ATALANTE: Ossos

12-04-2019
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  (Portugal, 1997, Pedro Costa)

Em Casa de lava (1994), o anterior filme de Pedro Costa, ouvia-se da boca de um
cabo-verdiano em trânsito para Portugal uma frase aparentemente anódina, mas
que adquiria, de súbito, proporções quase trágicas: “Quero morrer em Sacavém”.
A frase, dita com o tom de quem fala de um sonho, era arrepiante, mas era
preciso estar cá, deste lado, para o perceber – por sabermos que a única coisa
que podíamos oferecer a quem sonhava assim era, bem pelo contrário, um
pesadelo. Ossos (1997), filme em que o Cabo Verde de Casa de lava faz raccord
com o miserável bairro das Fontainhas, nos arrabaldes de Lisboa, é o filme
desse pesadelo.

“Pesadelo”. A palavra é curta para descrever todo o alcance de Ossos, mas
suficiente para o arrancar, desde já, ao fardo representado por toda a gama de
“obrigações sociológicas” que alguns nele viram ou gostariam de ter visto. É
importante, para evitar mal-entendidos, que isto se esclareça: Ossos não é um
“documentário”, mas, antes, uma espécie de fábula, com não poucas alusões
mitológicas variadas, sobre um mundo fechado, mas sem centro, com tendência a
expandir-se para lá das suas fronteiras, num movimento que dilui e consome tudo
e todos à sua passagem. Ele é como uma doença, de alma e de corpo, que avança
insidiosamente até que percebemos que é tarde demais e que ela nos rodeia. Em
Ossos não há o conforto da distância nem é visível a linha que estabelece a
separação entre “nós” e “eles”: quando vemos, através das mulheres há dias, a
arrumação fria, higienizada e desalmada das “nossas” casas, percebemos, com um
arrepio, que a tangente se dissolveu e que é tudo o mesmo. Muito mais do que
uma estocada na má consciência burguesa, Ossos é um filme que
transforma o mundo numa parada de “zombies”, de “mortos em licença” – e o
“bairro” é, aqui, todo o mundo. Como afirmou Pedro Costa em entrevista à
revista francesa Les Inrockuptibles, “é como na Idade Média, tudo se torna uma
espécie de território que não começa pelo centro, mas pelo exterior, e começa a
avançar por contágio. No filme, há qualquer coisa de muito doente que começa a
invadir tudo (...); não há muita diferença entre os negros do bairro e os
brancos da média burguesia: é a mesma coisa, os mesmos gostos, as mesmas
ambições”. Ossos é o filme que obscurece o mundo para iluminar essa
equivalência.

 É por isso que, ao contrário de Casa de
lava, em que existia a personagem de Inês de Medeiros para nos guiar, em Ossos
estamos, desde o primeiro plano, absolutamente sós e absolutamente dentro – ao
contrário daquele filme, a identificação é aqui um ato forçado e incômodo. Uma
vez “dentro”, não se sai, transporta-se o bairro (e o “bairro” continua aqui a
ser metáfora de muita coisa) no corpo. Vê-se isso muito bem naquele espantoso
travelling em que Pedro Costa desafia todos os critérios formais que escolheu
para o filme e que mostra a caminhada de Nuno Vaz ao longo das intermináveis
fachadas do bairro: como se toda a duração do plano mais não fizesse do que pôr
em evidência que, quanto mais se anda, mais “dentro” se está. Não há fuga
possível, o bairro estende-se como se fosse móvel e, o que é mais grave, como
se operasse um poderoso efeito de sucção.

De resto, “sugada” é a personagem da enfermeira interpretada por Isabel Ruth:
desde o princípio uma personagem associada à “doença”, acabará por ser
totalmente conquistada por ela e para ela. Como se se tratasse de uma
verdadeira dissolução, no último plano em que aparece já não lhe vemos o corpo,
ouvimos-lhe apenas a voz; e numa confirmação da sua entrega, essa derradeira
cena da personagem deixa em elipse a sua cedência ao flirt movido pelo marido
de Clotilde.
Se há uma personagem que faz o movimento inverso é a do bebê, que anda de mãos
em mãos até ao momento em que é oferecido à personagem de Inês de Medeiros. É
possível resumir a narrativa de Ossos (ou pelo menos parte dela) a essa
permanente circulação do bebê, entre aqueles que o querem matar (a própria mãe)
e os que o querem salvar (o pai). No entanto, esse bebê é aqui sobretudo um
símbolo, espécie de “semente do mal” (é por isso que a mãe o quer matar) cuja
vida representa apenas a consumação ou a confirmação do avanço da “doença” –
quando Inês de Medeiros, personagem estranha ao bairro, aceita ficar com a
criança, percebemos que essa doença conquistou mais algum terreno.

Olhar desesperado sobre a existência humana (ou já pós-humana; foi o próprio
Pedro Costa quem falou das suas personagens e dos seus atores como “mutantes”),
que transforma homens e mulheres em seres subterrâneos, que por vezes fazem
lembrar o “povo das trevas” mostrado pela Múmia do egípcio Shadi Abd As Salam,
Ossos constrói, para isso, uma prodigiosa estrutura formal. Duas ou três coisas
fundamentais passam exclusivamente, ou quase, por ela: a ausência de
profundidade, como se o campo de visão estivesse permanentemente cortado e como
se isso fosse uma maneira de fazer sentir a sombra da morte a pairar; a
construção altamente elíptica, não só da narrativa, mas também de toda a
planificação, como se a comunicação entre ações e planos fosse algo de doloroso
e regido por regras secretas e clandestinas; e, finalmente, o som, um
fantástico trabalho de som, verdadeiramente uma mise-en-scène à parte, que
tanto cola à imagem como a abandona, que tanto a acaricia como a envolve para a
engolir – o som, em Ossos, é a morte a trabalhar nos interstícios.

Luis Miguel Oliveira
(Publicado originalmente por ocasião do evento Cinema - Uma escolha de Pedro
Costa e Rui Chafes, na Fundação Serralves, Porto, em janeiro de 2006. Retirado
do catálogo “O cinema de Pedro Costa”)

  (Portugal, 1997, Pedro Costa)

Em Casa de lava (1994), o anterior filme de Pedro Costa, ouvia-se da boca de um
cabo-verdiano em trânsito para Portugal uma frase aparentemente anódina, mas
que adquiria, de súbito, proporções quase trágicas: “Quero morrer em Sacavém”.
A frase, dita com o tom de quem fala de um sonho, era arrepiante, mas era
preciso estar cá, deste lado, para o perceber – por sabermos que a única coisa
que podíamos oferecer a quem sonhava assim era, bem pelo contrário, um
pesadelo. Ossos (1997), filme em que o Cabo Verde de Casa de lava faz raccord
com o miserável bairro das Fontainhas, nos arrabaldes de Lisboa, é o filme
desse pesadelo.

“Pesadelo”. A palavra é curta para descrever todo o alcance de Ossos, mas
suficiente para o arrancar, desde já, ao fardo representado por toda a gama de
“obrigações sociológicas” que alguns nele viram ou gostariam de ter visto. É
importante, para evitar mal-entendidos, que isto se esclareça: Ossos não é um
“documentário”, mas, antes, uma espécie de fábula, com não poucas alusões
mitológicas variadas, sobre um mundo fechado, mas sem centro, com tendência a
expandir-se para lá das suas fronteiras, num movimento que dilui e consome tudo
e todos à sua passagem. Ele é como uma doença, de alma e de corpo, que avança
insidiosamente até que percebemos que é tarde demais e que ela nos rodeia. Em
Ossos não há o conforto da distância nem é visível a linha que estabelece a
separação entre “nós” e “eles”: quando vemos, através das mulheres há dias, a
arrumação fria, higienizada e desalmada das “nossas” casas, percebemos, com um
arrepio, que a tangente se dissolveu e que é tudo o mesmo. Muito mais do que
uma estocada na má consciência burguesa, Ossos é um filme que
transforma o mundo numa parada de “zombies”, de “mortos em licença” – e o
“bairro” é, aqui, todo o mundo. Como afirmou Pedro Costa em entrevista à
revista francesa Les Inrockuptibles, “é como na Idade Média, tudo se torna uma
espécie de território que não começa pelo centro, mas pelo exterior, e começa a
avançar por contágio. No filme, há qualquer coisa de muito doente que começa a
invadir tudo (...); não há muita diferença entre os negros do bairro e os
brancos da média burguesia: é a mesma coisa, os mesmos gostos, as mesmas
ambições”. Ossos é o filme que obscurece o mundo para iluminar essa
equivalência.

 É por isso que, ao contrário de Casa de
lava, em que existia a personagem de Inês de Medeiros para nos guiar, em Ossos
estamos, desde o primeiro plano, absolutamente sós e absolutamente dentro – ao
contrário daquele filme, a identificação é aqui um ato forçado e incômodo. Uma
vez “dentro”, não se sai, transporta-se o bairro (e o “bairro” continua aqui a
ser metáfora de muita coisa) no corpo. Vê-se isso muito bem naquele espantoso
travelling em que Pedro Costa desafia todos os critérios formais que escolheu
para o filme e que mostra a caminhada de Nuno Vaz ao longo das intermináveis
fachadas do bairro: como se toda a duração do plano mais não fizesse do que pôr
em evidência que, quanto mais se anda, mais “dentro” se está. Não há fuga
possível, o bairro estende-se como se fosse móvel e, o que é mais grave, como
se operasse um poderoso efeito de sucção.

De resto, “sugada” é a personagem da enfermeira interpretada por Isabel Ruth:
desde o princípio uma personagem associada à “doença”, acabará por ser
totalmente conquistada por ela e para ela. Como se se tratasse de uma
verdadeira dissolução, no último plano em que aparece já não lhe vemos o corpo,
ouvimos-lhe apenas a voz; e numa confirmação da sua entrega, essa derradeira
cena da personagem deixa em elipse a sua cedência ao flirt movido pelo marido
de Clotilde.
Se há uma personagem que faz o movimento inverso é a do bebê, que anda de mãos
em mãos até ao momento em que é oferecido à personagem de Inês de Medeiros. É
possível resumir a narrativa de Ossos (ou pelo menos parte dela) a essa
permanente circulação do bebê, entre aqueles que o querem matar (a própria mãe)
e os que o querem salvar (o pai). No entanto, esse bebê é aqui sobretudo um
símbolo, espécie de “semente do mal” (é por isso que a mãe o quer matar) cuja
vida representa apenas a consumação ou a confirmação do avanço da “doença” –
quando Inês de Medeiros, personagem estranha ao bairro, aceita ficar com a
criança, percebemos que essa doença conquistou mais algum terreno.

Olhar desesperado sobre a existência humana (ou já pós-humana; foi o próprio
Pedro Costa quem falou das suas personagens e dos seus atores como “mutantes”),
que transforma homens e mulheres em seres subterrâneos, que por vezes fazem
lembrar o “povo das trevas” mostrado pela Múmia do egípcio Shadi Abd As Salam,
Ossos constrói, para isso, uma prodigiosa estrutura formal. Duas ou três coisas
fundamentais passam exclusivamente, ou quase, por ela: a ausência de
profundidade, como se o campo de visão estivesse permanentemente cortado e como
se isso fosse uma maneira de fazer sentir a sombra da morte a pairar; a
construção altamente elíptica, não só da narrativa, mas também de toda a
planificação, como se a comunicação entre ações e planos fosse algo de doloroso
e regido por regras secretas e clandestinas; e, finalmente, o som, um
fantástico trabalho de som, verdadeiramente uma mise-en-scène à parte, que
tanto cola à imagem como a abandona, que tanto a acaricia como a envolve para a
engolir – o som, em Ossos, é a morte a trabalhar nos interstícios.

Luis Miguel Oliveira
(Publicado originalmente por ocasião do evento Cinema - Uma escolha de Pedro
Costa e Rui Chafes, na Fundação Serralves, Porto, em janeiro de 2006. Retirado
do catálogo “O cinema de Pedro Costa”)

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