Há 18 anos um voto misterioso lançava o caos no congresso da JS

19-12-2018
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Juventudes partidárias

Há 18 anos um voto misterioso lançava o caos no congresso da JS

Maria Begonha saiu vencedora, embora tenha havido menos delegados a votar nela do que aqueles que escolheram não o fazer. Desde 2000 que não se via um congresso tão polémico - na altura, uma guerra fratricida e um voto misterioso dividiram os jotinhas

Texto Mariana Lima Cunha

Foram semanas de turbulência que acabaram com um final mais ou menos feliz. Maria Begonha, eleita este fim de semana secretária-geral da Juventude Socialista, ganhou uma corrida em que, na verdade, não havia alternativa, uma vez que nunca se chegou a formalizar uma candidatura de oposição. Os discursos foram mornos, mas não viu o congresso que a elegeu manchado por discursos dos militantes que continuam a tentar impugnar a sua eleição - neste momento, corre uma providência cautelar nesse sentido.

No momento de votar, o apoio dos jovens socialistas não foi assim tão claro: se a nova líder contou com 72% dos votos dos 228 delegados, a verdade, como apontou o Observador, é que o verdadeiro universo de votantes era de 336 votantes. Ou seja, um terço dos jovens que podia ter votado decidiu não o fazer. Somando isto aos 47 votos brancos e 16 votos nulos, conclui-se que houve mais delegados da JS que preferiram não votar em Begonha (171) do que aqueles que decidiram fazê-lo (165).

Foto D.R.

É o desfecho de um desfiar de notícias que colocaram em causa o percurso e a credibilidade da candidata e que culminaram com a abertura de um inquérito do Ministério Público às incongruências do seu currículo, graças a uma queixa-crime apresentada por Gustavo Ambrósio, militante e apoiante de António José Seguro. Do seu lado, Maria Begonha contou com Pedro Nuno Santos, atual secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, a voltar à sua primeira casa - a JS - para defender a candidata. No fundo, o sinal do regresso de um confronto que, durante muitos anos, foi constante, cruzando duas linhas que depois se voltariam a digladiar pela liderança do partido-pai. A última vez que aconteceu, há 18 anos, correu mal para os dois lados e manchou a imagem da jota - talvez por isso, desde então tem havido sempre uma sucessão dinástica bem combinada, sem lugar a percalços. Até agora.

O voto que tramou Ana Catarina

Foi um papelinho apenas que representou o auge de uma guerra fratricida que dividiu a JS e deixou dirigentes nacionais do PS desconfortáveis. Até António Guterres, então primeiro-ministro, se viu obrigado a cancelar a presença numa sessão de encerramento que nem sequer chegou a acontecer. Mas a verdadeira origem do conflito não teve origem no papel que se tornaria célebre. Viria bem de trás.

A divisão teve origem, mais uma vez, no confronto de duas linhas que até há pouco tempo se enfrentaram no seio do próprio PS. Estávamos em 2000, o PS estava na poder e Jorge Sampaio preparava-se para vencer as presidenciais. Mas também os jotas se preparavam para ir a votos. Ana Catarina Mendes, hoje secretária-geral adjunta, e Jamila Madeira, deputada, eram colegas de bancada no Parlamento mas rivais na JS. A primeira representava a linha de António Costa (viria a ser sua diretora de campanha nas diretas que lhe deram a liderança do partido, em 2015); a segunda vinha das tropas de António José Seguro, ao lado de nomes como António Galamba, então secretário nacional do partido. Na corrida havia ainda um terceiro candidato, Rui Pedro Soares, que acusava ambas de estarem demasiado envolvidas nas guerras do aparelho. Mas foi precisamente um confronto no aparelho que determinou o desfecho daquelas eleições.

Sabia-se que a votação seria renhida. Talvez por isso, na semana anterior ao congresso, que aconteceu de 13 a 15 de maio de 2000, em Espinho, Ana Catarina Mendes decidiu revelar publicamente qual o volume dos apoios com que cada candidato contava então. Segundo a então deputada, tinha 46% dos delegados consigo, contra 37% de Jamila Madeira e 14% de Rui Pedro Soares. Os números não eram oficiais, com a comissão organizadora do congresso, presidida por António Galamba, a revelar apenas a elevada percentagem de indecisos (mais de 15%). E Jamila tinha do seu lado António Galamba, mas também outros sete deputados da bancada rosa, contra a candidata que era vista como a preferida na sede do Largo do Rato, segundo contava a edição do “Expresso” de 18 de março daquele ano.

Por um voto se ganha, por um voto se perde

Sérgio Sousa Pinto, então líder da JS, decidiu não se pronunciar sobre as candidatas à sua sucessão, tendo afirmado publicamente preferir que a direção da JS se entendesse para apresentar uma candidatura única. Longe disso. Mal arrancou o congresso, Rui Pedro Soares desistiu em favor de Jamila Madeira, engrossando as fileiras da deputada do Algarve. Ao mesmo tempo, Ana Catarina queixava-se de ver os mandatos de delegados que a apoiavam inviabilizados. A contagem das espingardas parecia cada vez mais renhida.

Foi neste contexto que se chegou ao papel da discórdia. Contaram-se os votos em uma, duas, três urnas. À terceira apareceu um voto em Jamila que, na verdade e tendo em conta as descrições feitas à época, não seria totalmente claro, podendo ser contado como nulo. Não houve acordo. Voltou a pensar-se no assunto quando se contaram os votos da quinta e última urna: afinal, sem aquele papel as candidatas estariam empatadas. Jamila tinha 318 votos, Ana Catarina 317. E a segunda reclamava que o voto decisivo para o outro lado fosse considerado nulo.

A atual secretária-geral adjunta do PS chegaria mesmo a pedir que a votação fosse repetida e a sessão de encerramento - na qual António Guterres, avisado por António Galamba sobre a confusão instalada, não chegou a aparecer - fosse transferida para um hotel lisboeta. Mas nessa manhã já Jamila declarava vitória: “Por um voto se ganha, por um voto se perde”, diria então aos jornalistas, como que para encerrar a questão.

Nos meses seguintes, a candidatura de Ana Catarina continuaria a envidar esforços para reverter o resultado do congresso, tendo chegado a apresentar requerimentos para que um conclave extraordinário fosse marcado e as eleições repetidas. Sem resultados. Na jota, Jamila ganhou e chegou até a cumprir um segundo mandato. No PS, ganhou Ana Catarina, apoiante daquele que é hoje primeiro-ministro. Nunca mais se viu na JS uma guerra que expusesse feridas internas daquela maneira, com a lógica da sucessão dinástica a instalar-se a partir daí e Pedro Nuno Santos, que tomou posse em 2004, a passar a tomar conta do aparelho. Foi preciso chegar a 2018 para que um congresso da JS voltasse a dar que falar.

Juventudes partidárias

Há 18 anos um voto misterioso lançava o caos no congresso da JS

Maria Begonha saiu vencedora, embora tenha havido menos delegados a votar nela do que aqueles que escolheram não o fazer. Desde 2000 que não se via um congresso tão polémico - na altura, uma guerra fratricida e um voto misterioso dividiram os jotinhas

Texto Mariana Lima Cunha

Foram semanas de turbulência que acabaram com um final mais ou menos feliz. Maria Begonha, eleita este fim de semana secretária-geral da Juventude Socialista, ganhou uma corrida em que, na verdade, não havia alternativa, uma vez que nunca se chegou a formalizar uma candidatura de oposição. Os discursos foram mornos, mas não viu o congresso que a elegeu manchado por discursos dos militantes que continuam a tentar impugnar a sua eleição - neste momento, corre uma providência cautelar nesse sentido.

No momento de votar, o apoio dos jovens socialistas não foi assim tão claro: se a nova líder contou com 72% dos votos dos 228 delegados, a verdade, como apontou o Observador, é que o verdadeiro universo de votantes era de 336 votantes. Ou seja, um terço dos jovens que podia ter votado decidiu não o fazer. Somando isto aos 47 votos brancos e 16 votos nulos, conclui-se que houve mais delegados da JS que preferiram não votar em Begonha (171) do que aqueles que decidiram fazê-lo (165).

Foto D.R.

É o desfecho de um desfiar de notícias que colocaram em causa o percurso e a credibilidade da candidata e que culminaram com a abertura de um inquérito do Ministério Público às incongruências do seu currículo, graças a uma queixa-crime apresentada por Gustavo Ambrósio, militante e apoiante de António José Seguro. Do seu lado, Maria Begonha contou com Pedro Nuno Santos, atual secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, a voltar à sua primeira casa - a JS - para defender a candidata. No fundo, o sinal do regresso de um confronto que, durante muitos anos, foi constante, cruzando duas linhas que depois se voltariam a digladiar pela liderança do partido-pai. A última vez que aconteceu, há 18 anos, correu mal para os dois lados e manchou a imagem da jota - talvez por isso, desde então tem havido sempre uma sucessão dinástica bem combinada, sem lugar a percalços. Até agora.

O voto que tramou Ana Catarina

Foi um papelinho apenas que representou o auge de uma guerra fratricida que dividiu a JS e deixou dirigentes nacionais do PS desconfortáveis. Até António Guterres, então primeiro-ministro, se viu obrigado a cancelar a presença numa sessão de encerramento que nem sequer chegou a acontecer. Mas a verdadeira origem do conflito não teve origem no papel que se tornaria célebre. Viria bem de trás.

A divisão teve origem, mais uma vez, no confronto de duas linhas que até há pouco tempo se enfrentaram no seio do próprio PS. Estávamos em 2000, o PS estava na poder e Jorge Sampaio preparava-se para vencer as presidenciais. Mas também os jotas se preparavam para ir a votos. Ana Catarina Mendes, hoje secretária-geral adjunta, e Jamila Madeira, deputada, eram colegas de bancada no Parlamento mas rivais na JS. A primeira representava a linha de António Costa (viria a ser sua diretora de campanha nas diretas que lhe deram a liderança do partido, em 2015); a segunda vinha das tropas de António José Seguro, ao lado de nomes como António Galamba, então secretário nacional do partido. Na corrida havia ainda um terceiro candidato, Rui Pedro Soares, que acusava ambas de estarem demasiado envolvidas nas guerras do aparelho. Mas foi precisamente um confronto no aparelho que determinou o desfecho daquelas eleições.

Sabia-se que a votação seria renhida. Talvez por isso, na semana anterior ao congresso, que aconteceu de 13 a 15 de maio de 2000, em Espinho, Ana Catarina Mendes decidiu revelar publicamente qual o volume dos apoios com que cada candidato contava então. Segundo a então deputada, tinha 46% dos delegados consigo, contra 37% de Jamila Madeira e 14% de Rui Pedro Soares. Os números não eram oficiais, com a comissão organizadora do congresso, presidida por António Galamba, a revelar apenas a elevada percentagem de indecisos (mais de 15%). E Jamila tinha do seu lado António Galamba, mas também outros sete deputados da bancada rosa, contra a candidata que era vista como a preferida na sede do Largo do Rato, segundo contava a edição do “Expresso” de 18 de março daquele ano.

Por um voto se ganha, por um voto se perde

Sérgio Sousa Pinto, então líder da JS, decidiu não se pronunciar sobre as candidatas à sua sucessão, tendo afirmado publicamente preferir que a direção da JS se entendesse para apresentar uma candidatura única. Longe disso. Mal arrancou o congresso, Rui Pedro Soares desistiu em favor de Jamila Madeira, engrossando as fileiras da deputada do Algarve. Ao mesmo tempo, Ana Catarina queixava-se de ver os mandatos de delegados que a apoiavam inviabilizados. A contagem das espingardas parecia cada vez mais renhida.

Foi neste contexto que se chegou ao papel da discórdia. Contaram-se os votos em uma, duas, três urnas. À terceira apareceu um voto em Jamila que, na verdade e tendo em conta as descrições feitas à época, não seria totalmente claro, podendo ser contado como nulo. Não houve acordo. Voltou a pensar-se no assunto quando se contaram os votos da quinta e última urna: afinal, sem aquele papel as candidatas estariam empatadas. Jamila tinha 318 votos, Ana Catarina 317. E a segunda reclamava que o voto decisivo para o outro lado fosse considerado nulo.

A atual secretária-geral adjunta do PS chegaria mesmo a pedir que a votação fosse repetida e a sessão de encerramento - na qual António Guterres, avisado por António Galamba sobre a confusão instalada, não chegou a aparecer - fosse transferida para um hotel lisboeta. Mas nessa manhã já Jamila declarava vitória: “Por um voto se ganha, por um voto se perde”, diria então aos jornalistas, como que para encerrar a questão.

Nos meses seguintes, a candidatura de Ana Catarina continuaria a envidar esforços para reverter o resultado do congresso, tendo chegado a apresentar requerimentos para que um conclave extraordinário fosse marcado e as eleições repetidas. Sem resultados. Na jota, Jamila ganhou e chegou até a cumprir um segundo mandato. No PS, ganhou Ana Catarina, apoiante daquele que é hoje primeiro-ministro. Nunca mais se viu na JS uma guerra que expusesse feridas internas daquela maneira, com a lógica da sucessão dinástica a instalar-se a partir daí e Pedro Nuno Santos, que tomou posse em 2004, a passar a tomar conta do aparelho. Foi preciso chegar a 2018 para que um congresso da JS voltasse a dar que falar.

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