Gato Preto, Gato Branco

06-08-2018
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Gato Preto, Gato Branco

Posso afirmar sem medo, dado estar amparado pela superficialidade de análise que todos me reconhecem, nunca ter existido nenhum político português tão obcecado pelo caminho-de-ferro como Fontes Pereira de Melo. E não me coíbo de acrescentar, nunca esquecendo a característica pessoal atrás referida, que Fontes Pereira de Melo era um político de direita. É verdade que abraçava algumas causas progressistas, que não dispensava o intervencionismo estatal, e que preferia o pragmatismo à doutrina, mas não é por isso que fica livre de pertencer à árvore genealógica da direita portuguesa. Não se entendem por isso os actuais remoques lançados pela esquerda aos seus descendentes ideológicos.

Num debate parlamentar sobre o Orçamento, Vieira da Silva, invocando Sérgio Godinho, afirmou que o PSD estava à espera do comboio na paragem do autocarro; quando eu pensava que era apenas um jogo de palavras e não uma crítica à falta de experiência com transportes públicos, eis que surge Fernanda Câncio a solicitar um pano encharcado na cara dos “betos do CDS” que tinham embarcado num comboio para denunciar os problemas do sector. Nunca tendo tido conhecimento de casos em que um proletário ou um camponês tenham sido mordidos numa carruagem da CP por um crocodilo em fuga do pólo Lacoste de um democrata-cristão, fico sem saber a que se deve a suposta incompatibilidade contemporânea entre betos e ferrovia.

Esta é, além de recente, uma contradição exclusiva do nosso país. Sem querer ser exaustivo, relembro que Cézanne, Manet e Caillebotte eram apaixonados por comboios e que muita da arte que produziram foi neles inspirada. Ora, o primeiro era filho de um banqueiro, o segundo um burguês parisiense do bairro de Saint-Germain-des-Prés, e o terceiro um herdeiro com os bolsos bem recheados. Já para não falar de Hercule Poirot, um dandy que trajava de uma maneira capaz de remeter António Lobo Xavier e Francisco Mendes da Silva para a categoria de maltrapilhos, e cujas maiores aventuras tiveram lugar numa linha ferroviária.

Seguindo um raciocínio alternativo, João Galamba, menos dado aos têxteis e aos líquidos, colocou a questão noutros termos: a direita não pode falar do estado lastimável do caminho-de-ferro uma vez que tinha planeado, em 2015, a entrada de investimento privado nos transportes públicos. Ou seja, para o deputado, o ponto fundamental – manter tudo no Estado – está salvaguardado; se os transportes funcionam ou não, isso já é acessório.

Quando Deng Xiaoping abriu a China à economia de mercado, afirmou, com grande sentido prático, que não importava se o gato era preto ou branco, o importante era que apanhasse ratos. Já João Galamba tem outra teoria: acima de tudo, interessa-lhe que o gato seja público. Nem sempre é assim, mas, neste caso concreto, parece evidente que os ratos estão com sorte.

Gato Preto, Gato Branco

Posso afirmar sem medo, dado estar amparado pela superficialidade de análise que todos me reconhecem, nunca ter existido nenhum político português tão obcecado pelo caminho-de-ferro como Fontes Pereira de Melo. E não me coíbo de acrescentar, nunca esquecendo a característica pessoal atrás referida, que Fontes Pereira de Melo era um político de direita. É verdade que abraçava algumas causas progressistas, que não dispensava o intervencionismo estatal, e que preferia o pragmatismo à doutrina, mas não é por isso que fica livre de pertencer à árvore genealógica da direita portuguesa. Não se entendem por isso os actuais remoques lançados pela esquerda aos seus descendentes ideológicos.

Num debate parlamentar sobre o Orçamento, Vieira da Silva, invocando Sérgio Godinho, afirmou que o PSD estava à espera do comboio na paragem do autocarro; quando eu pensava que era apenas um jogo de palavras e não uma crítica à falta de experiência com transportes públicos, eis que surge Fernanda Câncio a solicitar um pano encharcado na cara dos “betos do CDS” que tinham embarcado num comboio para denunciar os problemas do sector. Nunca tendo tido conhecimento de casos em que um proletário ou um camponês tenham sido mordidos numa carruagem da CP por um crocodilo em fuga do pólo Lacoste de um democrata-cristão, fico sem saber a que se deve a suposta incompatibilidade contemporânea entre betos e ferrovia.

Esta é, além de recente, uma contradição exclusiva do nosso país. Sem querer ser exaustivo, relembro que Cézanne, Manet e Caillebotte eram apaixonados por comboios e que muita da arte que produziram foi neles inspirada. Ora, o primeiro era filho de um banqueiro, o segundo um burguês parisiense do bairro de Saint-Germain-des-Prés, e o terceiro um herdeiro com os bolsos bem recheados. Já para não falar de Hercule Poirot, um dandy que trajava de uma maneira capaz de remeter António Lobo Xavier e Francisco Mendes da Silva para a categoria de maltrapilhos, e cujas maiores aventuras tiveram lugar numa linha ferroviária.

Seguindo um raciocínio alternativo, João Galamba, menos dado aos têxteis e aos líquidos, colocou a questão noutros termos: a direita não pode falar do estado lastimável do caminho-de-ferro uma vez que tinha planeado, em 2015, a entrada de investimento privado nos transportes públicos. Ou seja, para o deputado, o ponto fundamental – manter tudo no Estado – está salvaguardado; se os transportes funcionam ou não, isso já é acessório.

Quando Deng Xiaoping abriu a China à economia de mercado, afirmou, com grande sentido prático, que não importava se o gato era preto ou branco, o importante era que apanhasse ratos. Já João Galamba tem outra teoria: acima de tudo, interessa-lhe que o gato seja público. Nem sempre é assim, mas, neste caso concreto, parece evidente que os ratos estão com sorte.

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