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14-03-2019
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Às
Avessas –
Vasco Pulido Valente

 

Assírio
& Alvim, Lisboa, 1990

 

 

 

 

 

 

O Autor

         Vasco Pulido Valente nasceu, segundo o
próprio, em 21 de Novembro de 1941[1].
Passados os devaneios de infância [2],
quis ser romancista (aos quatorze anos), cineasta (aos dezoito), revolucionário
(aos vinte), e por aí adiante, até querer “fazer
uma tese para granjear o apetitoso título de “doutor”” (aos vinte e sete) [3].
As opiniões dividem-se quanto ao modo como concretizou esse último desiderato: na
sua versão escrita, “em quatro anos de
ociosidade produzi[u], quase por
inadvertência, um livro” [4];  na sua versão oral, percebeu “a extensão aterrorizante da sua ignorância”
e “trabalhou como um cão” [5].

 “Aos
trinta e cinco anos, a meio do caminho da [...] vida, não era escritor, nem jornalista, nem académico.” [6]
Aos setenta e três, é do melhor que temos em tudo isso – já que a irmã, segundo
o próprio mais ilustrada e de melhor prosa [7],
foi conquistada pelo Brasil.

 

 

 

 

 

Também
pelo próprio, sabemos que aos vinte e dois anos se queria casar, “desse por onde desse” [8],
e que de facto se casou, aos vinte e três, com uma mulher “estarrecedoramente bonita” [9].
Por uma sua biografia não-autorizada – que tem, entre vários, o inconveniente
de ter sido vertida para português num programa de tradução automática –,
sabemos quase tudo o mais sobre as suas peripécias amorosas até 1976 [10].
Provando que a esperança é mais forte do que a experiência, depois dessa data
ainda celebrou matrimónio mais duas vezes – com a atenuante de o ter feito com
a mesma mulher [11].

 

 

         Em 1980 foi, por mero acaso [12],
Secretário de Estado da Cultura – durante dez meses (os do Governo AD chefiado
por Francisco Sá Carneiro), tempo que lhe chegou para, entre  o mais, fechar o S. Luís [13],
obter o terreno e o financiamento para a construção da Torre do Tombo, encomendar
o projecto e fazê-lo aprovar pela UNESCO [14].
Conseguiu, ainda, nomear o homem certo (o Dr. João Bénard da Costa) para um dos
seus múltiplos possíveis lugares certos (a Cinemateca Portuguesa). Sendo as
coisas, entre nós, o que são, é claro que isso o afastou definitivamente de
lugares executivos.

Ficou
com a fama de “telhudo” na primeira
candidatura presidencial de um seu ex-professor do Colégio Moderno, “diáfano e muito ausente em Caxias por razões
de força maior” [15]
(ver “Uma Aventura com o Dr. Mário Soares” [16]),
e foi apodado de Pulido, o Breve,
após uma equívoca passagem pelo Parlamento, em 1995.

Define-se
como um “historiador narrativo e,
portanto, um escritor” [17],
mas é aos quarenta anos de colunas jornalísticas que deve o grosso dos seus
inimigos [18],
mesmo que não o grosso da sua pública notoriedade: num evidente sintoma da
nossa inalterada iliteracia (não obstante os furiosos progressos das taxas
oficiais de alfabetismo), as “dezenas de
milhares de páginas que penosa ou alegremente ench[eu]”[19]
hão-de ter acumulado menos leitores do que o número de tele-espectadores de uma
única edição do já esquecido Jornal Nacional
de 6ª da TVI[20],
ou de uma das suas diversas caricaturas (que lhe glosam invariavelmente o
entaramelamento da fala e a desconexão dos gestos, e não deixam adivinhar o
rigor da escrita – no que reedita a dupla personalidade discursiva de um outro
nome ímpar, posto que mais secreto, da ciência portuguesa: o Prof. Manuel de
Andrade[21]).

 

 

O Género

         Num País em que a imprensa é estreita
em títulos e parca em edições, o comentário, pelo menos desde os alvores da
Primavera marcelista, medrou desproporcionadamente. Em consequência, como Vasco
Pulido Valente já tinha assinalado em 1984, “Cérebros, cuja quietude jamais aragem perturbou, escrevem, portanto,
colunas. Escrevem, ou seja, põem frases à frente de frases, em que é preciso
penetrar com diabólica paciência e uma cevadeira mecânica.”[22]
(E providenciou a prosaica razão: “Os
jornais, pagando pouco, vão enchendo espaço.”[23])
Um efeito secundário dessa infausta acumulação de textos opinativos – e da Lei
de Lavoisier – foi a sua inevitável encadernação em série: tirando o dr. Paulo
Portas (pela muito elementar prudência de evitar o embaraço de submeter a sua próspera
prática política à comparação com as suas anteriores proclamações
jornalísticas), não há praticamente escriba algum que prescinda da exumação dos
seus textos jornalísticos para o cerimonial embalsamento em livro.
Naturalmente, se a qualidade dos textos pode piorar ao longo do processo (pela
perda das referências à actualidade, por exemplo), dificilmente pode melhorar.
Donde resulta que os produtos acabados dessa idiossincrasia nacional vão do
frequente péssimo ao razoável ocasional – exactamente como a sua matéria-prima:
“Perpetrou-se (e continua a perpetrar-se)
muita da mais deprimente prosa portuguesa com esses pretextos.”[24]
Em casos distintamente raros (Nuno Brederode Santos, João Bénard da Costa e
Vasco Pulido Valente – e A. B. Kotter, para quem entenda que A. B. Kotter professava
opinião), porém, há requinte na forma e inteligência no conteúdo – e, em
consequência, chega a haver colectâneas indispensáveis.

         A propósito de uma significativa
disparidade de temas[25]
(artificialmente reduzida pelos critérios de selecção adoptados em cada
colectânea), Vasco Pulido Valente olha
para as causas e vê as conclusões. Nalguns casos, nem as primeiras eram
evidentes; noutros, as segundas eram, a bem dizer, imperceptíveis; por vezes o
que faltava era a compreensão que só pode resultar do estudo “do princípio ao fim, com alguma ordem e
alguma minúcia”[26];
outras vezes, sabiam-se as causas e as consequências, e o enquadramento não era
desconhecido – mas, como nos estereogramas, eram precisas instruções para se
poder ver. Na generalidade dos casos,
(re)lê-lo é ter a sensação de perceber melhor o mundo. 

 

 

 

 

 

 

No
Prefácio a O País das Maravilhas, a
primeira (e tardia) recolha dos artigos que publicou na imprensa (entre
Fevereiro de 1974 e Setembro de 1979), Vasco Pulido Valente confessou, com a
sua proverbial franqueza, que o livro “não
[tinha] de se envergonhar ao pé dos
grandes clássicos do género, “As Farpas”, ou “Uma Campanha Alegre” ou as
“Cartas Políticas” de João Chagas. Antes pelo contrário.”[27]
Qualquer réstea de cepticismo que porventura se alimentasse sobre a comparação
evaporar-se-ia necessariamente na presença de Retratos e Auto-Retratos (1992), de Esta Ditosa Pátria (1997) e, sobretudo, de Às Avessas (1990). Qualquer deles, posto que com a desvantagem de
vir assaz desbastado de origem (bem como o recente “Portugal - Ensaios de História e de Política” (2009) – sobre o qual
disse “Olhem, isto são as coisas que eu
acho que escrevi de relevante sobre Portugal.”[28]),
tem tudo o que é preciso para entrar num hipotético cânone de leituras de um
tempo em que, com o alto patrocínio do Ministério da Educação, tudo se lê –
menos isso.

 

 

 

O Título

Às Avessas
recolhe artigos que – como mais miudamente se dirá à frente – Vasco Pulido
Valente assinou entre 1982 e Setembro de 1989. Foi também um dos títulos da sua
página n’ O Independente[29].
Esse semanário, que depois se esvaiu até à irrelevância e ao fecho (em 2006),
foi o contraponto crítico da década cavaquista (1987-1997) e, durante esse
período, a maior reunião de talentos da opinião portuguesa. Regressando-lhe agora
de chofre, como leitor, é pavoroso constatar, por contraste, o quanto, na
última década, se banalizou e degradou a imprensa – mas, pior ainda, o quanto
isso nos foi imperceptível. Como o sapo que acaba cozido, não percebemos as
alterações discretas do nosso habitat.

 

 

 

 

 

 

 

O Estilo

O
“estilo” de Vasco Pulido Valente cobre a totalidade do espectro – da mais
desarmante seriedade ao mais delirante sarcasmo.  De facto, para ele,  “o
estilo é um instrumento; é adequado ou não é adequado.”[30]
E mesmo quando podemos discordar dos seus pressupostos, dos seus juízos de
valor, das suas conclusões – nalguns casos, até da sua pontuação – nada há a
apontar a um estilo que, em reverse
engeneering, parece destilável numa
fórmula (frases curtas; adjectivos inesperados ou em cambiantes próximas; generoso
uso de advérbios; repetição de palavras na mesma frase; léxico aditivado; interrogações
retóricas; pródiga distribuição de insultos e sarcasmos) e num método (concretizações miúdas a seguir às teses gerais;
opiniões iconoclásticas;  e, sobretudo,
humor acerado).

Leiam-se
os esforçados pastiches do seu estilo
“pimpão e encaracolado”[31]
(poucos, e só os do João Pereira Coutinho bons) e lá está, em roda baixa, o
mesmo programa. O que nenhum evidentemente percebeu é que “o estilo (...) é a
pertinência”[32],
e que a pertinência resulta da adequação entre forma e conteúdo. Há coisas
sobre as quais Vasco Pulido Valente escreve sem sombra de distância, e eles,
compenetrados, nunca dispensam a mecânica da encenação; há ecos de leituras que
ele tem e aos epígonos faltam; e, claro, carecem do fine tuning do tom: aos
trinta não se pode escrever como aos cinquenta, porque o que em certa idade soa
a experiência, antes, soa a presunção. De resto, o próprio se encarregou de
explicar “o carácter intrinsecamente
ridículo do imitador”[33],
por melhor que seja: “O imitador não tem
e, por definição, não pode ter dignidade. Não é: finge; e finge o que não
é.” [34]

 

 

 

 

 

A Obra

Enquanto
historiador narrativo[35],
Vasco Pulido Valente invoca a figura tutelar de Oliveira Martins e,
modestamente, remete-se para um lugar secundário – o mesmo que, quando anunciei
a minha escolha, um “esquerdista excitado”
logo se aprestou a esclarecer, em meu benefício e dos circunstantes, que era o
que lhe devia caber.  Sobre isso não
opino, porque cabendo-me escolher uma obra,
a minha escolha não foi essa – foi a “colectânea perfeita” do comentador
(essencialmente político) e pela mais óbvia das razões: nesse domínio não há
ninguém, entre nós, acima (ou sequer ao lado) de Vasco Pulido Valente; não
houve; nem é provável que venha a haver. Afinal convém não alimentar ilusões
sobre a educação que é prodigalizada aos indígenas, nem sobre as qualidades da
raça: para o igualar seriam necessários aplicação
e método; argúcia e cultura; talento e trabalho; e, o que não é o menos
importante num universo exíguo, aristocrática indiferença à mais perfunctória
análise de custo-benefício do empreendimento e aos custos pessoais dos
resultados do seu labor – ou, o que é o mesmo, coragem como virtude e franqueza
como princípio. Cada um dos requisitos é um fosso, que de ano para ano se
alarga; o conjunto é, claro, um abismo.

Sendo
várias as antologias de artigos do A., a preferência por esta não é arbitrária
– do que só o eventual leitor integral, se ainda o há, se aperceberá. Às Avessas reúne sessenta e um artigos[36],
publicados – entre 1982 (dois) e 1989 (dezasseis)[37]
– n’ O Independente (trinta e dois),
no Diário de Notícias (treze), na Grande Reportagem (dez), no Semanário (cinco) e n’ A Tarde (um). Estão distribuídos por
quatro áreas temáticas, em larga medida sobrepostas: Livros e Autobiografias (dezasseis); O País das Maravilhas (dezasseis); Liberdades e Democracias (dez); e Política à Portuguesa (dezanove).

Comecemos
pelo fim. Nesta última, sob a designação histórica da defunta coluna do arq.
Saraiva no Expresso, vai o seu exacto
oposto: aquele era o mestre da exposição das evidências (agora já nem isso),
Vasco Pulido Valente é o mestre da exposição das essências por detrás delas. Há
artigos sobre a remota natureza do Prof. Cavaco (cinco[38]),
sobre o substracto ontológico dos políticos (quatro[39]),
sobre os ociosos dilemas da esquerda (quatro[40]),
sobre os, à data, partidos da oposição (PS, PCP e CDS – um para cada[41]/[42]/[43]),
sobre a pandemia da corrupção (um[44]),
sobre a correlação – por vezes inversa – entre influência e poder (um[45])
e sobre a muito instrutiva história pátria (um[46]).

Voltemos
agora ao princípio: em Livros e
Autobiografias, Vasco Pulido Valente escreve sobre o seu peculiar percurso
de vida [47]/[48],
sobre os modernos padrões de conduta (para si[49]/[50],
e para as mulheres [51]),
sobre as inestimáveis vantagens de não ir de férias[52],
sobre o tépido e nada trepidante mundo da intriga internacional[53]
e sobre o triunfo da representação sobre o real [54].
Só por si, um sortido variado. E, naturalmente, escreve sobre um sortido não
menos variado de livros (O Romance da
Raposa, de Aquilino Ribeiro[55];
Céu Aberto, de Virgínia de Castro e
Almeida [56];
Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes[57];
A Morgadinha dos Canaviais e Os Fidalgos da Casa Mourisca, de Júlio
Diniz[58];
S. João Subiu ao Trono, de Carlos
Amaro[59];
As Encruzilhadas de Deus, de José
Régio[60];
As Farpas, de Ramalho Ortigão[61];
e Portugal Contemporâneo, de Oliveira
Martins[62]).

Em
O País das Maravilhas (como capítulo
de Às Avessas) há uma incursão pelas condições materiais
de produção romanesca – e a constatação da inata implausibilidade dos
portugueses como personagens de whodunits [63]
–, quatro artigos sobre a cultura
portuguesa – se é que, por atrevimento, existe [64]
–, um texto sobre a natureza profunda
dos políticos – e sobre as ladainhas que praticam [65]
–, dois ensaios sobre a doutrina da igreja
– em relação à família e ao seu aggiornamento [66]
–, quatro artigos sobre
especificidades exóticas da vida nacional – a lógica do subsídio[67],
a riqueza envergonhada[68],
a Faculdade de Direito de Lisboa[69],
e exemplos avulsos da tendência nacional para, à nossa volta, nada funcionar[70]
–, e nada menos do que três dissertações
sobre o eng. Roberto Carneiro e as suas proezas[71]
– um erro de avaliação, a exigir pronta adenda a anterior lista[72],
e, pior do que isso, uma pura perda de tempo[73].
E tem, a propósito do folclórico “caso Taveira”, uma rigorosíssima ponderação
do melhor critério de compatibilização do direito à intimidade privada com a
liberdade de imprensa e o interesse público[74]:

Os
políticos do século XVIII e do século XIX não precisavam de ocultar as
bebedeiras, os adultérios e as traficâncias. Mas precisavam de ocultar a
homossexualidade e a cobardia. Os políticos contemporâneos precisam de ocultar
tudo isso e muito mais. No fundo, porém, a situação é a mesma. Em nenhum regime
representativo o eleitorado admite que os políticos ignorem os limites da sua
“moral”. Ora um político obrigado a viver uma vida clandestina constitui um
perigo público, porque se torna vulnerável à chantagem. O seu direito à
privacidade não pode, assim, ser igual ao de uma pessoa privada. O direito à
privacidade de nenhuma pessoa pública pode ser igual ao de uma pessoa privada
porque a única garantia da sua independência é o escrutínio livre e permanente de
todos os seus actos , sejam eles de que natureza forem.  

 

 

Por
último, Liberdades e Democracias trata,
pode dizer-se, das grandes potências:
há artigos sobre os costumes americanos (três), sobre a política soviética
(três), sobre os efeitos da Iª Grande Guerra na mutação do Estado (um), sobre os
Jogos Olímpicos (um), sobre a dissolução dos impérios (um) e, last but not the least, sobre um  “intelectual” português típico.

 A propósito da “longa história de pobreza de espírito e fanatismos vários”[75]
do dr. Eduardo Prado Coelho (era ele o “intelectual”, mimoseado com a
costumada minúcia), seria desnecessário ao A. elaborar se houvesse algum
critério socialmente aceite para perceber “a
diferença entre falar fluentemente sobre um assunto e falar informadamente sobre
um assunto”[76]. Como
não havia, nem há, lá está o artigo.

Sobre
as nefastas consequências dos nacionalismos eslavos – ou, mais genericamente, sobre
os efeitos perversos das justas
aspirações de emancipação do jugo imperial – dá-nos o A. uma lição de história[77],
susceptível de ser replicada por nossa conta, mutatis mutandis, em outros tempos e coordenadas geográficas.

Efeito
muito mais perverso foi o da génese democrática, por exemplo, do nazismo: “A guilhotina e o campo de concentração foram
sempre o destino da democracia pura, isto é, da vontade maioritária que não
encontra, ou não admite, obstáculos e se acha legitimada pelo facto da sua
própria existência.”[78]
 

Efeito
perverso foi também o que transformou os Jogos de Pierre de Coubertin na actual
Feira dos Horrores[79],
fazendo-os regressar, de certo modo, à sua matriz original. Mesmo deixando de
lado as subtilezas do que neles é ilícito
(vg: uma qualquer substância
artificial) e lícito (vg: as auto-transfusões de sangue
sobre-oxigenado), a reflexão informada sobre a sucessão de ideais olímpicos e
as suas circunstâncias propiciatórias dá outra perspectiva à bissexta e
fascinada contabilidade tri-metálica.

Sobre
os assuntos do Império, talvez o assunto a propósito do qual Vasco Pulido
Valente mais vezes se enganou[80],
três artigos[81]
pecam por excesso e por defeito: por defeito, porque, mesmo com o talento de
Tocqueville, para descrever as oscilações do melting pot, a extensão
de A Democracia na América já não chegaria. Por excesso, porque, não
podendo acompanhar as infindáveis e divergentes linhas evolutivas, quaisquer
que se sigam levam ao engano.

Sobra
(e não sobra pouco) o tratamento da – à altura aparentemente perene, mas já
então moribunda – URSS. O melhor é transcrever o que lá está escrito e datado. À luz do que hoje sabemos, qualquer
céptico sobre a relevância da minha escolha ou sobre os juízos que a suportam, plácido
ou excitado, esquerdista ou não, pode comparar com o que por essa altura andava
a publicar – se é que por essa altura andava publicar. Se então não percebeu o
que se estava a passar à sua volta, nem sequer tem de se lamentar: dando-se ao
maior esforço de reler o que sobre o evoluir da perestroika se escreveu contemporaneamente na imprensa mundial de
referência, não vai encontrar nada de semelhante. Em 15 de Setembro de 1989 (repito:
Setembro de 1989), escrevia Vasco
Pulido Valente:

O
Estado russo, centralizado, burocrático e despótico, não era, como supunha
Marx, uma, simples aberração oriental. Nem, como supunha Lenine, o aparelho
repressivo da classe dominante. Era um instrumento indispensável para sufocar
as aspirações nacionalistas. Depois da revolução, Lenine imaginou que a
solidariedade “operária”, ecuménica por natureza, anularia as tendências
centrífugas. A ilusão não persistiu. A organização política e administrativa do
novo regime copiou e reforçou a do antigo. As boas almas do Ocidente costumam
rir-se da ineficácia do Estado comunista, como outrora se riam da ineficácia do
Estado dos Czars. Ora, pelo contrário, esse Estado foi eficacíssimo. Foi um
autêntico prodígio político. Sem dúvida que nada contribuiu para enriquecer e
libertar os povos do império. Mas também não exista para isso. Existia para
conservar o império indiviso e para o acrescentar e defender de ameaças
externas. O Estado comunista resistiu a uma guerra de extermínio, subordinou a
si a Europa Central e, vingando cem anos de humilhações, acabou por se tornar
numa das DUAS maiores potências militares do mundo. Nicolau I teria chorado de
emoção nos braços paternais de Estaline.

(...)

Como Alexandre II,  Gorbachov  encontrou obstáculos políticos irremovíveis.
Planeava “reestruturar” a URSS, injectando-lhe um módico de “liberdade“.
Acontece que essa “liberdade” enfraqueceu o Estado e acordou os nacionalismos.
Em vez de uma “reestruturação” racional e ordeira, o resultado foi o perigo
iminente da “desintegração da república”. Na economia, a perestroika falhou. Na sociedade, deixou as coisas na
mesma. Mas pôs em causa o único valor subsistente numa época de vexame e
derrotas, a santa integridade do império. A Ucrânia tem 51 milhões de
habitantes e é a região mais desenvolvida da URSS. Hoje não se vive melhor na
Ucrânia do que se vivia nos ominosos tempos de Brejnev e apareceu por lá uma
frente popular, que apoia a perestroika
e pede, em comícios, a independência.

    Gorbachov
não vai durar muito. Adeus, Gorbachov! [82]

Como
líder, Gorbachov pouco mais resistiu:
com um golpe militar pelo meio e sem poder efectivo depois dele, só até
à véspera da dissolução da URSS, em 26 de Dezembro de 1991 – depois de ter
assistido, impotente, à declaração unilateral da independência das anteriores
Repúblicas Soviéticas.

Em
16 de Junho de 1989 (repito: Junho de
1989), Vasco Pulido Valente já tinha avisado que “a consequência fatal da democracia* da Polónia e da Hungria seria a
democratização da Alemanha de Leste e a fatal consequência disso a reunificação
alemã.”[83]
Num artigo de 13 de Outubro de 1989 n’ O
Independente (repito: de Outubro de
1989), que não reproduziu em livro[84]
(“O problema alemão”), teve ocasião de explicar essa sua ideia:

A Alemanha de Leste não
é como a Hungria ou a Polónia um estado nacional, é um estado ideológico, cuja
legitimidade deriva apenas dos princípios marxistas-leninistas em que
supostamente se funda. Qualquer perestroika por diluída que seja, se arrisca a pôr em
causa esses princípios e fatalmente a dissolver o Estado. Se a Alemanha de
Leste tolerasse “reformas”como as da Polónia ou da Hungria, e mesmo como as da
URSS, não durava muito. Cada “reforma” a iria aproximando da Alemanha Federal
e, como se compreenderá, não há sentido algum na separação entre uma Alemanha
democrática e capitalista e outra Alemanha em transe de reestabelecer as
liberdades e o mercado. A RDA não tem espaço para compromisso: ou não muda
rigorosamente nada, ou se une à República Federal.

Como
todos sabemos, o Muro de Berlim caiu na noite de 9 de Novembro de 1989, um mês
depois a Cimeira da CEE aprovou o princípio da reunificação alemã, as conversações para essa reunificação
começaram depois de Março de 1990 (após as primeiras eleições livres na RDA),
e a incorporação desta na RFA teve efeito em 3 de Outubro desse ano, nos termos
do Tratado de Unificação de 31 de Agosto.

Antes,
em 31 de Março de 1989 (repito: Março de
1989), não apenas sobre a evolução da URSS mas também sobre a de outros
dois países, já Vasco Pulido Valente traçara o mapa do futuro:   

A
semana passada houve um simulacro de eleições na URSS. Mas desta vez com
candidatos concorrentes, voto secreto, vitória de alguns “oposicionistas” e
outros ornamentos da coisa genuína, que sem serem decisivos dão às pessoas um
gostinho antecipatório. Na aparência, as democracias ocidentais estão felizes
com a “liberalização” russa, popularmente denominada perestroika; e felicíssimas com a liberalização mais
séria e mais profunda da Hungria e a da Polónia. Isto só serve para mostrar
como a memória humana é curta e longa a estupidez dos homens. Segundo a tese
oficial dos “especialistas” americanos, provavelmente filhos dos que inventaram
a guerra do Vietnam, a perestroika
vai trazer muita paz e muita segurança ao mundo. Se não parar, depressa e à
bruta, vai trazer com certeza o contrário.

(...)

Sucede
todavia que em algumas matérias não existe meio-termo: não se pode estar um
bocadinho grávido e não se pode ser um bocadinho democrático. O poder não se
legitima com a encenação da democracia. A encenação da democracia tem um único
efeito garantido: o de levar directamente à exigência da verdadeira democracia.
Nenhum outro.

Ora,
se uma bela manhã, os habitantes da URSS acordarem soberanos, como não são um
povo, mas vários, hão-de querer imediatamente sair da URSS. Até porque quase
sempre detestam os vizinhos, as suas próprias minorias e sobretudo o povo
imperial, o russo, que os oprime e explora com requintes de barbaridade, desde
os santos czares. A URSS democrática é uma impossibilidade política: ou é a
URSS e não é democrática; ou é um caos de nações independentes, condenadas ao
conflito externo e à tirania interna. Viu-se já um pequeno ensaio disto no
episódio edificante da província arménia, que a Arménia e o Azerbeijão
disputam, e na nítida tendência cisionista das repúblicas Bálticas. A
vigiadíssima liberdade da perestroika não melhorou evidentemente a economia soviética (longe disso), mas, como
era lógico, desencadeou na URSS inteira a mais cega e destrutiva das paixões, o
nacionalismo.

(...)

Existem
igualmente na região dois estados, a Jugoslávia e a Checoslováquia, que, sendo
artificiais desde a origem, não suportam qualquer espécie de democracia, por
muito que se invoque o (falso) exemplo da Checoslováquia dos anos 20 e 30.  Num e noutro caso, como amplamente demonstram
os presentes sarilhos jugoslavos, a perestroika significa, tarde ou cedo, a explosão do
Estado. Nem Deus sabes o que vai depois acontecer aos bocados.  

Provando
que em muitos casos a omnisciência divina é só uma questão de tempo, até nós,
agora, sabemos: a República Checa e a Eslováquia separaram-se pacificamente em
1 de Janeiro de 1993. Na Jugoslávia, foi necessária uma brutal guerra civil
(que ameaçou degenerar numa guerra internacional) e o tumultuoso regresso à
barbárie – com o genocídio de Srebrenica e uma série de (eufemisticamente
designadas) “limpezas étnicas” – para criar um punhado de estados[85].

É
certo: Vasco Pulido Valente voltou a ver o futuro, mas nunca com tanta
precisão. Mas, Deo Gratias, basta ler
a última página do Público do
fim-de-semana para perceber que nunca deixou de perceber o nosso presente.

                                                                                        Victor Calvete

 

 

 

[1] “Nós e
Eles – Esteiros, de Soeiro Pereira
Gomes”, Às Avessas, Assírio &
Alvim, Lisboa, 1990, p. 51. Doravante, a referência a um artigo sem indicação
da fonte remete para esta obra.

[2] “O Modo
da Vida”, Retratos e Auto-Retratos, Assírio
& Alvim, Lisboa, 1992, p. 43.

[3] “O Medo
– As Encruzilhadas de Deus de José
Régio”, p. 62.

[4]  “O Modo da Vida”, Retratos e Auto-Retratos, Assírio & Alvim, Lisboa, 1992, p. 49.

[5] Vasco
Pulido Valente em entrevista a Carlos Vaz Marques, Ler - Livros & Leitores, n.º 82, Julho de 2009, p. 42.

[6] “O Modo
da Vida”, Retratos e Auto-Retratos, Assírio
& Alvim, Lisboa, 1992, p. 51.

[7] “Má
educação”, Esta Ditosa Pátria,
Relógio d’Água, Lisboa, 1997, pp. 367-368.

[8] “O Medo
– As Encruzilhadas de Deus de José
Régio”, p. 62.

[9] “O Modo
da Vida”, Retratos e Auto-Retratos, Assírio
& Alvim, Lisboa, 1992, p. 47.

[10] Maria
Filomena Mónica, Bilhete de Identidade -
Memórias 1943-1976, Alêtheia, Lisboa, 2005.

[11]
Entrevista do Expresso, 17 de
Novembro de 2007.

[12] Vasco
Pulido Valente em entrevista a Maria João Seixas, Pública, 1 de Outubro
de 2000, p. 28. Se o convidado para o lugar não tivesse falhado à última hora,
teria sido Secretário de Estado Adjunto do Primeiro-Ministro, como previsto.

[13] Artigo
n’O Independente de 3 de Fevereiro de
1989, em que trocou a redacção da sua página (“Revisões”) por uma outra
(“Consolo Remoto”).

[14] Vasco
Pulido Valente em entrevista a Maria João Seixas, Pública, 1 de Outubro
de 2000, p. 30.

[15] “O Medo
– As Encruzilhadas de Deus de José
Régio”, p. 62.

[16]  Retratos
e Auto-Retratos, Assírio & Alvim, Lisboa, 1992, pp. 61-70.

[17] Vasco
Pulido Valente em entrevista a Carlos Vaz Marques, Ler - Livros & Leitores, n.º 82, Julho de 2009, p. 42.

[18]
Refiro-me aos que tomam Vasco Pulido Valente como inimigo – e que são muitos
mais do que supõe –, não aos que ele escolhe como tais: “Os inimigos são a minha essência e o meu abrigo. São a minha disciplina.
A minha disciplina consiste numa única
regra, grossa, básica, salvífica: não ser como eles. ” – “Eu Sempre Fui
assim: Auto-retrato aos 50 anos”,  Retratos e Auto-Retratos, Assírio &
Alvim, Lisboa, 1992, p. 20.

[19] Idem,
p. 21.

[20] Com a
substituição da pivot desse jornal, a
partir da sua edição de 4 de Setembro de 2009, Vasco Pulido Valente “voltou a
casa."

[21] A sua
explicação: “escrever (um ofício em que
me eduquei) é exactamente o contrário de falar. Quem fala improvisa; quem
escreve calcula, planeia, emenda, substitui. Os dois processos são contrários.
Pior, são incompatíveis.” “Voltar a Casa”, Público, 6 de Setembro de 2009.

[22]
“Influência e Poder”, p. 209. Ainda é assim: há certas coisas que nunca mudam.

[23]  Idem.

[24]  Idem.

[25]  A primeira obrigação dos “colunistas” ia,
parece, ao encontro da sua intrínseca natureza: “Ele sabia tudo o que havia a saber, ouvira toda a música que havia a
ouvir e dissertava sobre tudo o que havia a dissertar.” É claro que se tem
de se descontar o juízo, porque foi proferido – dessa vez com extrema exactidão
classificatória, diga-se – por “uma
menina loira”. (Maria Filomena Mónica, Bilhete
de Identidade – Memórias 1943-1976, p. 212).

[26]  “Desventuras de um autodidacta – As Farpas de Ramalho Ortigão”, p. 67.

[27]  O País
das Maravilhas, Intervenção, Lisboa, 1979, p.11.

[28]  Vasco Pulido Valente em entrevista a Carlos
Vaz Marques, Ler – Livros & Leitores,
n.º 82, Julho de 2009, p. 8. Há-de haver nisso muita modéstia, porque do volume
não consta nenhum dos inúmeros textos que dedicou, por exemplo, a Mário Soares
e a Cavaco Silva. E nem um nem o outro se entendem, fora da sua hagiografia,
sem ler o que sobre eles ele escreveu.

[29] A sua
colaboração nesse semanário iniciou-se no número 1 (de 20 de Maio de 1988) sob
o título genérico Revisões,
prosseguiu sem designação própria, e converteu-se depois ao título que foi
escolhido para a antologia. A partir de Abril de 1996, encerrada a série “O
mundo está perigoso”, adoptou outra marca
(Às Direitas). Na obra do A., Às Avessas remete, portanto, para dois
universos: o da série de artigos n’ O
Independente publicados sob essa designação (que não está aqui em causa), e
o dos artigos recolhidos no livro, anteriores e de diversa proveniência.

[30]  Vasco Pulido Valente em entrevista a Carlos
Vaz Marques, Ler – Livros & Leitores,
n.º 82, Julho de 2009, p. 39.

[31] “Éramos
assim absurdos em 1963”, p. 20.

[32] Vasco
Pulido Valente em entrevista a Carlos Vaz Marques, Ler – Livros & Leitores, n.º 82, Julho de 2009, p. 39.

[33]
“Modernos e “Modernizados””, p. 87.

[34] Idem. Vasco
Pulido Valente voltou ao assunto em entrevista a Carlos Vaz Marques, Ler – Livros & Leitores, n.º 82,
Julho de 2009, p. 39: “Se você começa a
escrever como o Hemingway faz sub-Hemingway. Se começar a fazer outra coisa
qualquer – um Gabriel Garcia Márquez – não faz nada de especial. Faz sub-Garcia
Márquez ou outra coisa qualquer que lhe passar pela cabeça.”

[35] Os
títulos maiores, entre edições originais e edições revistas, são As Duas Tácticas da Monarquia Perante a Revolução,
Dom Quixote, Lisboa, 1974; Estudos sobre
a crise nacional, INCM, Lisboa, 1980; Tentar
perceber, INCM, Lisboa, 1983; Os
“Devoristas” - A Revolução Liberal 1834-1836, Quetzal, Lisboa, 1993;  A
República Velha (1910-1917), gradiva, Lisboa, 1997; Os Militares e a Política (1820-1856), INCM, Lisboa, 1997; O Poder e o Povo, gradiva, Lisboa, 1999;
Glória, gótica, Lisboa, 2001; Marcello Caetano – As desventuras da razão,
gótica, Lisboa, 2002; Um Herói Português
- Henrique Paiva Couceiro (1861-1944), Alêtheia, Lisboa, 2006; Ir prò Maneta - A Revolta contra os
Franceses (1808), Alêtheia, Lisboa, 2007; e Portugal - Ensaios de História e de Política, Alêtheia, Lisboa,
2009. 

No seu Uma Educação Burguesa... Notas sobre a
ideologia do ensino no Século XIX, Livros Horizonte, Lisboa, 1974, há uma
bibliografia mais extensa. 

[36] Mais do
que em Retratos e Auto-Retratos (dezoito),
tematicamente homogéneo e com menos páginas, e menos do que em Esta Ditosa Pátria (oitenta e oito), com
mais páginas.

[37] De 1983
há apenas um artigo (o que é repetido em Portugal
– Ensaios de História e de Politica), de 1984 há doze, de 1985 oito (todos
publicados na Grande Reportagem), de
1986 volta a haver só um artigo, de 1987 há cinco e de 1988 dezasseis – ou
seja: mais de metade dos textos remonta aos últimos dois anos da série.

[38] “O
Mistério de Cavaco”, “Perder e Ganhar”, “Drama Cavaquiano”, “O Grande Mundo do
Dr. Cavaco”, e “Um “Marcellismo” Aflito” (que, no original, se intitulava
“Depois disto”) – pp. 218-239. Sobre o tema, é preferível não entrar em
pormenores.

[39] “O que
Está Dentro dos Políticos”, “Os Políticos e a História”, “O Busto de Napoleão”
e “Políticos e Jornalistas” – pp. 191-203 e 212-215. No primeiro artigo – que,
sendo sobre o Marechal Duque de Saldanha, podia, na essência, ser sobre o dr.
Mário Soares (embora, aparentemente, Vasco Pulido Valente não queira
reconhecê-lo) – estava a cartilha política dos vários salvadores da Pátria: “o país não podia dispensá-lo e não havia
melhores intenções do que as dele”, p. 193.

Apenas
outro exemplo: “Aos olhos inocentes dos
laicos, os políticos ocupam-se quase exclusivamente a enganar-se e a
enganar-nos, estando eles próprios, para nossa desgraça e desgraça deles,
enganados. Esta noção vulgar não é destituída de fundamento empírico, mas não
basta para explicar o mundo. Os políticos não vivem no mesmo lugar em que nós
vivemos, com as mesmas regras e os mesmos fins.” – p. 191.

[40] “Reflexões
Sobre a Esquerda”, “Porque é que a Esquerda Não Pode Governar”, “A Morte da
Esquerda” e “Onde Raio se Meteu a Teoria?”- pp. 240-255 e 266-269. Notando que
“a Esquerda procura angustiadamente uma
forma qualquer de salvação.”, e que “A
tragédia é que a sua salvação parece estar em abolir-se como Esquerda.”
(pp. 254-255), Vasco Pulido Valente antecipou o rumo do glorioso Sócrates, que
disfarçou como pôde em matéria de costumes.

[41] “CDS”,
pp. 216- 217. Sobre a agremiação e os seus líderes (pré-Manuel Monteiro, que
viria depois), escrevia: “Nunca ninguém o
levou a sério e até os seus chefes e fundadores se banharam sempre numa
peculiar irrealidade.

Eram de resto eminentemente simpáticos,
honestos, convictos, cumpridores. Via-se que tinham respeitado os pais, ido à
missa, sido castos, estudado muito e casado com meninas virgens; e que tinham
em casa filhos ranhosos e candeeiros dourados.” – p.
217.

[42]
“Catarina Eufémia Não Estava Grávida”, pp. 256-258. Como as Pirâmides, o PCP
nunca muda.

[43] “Como
“Abrir” o PS”, pp. 262-265. Custa a crer, mas o dr. Jaime Gama chegou a
disputar a liderança do PS. Custa a crer, mas foi com o dr. Jorge Sampaio.

Mas,
claro, isso foi antes dos tempos da inesquecível liderança do dr. Ferro
Rodrigues.

[44] “A Caça
a Cadilhe”, pp. 204-207. Vasco Pulido Valente notou o que, sendo óbvio, vai
escapando ao recorrente (e inócuo) debate público sobre a corrupção: nessa
altura, como agora, mas sobretudo agora, “em
Portugal a corrupção que pesa é legal:
legalíssimas compras ao Estado, legalíssimas vendas ao Estado, legalíssimos
contratos com o Estado, legalíssimos empréstimos, subsídios, operações
financeiras e autorizações.” – p. 205. A actualização da lista implicaria
hoje legalíssimas alterações da delimitação de áreas protegidas e, o que é o
cúmulo da desvergonha, legalíssimas leis de amnistia e legalíssimas alterações
ao Código Penal.

[45] “Influência
e Poder”, pp. 208-211. O A. lastimava o recrutamento governamental do dr.
Francisco Sousa Tavares: “Há, sabemos,
indivíduos cujo único prazer reside em lá estar. Nestas alturas, convém
vivamente deixá-los.” – p. 208. Mas também há casos em que daí resulta um
palpável benefício público: o dr. José Magalhães é um superveniente exemplo de
insuportável “influência” mediática, que a incorporação no Governo reduziu,
para descanso de todos, ao mais compenetrado silêncio.

[46] “O Sr.
Bispo de Viseu, o Zé Dias e o Caminho da Granja”, p. 259- 261. O que há de mais
significativo na história do Partido Reformista – em comparação com a do PRD,
por exemplo – é que foi logo apodado
de “estafermo”. Por Eça “(que percebeu
depressa a natureza da coisa)” – p. 261.

[47] “Éramos
Assim Absurdos em 1963”: é o único dos artigos antologiados em Às Avessas que o A. fez transitar para o
seu próprio cânone (tal como apresentado em Portugal
– Ensaios de História e de Politica). Nele se conserva a metáfora (de João
Bénard da Costa) de O Tempo e o Modo
como “piano geracional”.

[48]
“Confissões de um Camaleão”: “Em nenhuma
altura da minha vida acreditei em Deus ou na revolução e, sobretudo, não
acreditei primeiro em Deus e depois na revolução, como foi a regra dos últimos
trinta anos.” – p. 23.

[49] “Ser
sempre saudável e nunca morrer”: “Nada me
impede, senão a minha íntima perversidade de me conservar, já não digo tão
belo, mas tão radioso como Jane Fonda.” – p. 30.

[50] “A
obrigação de ser feliz”: “Envelheci aos
berros e aos urros, admito, mas com uma completa confiança teórica na natureza
maléfica do acontecimento em si.” – p. 33.

[51]
“Corações inconsoláveis ou a mulher libertada nos anos 80”: “Não falo da destruição ritual pelo fogo da
roupa interior mais associada à humilhante qualidade de mamífero da fêmea da
espécie. Este protesto contra vexames, que não sucedem, por exemplo, a uma rã,
com boa vontade, pode perceber-se.” – p. 37.

[52] “Não ir
de férias”: “Em Setembro ou Outubro, os
que “foram para férias”, “vêm de férias”: exaustos, irritados, sem um tostão.” –
p. 44.

[53]
“Espiões e Diplomatas”: “Fiquei
estupefacto. As conversas entre os Poderes do universo eram de uma trivialidade
assustadora.” – p. 26
[54] “Um dia
na vida de Eça de Queiroz”: “O seu
poder foi tão grande e a sua persuasão tão forte que, passados cem anos, se,
para nós, a província dos excessos e das paixões é talvez Camilo, Lisboa é
unicamente a lassidão, a mesquinhez e o ridículo da Lisboa de Eça. Havia outra,
a que ele entreviu a 30 de Março de 1867. Só que ninguém a escreveu. Ou quem a
escreveu, a escreveu mal: o que é o mesmo.” – p. 75.

[55] “A
Noção de Bem e de Mal”: “devo agradecer a
Aquilino ter-me deixado, depois do meu primeiro livro, sem a mais vaga noção de
bem e de mal.” – p. 47

[56] “O
Lugar do Saber”: “A incrível perenidade
deste romance medíocre, publicado entre 1906 e 1910, e que em 1960 guardava
ainda o seu lugar de excepção na literatura infantil portuguesa assenta num
único pilar: a sua total e beata aceitação do dogma pequeno-burguês da
omnipotência do saber.” – p. 50.

[57] “Nós e
Eles”: “Não interessa apurar se os
Esteiros cabem no conjunto de jeremíadas a que se deu o nome de neo-realismo.
Apesar de alguns sinais discretos de Marx, pertencem à família mais nobre dos
grandes panfletos românticos contra a injustiça burguesa, de que são, em
português, o primeiro, e também o último exemplar.” – pp. 52-53.

[58] “A
Harmonia do Mundo”: “Os Fidalgos e em certa medida a Morgadinha, como as melhores epopeias soviéticas sobre
o desbravamento da Sibéria, ou as unidades colectivas de produção, não
pretendem descrever um mundo, pretendem criá-lo pelo verbo.” – pp. 56-57.

[59] “Salvar
a Pátria”: “Continuamos todos à espera de
um Cavaleiro. Mas dele, graças a Deus, até agora... “nem a sombra, nem a
espada, nem o rabo do cavalo.” – p.
61. (O texto foi publicado em 15 de Fevereiro de 1985 – mesmo a tempo,
portanto: em Maio, no XII Congresso do PSD da Figueira da Foz, chegou um dos nossos “homens providenciais”.)

[60] “O
Medo”: “A Universidade, secção de
humanidades e ciências sociais, é um armazém tradicional de artistas puramente
putativos, que, entre fichas e notas de pé de página, alimentam ambições
patéticas de vir a tirar do cérebro uma ideia ou até uma frase, susceptíveis de
interessar os outros.” – p. 62.

[61]
“Desventuras de um Autodidacta”: “As Farpas
são um típico produto português: a obra de um provinciano autodidacta.” –
p. 66.

[62] “O
Livro Único”: “Escrito com um vertiginoso
desprezo por estas criaturas, pelos seus actos, as suas experiências e as suas
ilusões, o Portugal Contemporâneo é,
sem dúvida, a mais gloriosa obra literária do século.” – p. 71.

[63] “O
Cadáver Esquisito”: “Os nomes, como lhes
compete, identificam e, se se for pendurar uma tabuleta no cadáver, ele
dilui-se imediatamente nas ervas. Um desconhecido pode em rigor estar
assassinado no campo de golfe; um Sáurio, um Vândalo ou uma Belissa, também.
Não têm de lá estar. Mas podem lá estar. Um Mário ou um Salvador não têm
nem podem. O seu próprio nome remete para a realidade e choca-se com ela. Se
fossem reais não estavam ali; se estão ali, não são reais.” – p. 82.

[64]
“Modernos e “Modernizados””, “O Património Cultural da Nação Portuguesa”,
“Desamar as Nossas Coisas” e “A Rosa das Nossas Comemorações”. A tese é a de
que “a cultura portuguesa é derivada e
imitativa” (p. 95) e, ainda para mais, estreitíssima: “Não mais de uma dezena de pessoas mudou, determinou ou fixou a imagem
que temos de nós; criou a nossa consciência à semelhança da sua; nos obrigou a
olhar como ele olhava; a falar com as suas palavras; a pensar com a sua cabeça.
Entre escritores e poetas: Eça, Camilo, Pessoa e Nobre. Pintores: Malhoa;
Historiadores: Oliveira Martins.” – p. 91.

[65] “Introdução
ao Estudo do Cant”: “Existe uma palavra inglesa que descreve com
exactidão o ruído, indistinto e sem sentido, que os nossos políticos nos
dirigem quando pretendem comunicar connosco. Essa palavra é cant. Segundo o dicionário de Oxford, cant significa: o calão ou linguagem secreta ou
peculiar de uma seita, de uma classe ou de uma disciplina; uma linguagem
insincera ou hipócrita; um conjunto predeterminado de palavras repetido
mecanicamente; um estereótipo em moda; uma fraseologia vácua e pretensiosa, em
especial se implicar falsa bondade ou fé.” – p. 101.  

[66] “A
Igreja e a Família” e “A Igreja Vai para a Esquerda”, pp. 117-124.

[67] “Uma
Casa Portuguesa”: “Tal ministro [da
Cultura], principalmente se, como com
frequência sucede, é analfabeto ou quase, jamais se atreverá a manifestar
indiferença seja pelo que for que se lhe apresente como Cultura (com C grande).”
– pp. 105-108.

[68] “Elogio
dos Ricos”: “Se encontrar uma criatura
tímida e sóbria, muito simples, muito despretensiosa, muito amável, já sabe:
trata-se de um rico.” “Contemple um
indivíduo barulhento, grosseiro, agressivo: aí está um pobre. Examine com
atenção as maneiras despóticas, as exigências insensatas, as ameaças
irresponsáveis: mais um pobre.” “Na
realidade, os ricos adquiriram a mansidão do pobre ideal, enquanto os pobres,
mimados e lisonjeados, ostentam uma brutalidade patrícia.” – p. 110.

[69] “Ou [a] de Coimbra, se preferir a província.”, in “Direito à Portuguesa”,
p. 128.

[70] “Não me
Lixem”: “há séculos que os portugueses
sabem que o Estado e o governo, seja ele qual for, os desejam lixar. Aqui
anuncia-se a descoberta de que praticamente todas as instituições e todos os
portugueses aspiram a lixar os portugueses.” – p. 142.

[71] “O
Vendedor de Ilusões”, “Hipocrisia Organizada” e “O Desenvolvimento Moral,
Religioso, Pessoal e Social”, pp.129-141.

[72] “Movido por uma estranha perversidade,
cheguei a preocupar-me com personagens tão intimamente insignificantes como
Balsemão ou Lucas Pires, Eurico de Melo ou Helena Roseta.” – “Os Políticos
e a História”, p. 195. 

[73] Sobre o
erro em que a “educação oficial” se obstina, leia-se antes “O equívoco do Prof.
Grilo”, Esta Ditosa Pátria, Relógio
d’Água, Lisboa, 1997,pp. 217-220.

[74] “O
Público e o Privado”, pp. 115-116. Por lapso, por reconhecimento da importância
do critério que oferece “iure condendo”,
ou para dar lastro ao artigo re-publicado a seguir (de 1993), sobre o mesmo
tema, é também reproduzido em Esta Ditosa
Pátria, pp. 257-260. Como nenhuma boa acção passa sem a sua retribuição,
seguiram-se os eventos relatados em “Carta a um inocente sobre a justiça em
Portugal”, Esta Ditosa Pátria,
Relógio d’Água, Lisboa, 1997, pp. 230-234.

[75] “Valha-nos
Deus”, p. 188. Aqui certamente por lapso, também encontrou uma segunda casa em Esta Ditosa Pátria, Relógio d’Água,
Lisboa, 1997, pp. 155-158.

[76]  “Desventuras de um Autodidacta”, p. 167.

[77]
“Saudades de Viena”, pp. 149-152. O conhecimento da História – como o
conhecimento do que quer que seja – nunca impediu ninguém de cometer os mais
desmiolados actos, mas o A. adverte, com razão, que “talvez um módico entendimento do passado, mesmo do passado próximo,
diluísse a convicção ingénua da absoluta originalidade do nosso tempo e
conseguisse evitar alguns erros, ilusões e asneiras.” – “Se não é por
isso...”, Esta Ditosa Pátria, p. 273.

[78] “O
Outro Centenário”, pp. 167-168.

[79] Era o
título do texto, justíssimo para a exploração do trabalho infantil com que se
fabricavam, e ainda fabricam, “campeões”.

[80]  Se tivesse que me aventurar numa opinião,
repegaria na sua “teoria do funil” (vg, Vasco Pulido Valente em entrevista a
Teresa Coelho, Pública de 9 de Dezembro de 2001, p. 32) – o seu
sucedâneo da bola de cristal. Quando “adivinhou” o futuro, é porque se limitou
a observar a espiral descendente até antever o seu inevitável ponto de saída.
Por um efeito de escala (não adianta explicar), no caso dos EUA nem o desenho
do funil é tão fácil de fazer, nem a descida pelo gargalo é impossível de
travar.

[81] “Ver
Washington pela Televisão”, “Desgostos de Família” e “Quem a Tem Chama-lhe
Sua”, pp. 169-180 – , por ordem, os primeiros três artigos publicados em O Independente.
[82] “Adeus, Gorbachov”, pp. 163-164. No texto
original seguiu a terminação da grafia inglesa (Gorbachev).

* No
original estava “democratização”.

[83] “A
Superstição Democrática”, p. 160.

[84] Presumivelmente
porque ia nele uma outra previsão que se revelou, a dizer o menos,
problemática: “Ou a CEE se dissolve ou os
actuais Doze baixavam à pouco invejável condição de estados clientes do Reich
renascido. A CEE presume uma Alemanha
dividida e não é concebível de outra maneira.”

[85]  A título indicativo: Sérvia (1992 – incluindo
o Montenegro; 2006, como entidade totalmente separada), Croácia (1991 – guerra
entre 1991 e 1995), Eslovénia (1990 – guerra em 1991), Bósnia e Herzegovina
(1995, após os acordos de Dayton – guerra entre 1992 e 1995), Montenegro (2006
– fim da federação constituída em 2003 com a Sérvia), Macedónia (1991) e a
República do Kosovo (2008, soberania ainda contestada – guerra entre 1996 e
1999).

 

 

 

 

 

Às
Avessas –
Vasco Pulido Valente

 

Assírio
& Alvim, Lisboa, 1990

 

 

 

 

 

 

O Autor

         Vasco Pulido Valente nasceu, segundo o
próprio, em 21 de Novembro de 1941[1].
Passados os devaneios de infância [2],
quis ser romancista (aos quatorze anos), cineasta (aos dezoito), revolucionário
(aos vinte), e por aí adiante, até querer “fazer
uma tese para granjear o apetitoso título de “doutor”” (aos vinte e sete) [3].
As opiniões dividem-se quanto ao modo como concretizou esse último desiderato: na
sua versão escrita, “em quatro anos de
ociosidade produzi[u], quase por
inadvertência, um livro” [4];  na sua versão oral, percebeu “a extensão aterrorizante da sua ignorância”
e “trabalhou como um cão” [5].

 “Aos
trinta e cinco anos, a meio do caminho da [...] vida, não era escritor, nem jornalista, nem académico.” [6]
Aos setenta e três, é do melhor que temos em tudo isso – já que a irmã, segundo
o próprio mais ilustrada e de melhor prosa [7],
foi conquistada pelo Brasil.

 

 

 

 

 

Também
pelo próprio, sabemos que aos vinte e dois anos se queria casar, “desse por onde desse” [8],
e que de facto se casou, aos vinte e três, com uma mulher “estarrecedoramente bonita” [9].
Por uma sua biografia não-autorizada – que tem, entre vários, o inconveniente
de ter sido vertida para português num programa de tradução automática –,
sabemos quase tudo o mais sobre as suas peripécias amorosas até 1976 [10].
Provando que a esperança é mais forte do que a experiência, depois dessa data
ainda celebrou matrimónio mais duas vezes – com a atenuante de o ter feito com
a mesma mulher [11].

 

 

         Em 1980 foi, por mero acaso [12],
Secretário de Estado da Cultura – durante dez meses (os do Governo AD chefiado
por Francisco Sá Carneiro), tempo que lhe chegou para, entre  o mais, fechar o S. Luís [13],
obter o terreno e o financiamento para a construção da Torre do Tombo, encomendar
o projecto e fazê-lo aprovar pela UNESCO [14].
Conseguiu, ainda, nomear o homem certo (o Dr. João Bénard da Costa) para um dos
seus múltiplos possíveis lugares certos (a Cinemateca Portuguesa). Sendo as
coisas, entre nós, o que são, é claro que isso o afastou definitivamente de
lugares executivos.

Ficou
com a fama de “telhudo” na primeira
candidatura presidencial de um seu ex-professor do Colégio Moderno, “diáfano e muito ausente em Caxias por razões
de força maior” [15]
(ver “Uma Aventura com o Dr. Mário Soares” [16]),
e foi apodado de Pulido, o Breve,
após uma equívoca passagem pelo Parlamento, em 1995.

Define-se
como um “historiador narrativo e,
portanto, um escritor” [17],
mas é aos quarenta anos de colunas jornalísticas que deve o grosso dos seus
inimigos [18],
mesmo que não o grosso da sua pública notoriedade: num evidente sintoma da
nossa inalterada iliteracia (não obstante os furiosos progressos das taxas
oficiais de alfabetismo), as “dezenas de
milhares de páginas que penosa ou alegremente ench[eu]”[19]
hão-de ter acumulado menos leitores do que o número de tele-espectadores de uma
única edição do já esquecido Jornal Nacional
de 6ª da TVI[20],
ou de uma das suas diversas caricaturas (que lhe glosam invariavelmente o
entaramelamento da fala e a desconexão dos gestos, e não deixam adivinhar o
rigor da escrita – no que reedita a dupla personalidade discursiva de um outro
nome ímpar, posto que mais secreto, da ciência portuguesa: o Prof. Manuel de
Andrade[21]).

 

 

O Género

         Num País em que a imprensa é estreita
em títulos e parca em edições, o comentário, pelo menos desde os alvores da
Primavera marcelista, medrou desproporcionadamente. Em consequência, como Vasco
Pulido Valente já tinha assinalado em 1984, “Cérebros, cuja quietude jamais aragem perturbou, escrevem, portanto,
colunas. Escrevem, ou seja, põem frases à frente de frases, em que é preciso
penetrar com diabólica paciência e uma cevadeira mecânica.”[22]
(E providenciou a prosaica razão: “Os
jornais, pagando pouco, vão enchendo espaço.”[23])
Um efeito secundário dessa infausta acumulação de textos opinativos – e da Lei
de Lavoisier – foi a sua inevitável encadernação em série: tirando o dr. Paulo
Portas (pela muito elementar prudência de evitar o embaraço de submeter a sua próspera
prática política à comparação com as suas anteriores proclamações
jornalísticas), não há praticamente escriba algum que prescinda da exumação dos
seus textos jornalísticos para o cerimonial embalsamento em livro.
Naturalmente, se a qualidade dos textos pode piorar ao longo do processo (pela
perda das referências à actualidade, por exemplo), dificilmente pode melhorar.
Donde resulta que os produtos acabados dessa idiossincrasia nacional vão do
frequente péssimo ao razoável ocasional – exactamente como a sua matéria-prima:
“Perpetrou-se (e continua a perpetrar-se)
muita da mais deprimente prosa portuguesa com esses pretextos.”[24]
Em casos distintamente raros (Nuno Brederode Santos, João Bénard da Costa e
Vasco Pulido Valente – e A. B. Kotter, para quem entenda que A. B. Kotter professava
opinião), porém, há requinte na forma e inteligência no conteúdo – e, em
consequência, chega a haver colectâneas indispensáveis.

         A propósito de uma significativa
disparidade de temas[25]
(artificialmente reduzida pelos critérios de selecção adoptados em cada
colectânea), Vasco Pulido Valente olha
para as causas e vê as conclusões. Nalguns casos, nem as primeiras eram
evidentes; noutros, as segundas eram, a bem dizer, imperceptíveis; por vezes o
que faltava era a compreensão que só pode resultar do estudo “do princípio ao fim, com alguma ordem e
alguma minúcia”[26];
outras vezes, sabiam-se as causas e as consequências, e o enquadramento não era
desconhecido – mas, como nos estereogramas, eram precisas instruções para se
poder ver. Na generalidade dos casos,
(re)lê-lo é ter a sensação de perceber melhor o mundo. 

 

 

 

 

 

 

No
Prefácio a O País das Maravilhas, a
primeira (e tardia) recolha dos artigos que publicou na imprensa (entre
Fevereiro de 1974 e Setembro de 1979), Vasco Pulido Valente confessou, com a
sua proverbial franqueza, que o livro “não
[tinha] de se envergonhar ao pé dos
grandes clássicos do género, “As Farpas”, ou “Uma Campanha Alegre” ou as
“Cartas Políticas” de João Chagas. Antes pelo contrário.”[27]
Qualquer réstea de cepticismo que porventura se alimentasse sobre a comparação
evaporar-se-ia necessariamente na presença de Retratos e Auto-Retratos (1992), de Esta Ditosa Pátria (1997) e, sobretudo, de Às Avessas (1990). Qualquer deles, posto que com a desvantagem de
vir assaz desbastado de origem (bem como o recente “Portugal - Ensaios de História e de Política” (2009) – sobre o qual
disse “Olhem, isto são as coisas que eu
acho que escrevi de relevante sobre Portugal.”[28]),
tem tudo o que é preciso para entrar num hipotético cânone de leituras de um
tempo em que, com o alto patrocínio do Ministério da Educação, tudo se lê –
menos isso.

 

 

 

O Título

Às Avessas
recolhe artigos que – como mais miudamente se dirá à frente – Vasco Pulido
Valente assinou entre 1982 e Setembro de 1989. Foi também um dos títulos da sua
página n’ O Independente[29].
Esse semanário, que depois se esvaiu até à irrelevância e ao fecho (em 2006),
foi o contraponto crítico da década cavaquista (1987-1997) e, durante esse
período, a maior reunião de talentos da opinião portuguesa. Regressando-lhe agora
de chofre, como leitor, é pavoroso constatar, por contraste, o quanto, na
última década, se banalizou e degradou a imprensa – mas, pior ainda, o quanto
isso nos foi imperceptível. Como o sapo que acaba cozido, não percebemos as
alterações discretas do nosso habitat.

 

 

 

 

 

 

 

O Estilo

O
“estilo” de Vasco Pulido Valente cobre a totalidade do espectro – da mais
desarmante seriedade ao mais delirante sarcasmo.  De facto, para ele,  “o
estilo é um instrumento; é adequado ou não é adequado.”[30]
E mesmo quando podemos discordar dos seus pressupostos, dos seus juízos de
valor, das suas conclusões – nalguns casos, até da sua pontuação – nada há a
apontar a um estilo que, em reverse
engeneering, parece destilável numa
fórmula (frases curtas; adjectivos inesperados ou em cambiantes próximas; generoso
uso de advérbios; repetição de palavras na mesma frase; léxico aditivado; interrogações
retóricas; pródiga distribuição de insultos e sarcasmos) e num método (concretizações miúdas a seguir às teses gerais;
opiniões iconoclásticas;  e, sobretudo,
humor acerado).

Leiam-se
os esforçados pastiches do seu estilo
“pimpão e encaracolado”[31]
(poucos, e só os do João Pereira Coutinho bons) e lá está, em roda baixa, o
mesmo programa. O que nenhum evidentemente percebeu é que “o estilo (...) é a
pertinência”[32],
e que a pertinência resulta da adequação entre forma e conteúdo. Há coisas
sobre as quais Vasco Pulido Valente escreve sem sombra de distância, e eles,
compenetrados, nunca dispensam a mecânica da encenação; há ecos de leituras que
ele tem e aos epígonos faltam; e, claro, carecem do fine tuning do tom: aos
trinta não se pode escrever como aos cinquenta, porque o que em certa idade soa
a experiência, antes, soa a presunção. De resto, o próprio se encarregou de
explicar “o carácter intrinsecamente
ridículo do imitador”[33],
por melhor que seja: “O imitador não tem
e, por definição, não pode ter dignidade. Não é: finge; e finge o que não
é.” [34]

 

 

 

 

 

A Obra

Enquanto
historiador narrativo[35],
Vasco Pulido Valente invoca a figura tutelar de Oliveira Martins e,
modestamente, remete-se para um lugar secundário – o mesmo que, quando anunciei
a minha escolha, um “esquerdista excitado”
logo se aprestou a esclarecer, em meu benefício e dos circunstantes, que era o
que lhe devia caber.  Sobre isso não
opino, porque cabendo-me escolher uma obra,
a minha escolha não foi essa – foi a “colectânea perfeita” do comentador
(essencialmente político) e pela mais óbvia das razões: nesse domínio não há
ninguém, entre nós, acima (ou sequer ao lado) de Vasco Pulido Valente; não
houve; nem é provável que venha a haver. Afinal convém não alimentar ilusões
sobre a educação que é prodigalizada aos indígenas, nem sobre as qualidades da
raça: para o igualar seriam necessários aplicação
e método; argúcia e cultura; talento e trabalho; e, o que não é o menos
importante num universo exíguo, aristocrática indiferença à mais perfunctória
análise de custo-benefício do empreendimento e aos custos pessoais dos
resultados do seu labor – ou, o que é o mesmo, coragem como virtude e franqueza
como princípio. Cada um dos requisitos é um fosso, que de ano para ano se
alarga; o conjunto é, claro, um abismo.

Sendo
várias as antologias de artigos do A., a preferência por esta não é arbitrária
– do que só o eventual leitor integral, se ainda o há, se aperceberá. Às Avessas reúne sessenta e um artigos[36],
publicados – entre 1982 (dois) e 1989 (dezasseis)[37]
– n’ O Independente (trinta e dois),
no Diário de Notícias (treze), na Grande Reportagem (dez), no Semanário (cinco) e n’ A Tarde (um). Estão distribuídos por
quatro áreas temáticas, em larga medida sobrepostas: Livros e Autobiografias (dezasseis); O País das Maravilhas (dezasseis); Liberdades e Democracias (dez); e Política à Portuguesa (dezanove).

Comecemos
pelo fim. Nesta última, sob a designação histórica da defunta coluna do arq.
Saraiva no Expresso, vai o seu exacto
oposto: aquele era o mestre da exposição das evidências (agora já nem isso),
Vasco Pulido Valente é o mestre da exposição das essências por detrás delas. Há
artigos sobre a remota natureza do Prof. Cavaco (cinco[38]),
sobre o substracto ontológico dos políticos (quatro[39]),
sobre os ociosos dilemas da esquerda (quatro[40]),
sobre os, à data, partidos da oposição (PS, PCP e CDS – um para cada[41]/[42]/[43]),
sobre a pandemia da corrupção (um[44]),
sobre a correlação – por vezes inversa – entre influência e poder (um[45])
e sobre a muito instrutiva história pátria (um[46]).

Voltemos
agora ao princípio: em Livros e
Autobiografias, Vasco Pulido Valente escreve sobre o seu peculiar percurso
de vida [47]/[48],
sobre os modernos padrões de conduta (para si[49]/[50],
e para as mulheres [51]),
sobre as inestimáveis vantagens de não ir de férias[52],
sobre o tépido e nada trepidante mundo da intriga internacional[53]
e sobre o triunfo da representação sobre o real [54].
Só por si, um sortido variado. E, naturalmente, escreve sobre um sortido não
menos variado de livros (O Romance da
Raposa, de Aquilino Ribeiro[55];
Céu Aberto, de Virgínia de Castro e
Almeida [56];
Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes[57];
A Morgadinha dos Canaviais e Os Fidalgos da Casa Mourisca, de Júlio
Diniz[58];
S. João Subiu ao Trono, de Carlos
Amaro[59];
As Encruzilhadas de Deus, de José
Régio[60];
As Farpas, de Ramalho Ortigão[61];
e Portugal Contemporâneo, de Oliveira
Martins[62]).

Em
O País das Maravilhas (como capítulo
de Às Avessas) há uma incursão pelas condições materiais
de produção romanesca – e a constatação da inata implausibilidade dos
portugueses como personagens de whodunits [63]
–, quatro artigos sobre a cultura
portuguesa – se é que, por atrevimento, existe [64]
–, um texto sobre a natureza profunda
dos políticos – e sobre as ladainhas que praticam [65]
–, dois ensaios sobre a doutrina da igreja
– em relação à família e ao seu aggiornamento [66]
–, quatro artigos sobre
especificidades exóticas da vida nacional – a lógica do subsídio[67],
a riqueza envergonhada[68],
a Faculdade de Direito de Lisboa[69],
e exemplos avulsos da tendência nacional para, à nossa volta, nada funcionar[70]
–, e nada menos do que três dissertações
sobre o eng. Roberto Carneiro e as suas proezas[71]
– um erro de avaliação, a exigir pronta adenda a anterior lista[72],
e, pior do que isso, uma pura perda de tempo[73].
E tem, a propósito do folclórico “caso Taveira”, uma rigorosíssima ponderação
do melhor critério de compatibilização do direito à intimidade privada com a
liberdade de imprensa e o interesse público[74]:

Os
políticos do século XVIII e do século XIX não precisavam de ocultar as
bebedeiras, os adultérios e as traficâncias. Mas precisavam de ocultar a
homossexualidade e a cobardia. Os políticos contemporâneos precisam de ocultar
tudo isso e muito mais. No fundo, porém, a situação é a mesma. Em nenhum regime
representativo o eleitorado admite que os políticos ignorem os limites da sua
“moral”. Ora um político obrigado a viver uma vida clandestina constitui um
perigo público, porque se torna vulnerável à chantagem. O seu direito à
privacidade não pode, assim, ser igual ao de uma pessoa privada. O direito à
privacidade de nenhuma pessoa pública pode ser igual ao de uma pessoa privada
porque a única garantia da sua independência é o escrutínio livre e permanente de
todos os seus actos , sejam eles de que natureza forem.  

 

 

Por
último, Liberdades e Democracias trata,
pode dizer-se, das grandes potências:
há artigos sobre os costumes americanos (três), sobre a política soviética
(três), sobre os efeitos da Iª Grande Guerra na mutação do Estado (um), sobre os
Jogos Olímpicos (um), sobre a dissolução dos impérios (um) e, last but not the least, sobre um  “intelectual” português típico.

 A propósito da “longa história de pobreza de espírito e fanatismos vários”[75]
do dr. Eduardo Prado Coelho (era ele o “intelectual”, mimoseado com a
costumada minúcia), seria desnecessário ao A. elaborar se houvesse algum
critério socialmente aceite para perceber “a
diferença entre falar fluentemente sobre um assunto e falar informadamente sobre
um assunto”[76]. Como
não havia, nem há, lá está o artigo.

Sobre
as nefastas consequências dos nacionalismos eslavos – ou, mais genericamente, sobre
os efeitos perversos das justas
aspirações de emancipação do jugo imperial – dá-nos o A. uma lição de história[77],
susceptível de ser replicada por nossa conta, mutatis mutandis, em outros tempos e coordenadas geográficas.

Efeito
muito mais perverso foi o da génese democrática, por exemplo, do nazismo: “A guilhotina e o campo de concentração foram
sempre o destino da democracia pura, isto é, da vontade maioritária que não
encontra, ou não admite, obstáculos e se acha legitimada pelo facto da sua
própria existência.”[78]
 

Efeito
perverso foi também o que transformou os Jogos de Pierre de Coubertin na actual
Feira dos Horrores[79],
fazendo-os regressar, de certo modo, à sua matriz original. Mesmo deixando de
lado as subtilezas do que neles é ilícito
(vg: uma qualquer substância
artificial) e lícito (vg: as auto-transfusões de sangue
sobre-oxigenado), a reflexão informada sobre a sucessão de ideais olímpicos e
as suas circunstâncias propiciatórias dá outra perspectiva à bissexta e
fascinada contabilidade tri-metálica.

Sobre
os assuntos do Império, talvez o assunto a propósito do qual Vasco Pulido
Valente mais vezes se enganou[80],
três artigos[81]
pecam por excesso e por defeito: por defeito, porque, mesmo com o talento de
Tocqueville, para descrever as oscilações do melting pot, a extensão
de A Democracia na América já não chegaria. Por excesso, porque, não
podendo acompanhar as infindáveis e divergentes linhas evolutivas, quaisquer
que se sigam levam ao engano.

Sobra
(e não sobra pouco) o tratamento da – à altura aparentemente perene, mas já
então moribunda – URSS. O melhor é transcrever o que lá está escrito e datado. À luz do que hoje sabemos, qualquer
céptico sobre a relevância da minha escolha ou sobre os juízos que a suportam, plácido
ou excitado, esquerdista ou não, pode comparar com o que por essa altura andava
a publicar – se é que por essa altura andava publicar. Se então não percebeu o
que se estava a passar à sua volta, nem sequer tem de se lamentar: dando-se ao
maior esforço de reler o que sobre o evoluir da perestroika se escreveu contemporaneamente na imprensa mundial de
referência, não vai encontrar nada de semelhante. Em 15 de Setembro de 1989 (repito:
Setembro de 1989), escrevia Vasco
Pulido Valente:

O
Estado russo, centralizado, burocrático e despótico, não era, como supunha
Marx, uma, simples aberração oriental. Nem, como supunha Lenine, o aparelho
repressivo da classe dominante. Era um instrumento indispensável para sufocar
as aspirações nacionalistas. Depois da revolução, Lenine imaginou que a
solidariedade “operária”, ecuménica por natureza, anularia as tendências
centrífugas. A ilusão não persistiu. A organização política e administrativa do
novo regime copiou e reforçou a do antigo. As boas almas do Ocidente costumam
rir-se da ineficácia do Estado comunista, como outrora se riam da ineficácia do
Estado dos Czars. Ora, pelo contrário, esse Estado foi eficacíssimo. Foi um
autêntico prodígio político. Sem dúvida que nada contribuiu para enriquecer e
libertar os povos do império. Mas também não exista para isso. Existia para
conservar o império indiviso e para o acrescentar e defender de ameaças
externas. O Estado comunista resistiu a uma guerra de extermínio, subordinou a
si a Europa Central e, vingando cem anos de humilhações, acabou por se tornar
numa das DUAS maiores potências militares do mundo. Nicolau I teria chorado de
emoção nos braços paternais de Estaline.

(...)

Como Alexandre II,  Gorbachov  encontrou obstáculos políticos irremovíveis.
Planeava “reestruturar” a URSS, injectando-lhe um módico de “liberdade“.
Acontece que essa “liberdade” enfraqueceu o Estado e acordou os nacionalismos.
Em vez de uma “reestruturação” racional e ordeira, o resultado foi o perigo
iminente da “desintegração da república”. Na economia, a perestroika falhou. Na sociedade, deixou as coisas na
mesma. Mas pôs em causa o único valor subsistente numa época de vexame e
derrotas, a santa integridade do império. A Ucrânia tem 51 milhões de
habitantes e é a região mais desenvolvida da URSS. Hoje não se vive melhor na
Ucrânia do que se vivia nos ominosos tempos de Brejnev e apareceu por lá uma
frente popular, que apoia a perestroika
e pede, em comícios, a independência.

    Gorbachov
não vai durar muito. Adeus, Gorbachov! [82]

Como
líder, Gorbachov pouco mais resistiu:
com um golpe militar pelo meio e sem poder efectivo depois dele, só até
à véspera da dissolução da URSS, em 26 de Dezembro de 1991 – depois de ter
assistido, impotente, à declaração unilateral da independência das anteriores
Repúblicas Soviéticas.

Em
16 de Junho de 1989 (repito: Junho de
1989), Vasco Pulido Valente já tinha avisado que “a consequência fatal da democracia* da Polónia e da Hungria seria a
democratização da Alemanha de Leste e a fatal consequência disso a reunificação
alemã.”[83]
Num artigo de 13 de Outubro de 1989 n’ O
Independente (repito: de Outubro de
1989), que não reproduziu em livro[84]
(“O problema alemão”), teve ocasião de explicar essa sua ideia:

A Alemanha de Leste não
é como a Hungria ou a Polónia um estado nacional, é um estado ideológico, cuja
legitimidade deriva apenas dos princípios marxistas-leninistas em que
supostamente se funda. Qualquer perestroika por diluída que seja, se arrisca a pôr em
causa esses princípios e fatalmente a dissolver o Estado. Se a Alemanha de
Leste tolerasse “reformas”como as da Polónia ou da Hungria, e mesmo como as da
URSS, não durava muito. Cada “reforma” a iria aproximando da Alemanha Federal
e, como se compreenderá, não há sentido algum na separação entre uma Alemanha
democrática e capitalista e outra Alemanha em transe de reestabelecer as
liberdades e o mercado. A RDA não tem espaço para compromisso: ou não muda
rigorosamente nada, ou se une à República Federal.

Como
todos sabemos, o Muro de Berlim caiu na noite de 9 de Novembro de 1989, um mês
depois a Cimeira da CEE aprovou o princípio da reunificação alemã, as conversações para essa reunificação
começaram depois de Março de 1990 (após as primeiras eleições livres na RDA),
e a incorporação desta na RFA teve efeito em 3 de Outubro desse ano, nos termos
do Tratado de Unificação de 31 de Agosto.

Antes,
em 31 de Março de 1989 (repito: Março de
1989), não apenas sobre a evolução da URSS mas também sobre a de outros
dois países, já Vasco Pulido Valente traçara o mapa do futuro:   

A
semana passada houve um simulacro de eleições na URSS. Mas desta vez com
candidatos concorrentes, voto secreto, vitória de alguns “oposicionistas” e
outros ornamentos da coisa genuína, que sem serem decisivos dão às pessoas um
gostinho antecipatório. Na aparência, as democracias ocidentais estão felizes
com a “liberalização” russa, popularmente denominada perestroika; e felicíssimas com a liberalização mais
séria e mais profunda da Hungria e a da Polónia. Isto só serve para mostrar
como a memória humana é curta e longa a estupidez dos homens. Segundo a tese
oficial dos “especialistas” americanos, provavelmente filhos dos que inventaram
a guerra do Vietnam, a perestroika
vai trazer muita paz e muita segurança ao mundo. Se não parar, depressa e à
bruta, vai trazer com certeza o contrário.

(...)

Sucede
todavia que em algumas matérias não existe meio-termo: não se pode estar um
bocadinho grávido e não se pode ser um bocadinho democrático. O poder não se
legitima com a encenação da democracia. A encenação da democracia tem um único
efeito garantido: o de levar directamente à exigência da verdadeira democracia.
Nenhum outro.

Ora,
se uma bela manhã, os habitantes da URSS acordarem soberanos, como não são um
povo, mas vários, hão-de querer imediatamente sair da URSS. Até porque quase
sempre detestam os vizinhos, as suas próprias minorias e sobretudo o povo
imperial, o russo, que os oprime e explora com requintes de barbaridade, desde
os santos czares. A URSS democrática é uma impossibilidade política: ou é a
URSS e não é democrática; ou é um caos de nações independentes, condenadas ao
conflito externo e à tirania interna. Viu-se já um pequeno ensaio disto no
episódio edificante da província arménia, que a Arménia e o Azerbeijão
disputam, e na nítida tendência cisionista das repúblicas Bálticas. A
vigiadíssima liberdade da perestroika não melhorou evidentemente a economia soviética (longe disso), mas, como
era lógico, desencadeou na URSS inteira a mais cega e destrutiva das paixões, o
nacionalismo.

(...)

Existem
igualmente na região dois estados, a Jugoslávia e a Checoslováquia, que, sendo
artificiais desde a origem, não suportam qualquer espécie de democracia, por
muito que se invoque o (falso) exemplo da Checoslováquia dos anos 20 e 30.  Num e noutro caso, como amplamente demonstram
os presentes sarilhos jugoslavos, a perestroika significa, tarde ou cedo, a explosão do
Estado. Nem Deus sabes o que vai depois acontecer aos bocados.  

Provando
que em muitos casos a omnisciência divina é só uma questão de tempo, até nós,
agora, sabemos: a República Checa e a Eslováquia separaram-se pacificamente em
1 de Janeiro de 1993. Na Jugoslávia, foi necessária uma brutal guerra civil
(que ameaçou degenerar numa guerra internacional) e o tumultuoso regresso à
barbárie – com o genocídio de Srebrenica e uma série de (eufemisticamente
designadas) “limpezas étnicas” – para criar um punhado de estados[85].

É
certo: Vasco Pulido Valente voltou a ver o futuro, mas nunca com tanta
precisão. Mas, Deo Gratias, basta ler
a última página do Público do
fim-de-semana para perceber que nunca deixou de perceber o nosso presente.

                                                                                        Victor Calvete

 

 

 

[1] “Nós e
Eles – Esteiros, de Soeiro Pereira
Gomes”, Às Avessas, Assírio &
Alvim, Lisboa, 1990, p. 51. Doravante, a referência a um artigo sem indicação
da fonte remete para esta obra.

[2] “O Modo
da Vida”, Retratos e Auto-Retratos, Assírio
& Alvim, Lisboa, 1992, p. 43.

[3] “O Medo
– As Encruzilhadas de Deus de José
Régio”, p. 62.

[4]  “O Modo da Vida”, Retratos e Auto-Retratos, Assírio & Alvim, Lisboa, 1992, p. 49.

[5] Vasco
Pulido Valente em entrevista a Carlos Vaz Marques, Ler - Livros & Leitores, n.º 82, Julho de 2009, p. 42.

[6] “O Modo
da Vida”, Retratos e Auto-Retratos, Assírio
& Alvim, Lisboa, 1992, p. 51.

[7] “Má
educação”, Esta Ditosa Pátria,
Relógio d’Água, Lisboa, 1997, pp. 367-368.

[8] “O Medo
– As Encruzilhadas de Deus de José
Régio”, p. 62.

[9] “O Modo
da Vida”, Retratos e Auto-Retratos, Assírio
& Alvim, Lisboa, 1992, p. 47.

[10] Maria
Filomena Mónica, Bilhete de Identidade -
Memórias 1943-1976, Alêtheia, Lisboa, 2005.

[11]
Entrevista do Expresso, 17 de
Novembro de 2007.

[12] Vasco
Pulido Valente em entrevista a Maria João Seixas, Pública, 1 de Outubro
de 2000, p. 28. Se o convidado para o lugar não tivesse falhado à última hora,
teria sido Secretário de Estado Adjunto do Primeiro-Ministro, como previsto.

[13] Artigo
n’O Independente de 3 de Fevereiro de
1989, em que trocou a redacção da sua página (“Revisões”) por uma outra
(“Consolo Remoto”).

[14] Vasco
Pulido Valente em entrevista a Maria João Seixas, Pública, 1 de Outubro
de 2000, p. 30.

[15] “O Medo
– As Encruzilhadas de Deus de José
Régio”, p. 62.

[16]  Retratos
e Auto-Retratos, Assírio & Alvim, Lisboa, 1992, pp. 61-70.

[17] Vasco
Pulido Valente em entrevista a Carlos Vaz Marques, Ler - Livros & Leitores, n.º 82, Julho de 2009, p. 42.

[18]
Refiro-me aos que tomam Vasco Pulido Valente como inimigo – e que são muitos
mais do que supõe –, não aos que ele escolhe como tais: “Os inimigos são a minha essência e o meu abrigo. São a minha disciplina.
A minha disciplina consiste numa única
regra, grossa, básica, salvífica: não ser como eles. ” – “Eu Sempre Fui
assim: Auto-retrato aos 50 anos”,  Retratos e Auto-Retratos, Assírio &
Alvim, Lisboa, 1992, p. 20.

[19] Idem,
p. 21.

[20] Com a
substituição da pivot desse jornal, a
partir da sua edição de 4 de Setembro de 2009, Vasco Pulido Valente “voltou a
casa."

[21] A sua
explicação: “escrever (um ofício em que
me eduquei) é exactamente o contrário de falar. Quem fala improvisa; quem
escreve calcula, planeia, emenda, substitui. Os dois processos são contrários.
Pior, são incompatíveis.” “Voltar a Casa”, Público, 6 de Setembro de 2009.

[22]
“Influência e Poder”, p. 209. Ainda é assim: há certas coisas que nunca mudam.

[23]  Idem.

[24]  Idem.

[25]  A primeira obrigação dos “colunistas” ia,
parece, ao encontro da sua intrínseca natureza: “Ele sabia tudo o que havia a saber, ouvira toda a música que havia a
ouvir e dissertava sobre tudo o que havia a dissertar.” É claro que se tem
de se descontar o juízo, porque foi proferido – dessa vez com extrema exactidão
classificatória, diga-se – por “uma
menina loira”. (Maria Filomena Mónica, Bilhete
de Identidade – Memórias 1943-1976, p. 212).

[26]  “Desventuras de um autodidacta – As Farpas de Ramalho Ortigão”, p. 67.

[27]  O País
das Maravilhas, Intervenção, Lisboa, 1979, p.11.

[28]  Vasco Pulido Valente em entrevista a Carlos
Vaz Marques, Ler – Livros & Leitores,
n.º 82, Julho de 2009, p. 8. Há-de haver nisso muita modéstia, porque do volume
não consta nenhum dos inúmeros textos que dedicou, por exemplo, a Mário Soares
e a Cavaco Silva. E nem um nem o outro se entendem, fora da sua hagiografia,
sem ler o que sobre eles ele escreveu.

[29] A sua
colaboração nesse semanário iniciou-se no número 1 (de 20 de Maio de 1988) sob
o título genérico Revisões,
prosseguiu sem designação própria, e converteu-se depois ao título que foi
escolhido para a antologia. A partir de Abril de 1996, encerrada a série “O
mundo está perigoso”, adoptou outra marca
(Às Direitas). Na obra do A., Às Avessas remete, portanto, para dois
universos: o da série de artigos n’ O
Independente publicados sob essa designação (que não está aqui em causa), e
o dos artigos recolhidos no livro, anteriores e de diversa proveniência.

[30]  Vasco Pulido Valente em entrevista a Carlos
Vaz Marques, Ler – Livros & Leitores,
n.º 82, Julho de 2009, p. 39.

[31] “Éramos
assim absurdos em 1963”, p. 20.

[32] Vasco
Pulido Valente em entrevista a Carlos Vaz Marques, Ler – Livros & Leitores, n.º 82, Julho de 2009, p. 39.

[33]
“Modernos e “Modernizados””, p. 87.

[34] Idem. Vasco
Pulido Valente voltou ao assunto em entrevista a Carlos Vaz Marques, Ler – Livros & Leitores, n.º 82,
Julho de 2009, p. 39: “Se você começa a
escrever como o Hemingway faz sub-Hemingway. Se começar a fazer outra coisa
qualquer – um Gabriel Garcia Márquez – não faz nada de especial. Faz sub-Garcia
Márquez ou outra coisa qualquer que lhe passar pela cabeça.”

[35] Os
títulos maiores, entre edições originais e edições revistas, são As Duas Tácticas da Monarquia Perante a Revolução,
Dom Quixote, Lisboa, 1974; Estudos sobre
a crise nacional, INCM, Lisboa, 1980; Tentar
perceber, INCM, Lisboa, 1983; Os
“Devoristas” - A Revolução Liberal 1834-1836, Quetzal, Lisboa, 1993;  A
República Velha (1910-1917), gradiva, Lisboa, 1997; Os Militares e a Política (1820-1856), INCM, Lisboa, 1997; O Poder e o Povo, gradiva, Lisboa, 1999;
Glória, gótica, Lisboa, 2001; Marcello Caetano – As desventuras da razão,
gótica, Lisboa, 2002; Um Herói Português
- Henrique Paiva Couceiro (1861-1944), Alêtheia, Lisboa, 2006; Ir prò Maneta - A Revolta contra os
Franceses (1808), Alêtheia, Lisboa, 2007; e Portugal - Ensaios de História e de Política, Alêtheia, Lisboa,
2009. 

No seu Uma Educação Burguesa... Notas sobre a
ideologia do ensino no Século XIX, Livros Horizonte, Lisboa, 1974, há uma
bibliografia mais extensa. 

[36] Mais do
que em Retratos e Auto-Retratos (dezoito),
tematicamente homogéneo e com menos páginas, e menos do que em Esta Ditosa Pátria (oitenta e oito), com
mais páginas.

[37] De 1983
há apenas um artigo (o que é repetido em Portugal
– Ensaios de História e de Politica), de 1984 há doze, de 1985 oito (todos
publicados na Grande Reportagem), de
1986 volta a haver só um artigo, de 1987 há cinco e de 1988 dezasseis – ou
seja: mais de metade dos textos remonta aos últimos dois anos da série.

[38] “O
Mistério de Cavaco”, “Perder e Ganhar”, “Drama Cavaquiano”, “O Grande Mundo do
Dr. Cavaco”, e “Um “Marcellismo” Aflito” (que, no original, se intitulava
“Depois disto”) – pp. 218-239. Sobre o tema, é preferível não entrar em
pormenores.

[39] “O que
Está Dentro dos Políticos”, “Os Políticos e a História”, “O Busto de Napoleão”
e “Políticos e Jornalistas” – pp. 191-203 e 212-215. No primeiro artigo – que,
sendo sobre o Marechal Duque de Saldanha, podia, na essência, ser sobre o dr.
Mário Soares (embora, aparentemente, Vasco Pulido Valente não queira
reconhecê-lo) – estava a cartilha política dos vários salvadores da Pátria: “o país não podia dispensá-lo e não havia
melhores intenções do que as dele”, p. 193.

Apenas
outro exemplo: “Aos olhos inocentes dos
laicos, os políticos ocupam-se quase exclusivamente a enganar-se e a
enganar-nos, estando eles próprios, para nossa desgraça e desgraça deles,
enganados. Esta noção vulgar não é destituída de fundamento empírico, mas não
basta para explicar o mundo. Os políticos não vivem no mesmo lugar em que nós
vivemos, com as mesmas regras e os mesmos fins.” – p. 191.

[40] “Reflexões
Sobre a Esquerda”, “Porque é que a Esquerda Não Pode Governar”, “A Morte da
Esquerda” e “Onde Raio se Meteu a Teoria?”- pp. 240-255 e 266-269. Notando que
“a Esquerda procura angustiadamente uma
forma qualquer de salvação.”, e que “A
tragédia é que a sua salvação parece estar em abolir-se como Esquerda.”
(pp. 254-255), Vasco Pulido Valente antecipou o rumo do glorioso Sócrates, que
disfarçou como pôde em matéria de costumes.

[41] “CDS”,
pp. 216- 217. Sobre a agremiação e os seus líderes (pré-Manuel Monteiro, que
viria depois), escrevia: “Nunca ninguém o
levou a sério e até os seus chefes e fundadores se banharam sempre numa
peculiar irrealidade.

Eram de resto eminentemente simpáticos,
honestos, convictos, cumpridores. Via-se que tinham respeitado os pais, ido à
missa, sido castos, estudado muito e casado com meninas virgens; e que tinham
em casa filhos ranhosos e candeeiros dourados.” – p.
217.

[42]
“Catarina Eufémia Não Estava Grávida”, pp. 256-258. Como as Pirâmides, o PCP
nunca muda.

[43] “Como
“Abrir” o PS”, pp. 262-265. Custa a crer, mas o dr. Jaime Gama chegou a
disputar a liderança do PS. Custa a crer, mas foi com o dr. Jorge Sampaio.

Mas,
claro, isso foi antes dos tempos da inesquecível liderança do dr. Ferro
Rodrigues.

[44] “A Caça
a Cadilhe”, pp. 204-207. Vasco Pulido Valente notou o que, sendo óbvio, vai
escapando ao recorrente (e inócuo) debate público sobre a corrupção: nessa
altura, como agora, mas sobretudo agora, “em
Portugal a corrupção que pesa é legal:
legalíssimas compras ao Estado, legalíssimas vendas ao Estado, legalíssimos
contratos com o Estado, legalíssimos empréstimos, subsídios, operações
financeiras e autorizações.” – p. 205. A actualização da lista implicaria
hoje legalíssimas alterações da delimitação de áreas protegidas e, o que é o
cúmulo da desvergonha, legalíssimas leis de amnistia e legalíssimas alterações
ao Código Penal.

[45] “Influência
e Poder”, pp. 208-211. O A. lastimava o recrutamento governamental do dr.
Francisco Sousa Tavares: “Há, sabemos,
indivíduos cujo único prazer reside em lá estar. Nestas alturas, convém
vivamente deixá-los.” – p. 208. Mas também há casos em que daí resulta um
palpável benefício público: o dr. José Magalhães é um superveniente exemplo de
insuportável “influência” mediática, que a incorporação no Governo reduziu,
para descanso de todos, ao mais compenetrado silêncio.

[46] “O Sr.
Bispo de Viseu, o Zé Dias e o Caminho da Granja”, p. 259- 261. O que há de mais
significativo na história do Partido Reformista – em comparação com a do PRD,
por exemplo – é que foi logo apodado
de “estafermo”. Por Eça “(que percebeu
depressa a natureza da coisa)” – p. 261.

[47] “Éramos
Assim Absurdos em 1963”: é o único dos artigos antologiados em Às Avessas que o A. fez transitar para o
seu próprio cânone (tal como apresentado em Portugal
– Ensaios de História e de Politica). Nele se conserva a metáfora (de João
Bénard da Costa) de O Tempo e o Modo
como “piano geracional”.

[48]
“Confissões de um Camaleão”: “Em nenhuma
altura da minha vida acreditei em Deus ou na revolução e, sobretudo, não
acreditei primeiro em Deus e depois na revolução, como foi a regra dos últimos
trinta anos.” – p. 23.

[49] “Ser
sempre saudável e nunca morrer”: “Nada me
impede, senão a minha íntima perversidade de me conservar, já não digo tão
belo, mas tão radioso como Jane Fonda.” – p. 30.

[50] “A
obrigação de ser feliz”: “Envelheci aos
berros e aos urros, admito, mas com uma completa confiança teórica na natureza
maléfica do acontecimento em si.” – p. 33.

[51]
“Corações inconsoláveis ou a mulher libertada nos anos 80”: “Não falo da destruição ritual pelo fogo da
roupa interior mais associada à humilhante qualidade de mamífero da fêmea da
espécie. Este protesto contra vexames, que não sucedem, por exemplo, a uma rã,
com boa vontade, pode perceber-se.” – p. 37.

[52] “Não ir
de férias”: “Em Setembro ou Outubro, os
que “foram para férias”, “vêm de férias”: exaustos, irritados, sem um tostão.” –
p. 44.

[53]
“Espiões e Diplomatas”: “Fiquei
estupefacto. As conversas entre os Poderes do universo eram de uma trivialidade
assustadora.” – p. 26
[54] “Um dia
na vida de Eça de Queiroz”: “O seu
poder foi tão grande e a sua persuasão tão forte que, passados cem anos, se,
para nós, a província dos excessos e das paixões é talvez Camilo, Lisboa é
unicamente a lassidão, a mesquinhez e o ridículo da Lisboa de Eça. Havia outra,
a que ele entreviu a 30 de Março de 1867. Só que ninguém a escreveu. Ou quem a
escreveu, a escreveu mal: o que é o mesmo.” – p. 75.

[55] “A
Noção de Bem e de Mal”: “devo agradecer a
Aquilino ter-me deixado, depois do meu primeiro livro, sem a mais vaga noção de
bem e de mal.” – p. 47

[56] “O
Lugar do Saber”: “A incrível perenidade
deste romance medíocre, publicado entre 1906 e 1910, e que em 1960 guardava
ainda o seu lugar de excepção na literatura infantil portuguesa assenta num
único pilar: a sua total e beata aceitação do dogma pequeno-burguês da
omnipotência do saber.” – p. 50.

[57] “Nós e
Eles”: “Não interessa apurar se os
Esteiros cabem no conjunto de jeremíadas a que se deu o nome de neo-realismo.
Apesar de alguns sinais discretos de Marx, pertencem à família mais nobre dos
grandes panfletos românticos contra a injustiça burguesa, de que são, em
português, o primeiro, e também o último exemplar.” – pp. 52-53.

[58] “A
Harmonia do Mundo”: “Os Fidalgos e em certa medida a Morgadinha, como as melhores epopeias soviéticas sobre
o desbravamento da Sibéria, ou as unidades colectivas de produção, não
pretendem descrever um mundo, pretendem criá-lo pelo verbo.” – pp. 56-57.

[59] “Salvar
a Pátria”: “Continuamos todos à espera de
um Cavaleiro. Mas dele, graças a Deus, até agora... “nem a sombra, nem a
espada, nem o rabo do cavalo.” – p.
61. (O texto foi publicado em 15 de Fevereiro de 1985 – mesmo a tempo,
portanto: em Maio, no XII Congresso do PSD da Figueira da Foz, chegou um dos nossos “homens providenciais”.)

[60] “O
Medo”: “A Universidade, secção de
humanidades e ciências sociais, é um armazém tradicional de artistas puramente
putativos, que, entre fichas e notas de pé de página, alimentam ambições
patéticas de vir a tirar do cérebro uma ideia ou até uma frase, susceptíveis de
interessar os outros.” – p. 62.

[61]
“Desventuras de um Autodidacta”: “As Farpas
são um típico produto português: a obra de um provinciano autodidacta.” –
p. 66.

[62] “O
Livro Único”: “Escrito com um vertiginoso
desprezo por estas criaturas, pelos seus actos, as suas experiências e as suas
ilusões, o Portugal Contemporâneo é,
sem dúvida, a mais gloriosa obra literária do século.” – p. 71.

[63] “O
Cadáver Esquisito”: “Os nomes, como lhes
compete, identificam e, se se for pendurar uma tabuleta no cadáver, ele
dilui-se imediatamente nas ervas. Um desconhecido pode em rigor estar
assassinado no campo de golfe; um Sáurio, um Vândalo ou uma Belissa, também.
Não têm de lá estar. Mas podem lá estar. Um Mário ou um Salvador não têm
nem podem. O seu próprio nome remete para a realidade e choca-se com ela. Se
fossem reais não estavam ali; se estão ali, não são reais.” – p. 82.

[64]
“Modernos e “Modernizados””, “O Património Cultural da Nação Portuguesa”,
“Desamar as Nossas Coisas” e “A Rosa das Nossas Comemorações”. A tese é a de
que “a cultura portuguesa é derivada e
imitativa” (p. 95) e, ainda para mais, estreitíssima: “Não mais de uma dezena de pessoas mudou, determinou ou fixou a imagem
que temos de nós; criou a nossa consciência à semelhança da sua; nos obrigou a
olhar como ele olhava; a falar com as suas palavras; a pensar com a sua cabeça.
Entre escritores e poetas: Eça, Camilo, Pessoa e Nobre. Pintores: Malhoa;
Historiadores: Oliveira Martins.” – p. 91.

[65] “Introdução
ao Estudo do Cant”: “Existe uma palavra inglesa que descreve com
exactidão o ruído, indistinto e sem sentido, que os nossos políticos nos
dirigem quando pretendem comunicar connosco. Essa palavra é cant. Segundo o dicionário de Oxford, cant significa: o calão ou linguagem secreta ou
peculiar de uma seita, de uma classe ou de uma disciplina; uma linguagem
insincera ou hipócrita; um conjunto predeterminado de palavras repetido
mecanicamente; um estereótipo em moda; uma fraseologia vácua e pretensiosa, em
especial se implicar falsa bondade ou fé.” – p. 101.  

[66] “A
Igreja e a Família” e “A Igreja Vai para a Esquerda”, pp. 117-124.

[67] “Uma
Casa Portuguesa”: “Tal ministro [da
Cultura], principalmente se, como com
frequência sucede, é analfabeto ou quase, jamais se atreverá a manifestar
indiferença seja pelo que for que se lhe apresente como Cultura (com C grande).”
– pp. 105-108.

[68] “Elogio
dos Ricos”: “Se encontrar uma criatura
tímida e sóbria, muito simples, muito despretensiosa, muito amável, já sabe:
trata-se de um rico.” “Contemple um
indivíduo barulhento, grosseiro, agressivo: aí está um pobre. Examine com
atenção as maneiras despóticas, as exigências insensatas, as ameaças
irresponsáveis: mais um pobre.” “Na
realidade, os ricos adquiriram a mansidão do pobre ideal, enquanto os pobres,
mimados e lisonjeados, ostentam uma brutalidade patrícia.” – p. 110.

[69] “Ou [a] de Coimbra, se preferir a província.”, in “Direito à Portuguesa”,
p. 128.

[70] “Não me
Lixem”: “há séculos que os portugueses
sabem que o Estado e o governo, seja ele qual for, os desejam lixar. Aqui
anuncia-se a descoberta de que praticamente todas as instituições e todos os
portugueses aspiram a lixar os portugueses.” – p. 142.

[71] “O
Vendedor de Ilusões”, “Hipocrisia Organizada” e “O Desenvolvimento Moral,
Religioso, Pessoal e Social”, pp.129-141.

[72] “Movido por uma estranha perversidade,
cheguei a preocupar-me com personagens tão intimamente insignificantes como
Balsemão ou Lucas Pires, Eurico de Melo ou Helena Roseta.” – “Os Políticos
e a História”, p. 195. 

[73] Sobre o
erro em que a “educação oficial” se obstina, leia-se antes “O equívoco do Prof.
Grilo”, Esta Ditosa Pátria, Relógio
d’Água, Lisboa, 1997,pp. 217-220.

[74] “O
Público e o Privado”, pp. 115-116. Por lapso, por reconhecimento da importância
do critério que oferece “iure condendo”,
ou para dar lastro ao artigo re-publicado a seguir (de 1993), sobre o mesmo
tema, é também reproduzido em Esta Ditosa
Pátria, pp. 257-260. Como nenhuma boa acção passa sem a sua retribuição,
seguiram-se os eventos relatados em “Carta a um inocente sobre a justiça em
Portugal”, Esta Ditosa Pátria,
Relógio d’Água, Lisboa, 1997, pp. 230-234.

[75] “Valha-nos
Deus”, p. 188. Aqui certamente por lapso, também encontrou uma segunda casa em Esta Ditosa Pátria, Relógio d’Água,
Lisboa, 1997, pp. 155-158.

[76]  “Desventuras de um Autodidacta”, p. 167.

[77]
“Saudades de Viena”, pp. 149-152. O conhecimento da História – como o
conhecimento do que quer que seja – nunca impediu ninguém de cometer os mais
desmiolados actos, mas o A. adverte, com razão, que “talvez um módico entendimento do passado, mesmo do passado próximo,
diluísse a convicção ingénua da absoluta originalidade do nosso tempo e
conseguisse evitar alguns erros, ilusões e asneiras.” – “Se não é por
isso...”, Esta Ditosa Pátria, p. 273.

[78] “O
Outro Centenário”, pp. 167-168.

[79] Era o
título do texto, justíssimo para a exploração do trabalho infantil com que se
fabricavam, e ainda fabricam, “campeões”.

[80]  Se tivesse que me aventurar numa opinião,
repegaria na sua “teoria do funil” (vg, Vasco Pulido Valente em entrevista a
Teresa Coelho, Pública de 9 de Dezembro de 2001, p. 32) – o seu
sucedâneo da bola de cristal. Quando “adivinhou” o futuro, é porque se limitou
a observar a espiral descendente até antever o seu inevitável ponto de saída.
Por um efeito de escala (não adianta explicar), no caso dos EUA nem o desenho
do funil é tão fácil de fazer, nem a descida pelo gargalo é impossível de
travar.

[81] “Ver
Washington pela Televisão”, “Desgostos de Família” e “Quem a Tem Chama-lhe
Sua”, pp. 169-180 – , por ordem, os primeiros três artigos publicados em O Independente.
[82] “Adeus, Gorbachov”, pp. 163-164. No texto
original seguiu a terminação da grafia inglesa (Gorbachev).

* No
original estava “democratização”.

[83] “A
Superstição Democrática”, p. 160.

[84] Presumivelmente
porque ia nele uma outra previsão que se revelou, a dizer o menos,
problemática: “Ou a CEE se dissolve ou os
actuais Doze baixavam à pouco invejável condição de estados clientes do Reich
renascido. A CEE presume uma Alemanha
dividida e não é concebível de outra maneira.”

[85]  A título indicativo: Sérvia (1992 – incluindo
o Montenegro; 2006, como entidade totalmente separada), Croácia (1991 – guerra
entre 1991 e 1995), Eslovénia (1990 – guerra em 1991), Bósnia e Herzegovina
(1995, após os acordos de Dayton – guerra entre 1992 e 1995), Montenegro (2006
– fim da federação constituída em 2003 com a Sérvia), Macedónia (1991) e a
República do Kosovo (2008, soberania ainda contestada – guerra entre 1996 e
1999).

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