Violência, sofá e pipocas

19-10-2018
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A exibição repetida de imagens violentas, sem contexto, tem um efeito simplificador e vulgarizador do intolerável. No seu sofá, os telespectadores habituam-se à s cenas repetidas do horror. Associam-nas a um espectáculo que apenas compromete “os outros”, os povos “selvagens” que pululam nas notícias. Quem as coloca no ar não procura nenhuma denúncia, serve apenas um produto fácil para grandes audiências. Uma espécie de lixo noticioso que apela aos nossos sentimentos, deixando a inteligência de fora. É sempre possível explorar de uma forma sensacionalista o horror, mas essa exibição é preguiçosa e não nos explica, por si só, nada das causas desse horror. O corpo destroçado de uma criança palestiniana é tão horroroso como o cadáver de uma criança israelita. O acto de mostrar esse horror não é argumento de uma parte contra a outra. Não nos mostra as razões do conflito. Não nos explica quem são os opressores e quem são os oprimidos. Como menu de telejornal, não passa de uma forma de desculpabilização dos bons espectadores, em relação aos actos que acontecem “lá fora”, nos territórios onde vivem esses povos “selvagens”, para quem a vida, dizem-nos, não tem o mesmo valor do que a nossa.

Estas imagens sem explicação, sem denúncia dos mecanismos e das cumplicidades que aprisionam estes povos, não passam de trash food noticioso.

Uma imagem precisa de um mediador. Não há imagens verdadeiras. Há testemunhos que contam o que aconteceu. O jornalista e o fotógrafo são aqueles que nos permitem raciocinar sobre a imagem. É o fotógrafo que nos garante que a jovem queimada a correr nua é vítima de um bombardeamento com napalm da força aérea norte-americana e não devido a um bombardeamento da artilharia norte vietnamita. É o olhar do fotógrafo que torna a imagem racional. A fotografia não tem toda a história em si. Gisèle Freund, na sua obra Fotografia e Sociedade, fala daquilo a que chamou a ilusão da objectividade da imagem. Exemplifica mostrando que vários conjuntos de imagens colocados numa ordem diferente ou legendados de uma outra forma podem dar informações contrárias.

Acresce que a actividade do jornalista de guerra é feita num território controverso. Numa espécie de limbo moral. O repórter é uma testemunha que escolhe não intervir no lugar do acontecimento. Quando vê um tipo a morrer não vai socorrê-lo. Escolheu transmitir essa imagem. O genial fotógrafo James Nachtwey disse um dia que um repórter tinha que saber usar a sua raiva como testemunho. Esta estranha testemunha, que no meio do inferno escolhe a composição perfeita para mostrar melhor alguém que agoniza, vende parte da alma pela possível denúncia do horror. No entanto, essa denúncia exige passar do conhecimento sensível para o inteligível. Exige um enquadramento. A simples exibição sem explicação do horror acaba por ser uma segunda morte da vítima. Não passa de uma mera venda do horror como mercadoria.

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A exibição repetida de imagens violentas, sem contexto, tem um efeito simplificador e vulgarizador do intolerável. No seu sofá, os telespectadores habituam-se à s cenas repetidas do horror. Associam-nas a um espectáculo que apenas compromete “os outros”, os povos “selvagens” que pululam nas notícias. Quem as coloca no ar não procura nenhuma denúncia, serve apenas um produto fácil para grandes audiências. Uma espécie de lixo noticioso que apela aos nossos sentimentos, deixando a inteligência de fora. É sempre possível explorar de uma forma sensacionalista o horror, mas essa exibição é preguiçosa e não nos explica, por si só, nada das causas desse horror. O corpo destroçado de uma criança palestiniana é tão horroroso como o cadáver de uma criança israelita. O acto de mostrar esse horror não é argumento de uma parte contra a outra. Não nos mostra as razões do conflito. Não nos explica quem são os opressores e quem são os oprimidos. Como menu de telejornal, não passa de uma forma de desculpabilização dos bons espectadores, em relação aos actos que acontecem “lá fora”, nos territórios onde vivem esses povos “selvagens”, para quem a vida, dizem-nos, não tem o mesmo valor do que a nossa.

Estas imagens sem explicação, sem denúncia dos mecanismos e das cumplicidades que aprisionam estes povos, não passam de trash food noticioso.

Uma imagem precisa de um mediador. Não há imagens verdadeiras. Há testemunhos que contam o que aconteceu. O jornalista e o fotógrafo são aqueles que nos permitem raciocinar sobre a imagem. É o fotógrafo que nos garante que a jovem queimada a correr nua é vítima de um bombardeamento com napalm da força aérea norte-americana e não devido a um bombardeamento da artilharia norte vietnamita. É o olhar do fotógrafo que torna a imagem racional. A fotografia não tem toda a história em si. Gisèle Freund, na sua obra Fotografia e Sociedade, fala daquilo a que chamou a ilusão da objectividade da imagem. Exemplifica mostrando que vários conjuntos de imagens colocados numa ordem diferente ou legendados de uma outra forma podem dar informações contrárias.

Acresce que a actividade do jornalista de guerra é feita num território controverso. Numa espécie de limbo moral. O repórter é uma testemunha que escolhe não intervir no lugar do acontecimento. Quando vê um tipo a morrer não vai socorrê-lo. Escolheu transmitir essa imagem. O genial fotógrafo James Nachtwey disse um dia que um repórter tinha que saber usar a sua raiva como testemunho. Esta estranha testemunha, que no meio do inferno escolhe a composição perfeita para mostrar melhor alguém que agoniza, vende parte da alma pela possível denúncia do horror. No entanto, essa denúncia exige passar do conhecimento sensível para o inteligível. Exige um enquadramento. A simples exibição sem explicação do horror acaba por ser uma segunda morte da vítima. Não passa de uma mera venda do horror como mercadoria.

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