua nenhuma, do mesmo modo que um país, por ser pequeno, não tem de ser obrigatoriamente “pendura” de ninguém, especialmente se concluir que isso lhe é prejudicial, como acontece com a aplicação do AO90.

Nunca deixarei de me espantar com a leviandade com que as tribunas de opinião são usadas, porque são locais de autoridade: mesmo que não seja obrigatório ser-se sisudo, é necessário ser-se sério e estar informado. Assim, tudo o que se relacione com o uso e com a aprendizagem da língua não pode reduzir-se a simpatias ou antipatias, revolta ou bonomia, porque a Linguística e a Didáctica já existem há demasiados anos. Sem que isso ponha em causa o valor da criatividade pessoal, um sistema ortográfico não é “giro” nem “horrível” e não pode estar dependente do que me apetecer escrever, sei lá!

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