Governo foi de escola em escola explicar medidas aos diretores. Ouviu queixas de falta de recursos e desmotivação

21-03-2019
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Numa espécie de roadshow, secretário de Estado foi explicar aos diretores como as políticas educativas se encaixam umas nas outras. Ouviu que as leis chegaram tarde e que faltam meios para as aplicar.

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A voz dos diretores ouve-se no final. Há críticas, há dúvidas e há aplausos. Há adeptos do copo meio vazio e há adeptos do copo meio cheio. Há discursos de exaltação às políticas educativas do atual governo e há perguntas feitas com a voz carregada de desconfiança em relação ao caminho que está a ser feito. Na escola secundária de Pombal, cerca de 100 diretores de escolas ouviram o secretário de Estado da Educação, João Costa, explicar como as políticas educativas do governo de António Costa se encaixam umas nas outras. Foi o quinto de oito encontros regionais, que se espalharam pelos meses de novembro e dezembro, e que já terminaram. No final de cada encontro, os diretores disparam todo o tipo de perguntas: falam de falta de recursos, de atrasos na legislação, da falta de motivação dos professores, do envelhecimento do corpo docente, da necessidade de autonomia, de como se chega à inclusão e ao sucesso escolar.

Na plateia, no encontro a que o Observador assistiu no início de dezembro, uma diretora pede autonomia ao Ministério de Educação para reduzir as suas turmas. Queixa-se de que a autonomia existe apenas no papel e que teve as suas turmas reduzidas reprovadas pela DGEstE. “Numa única turma, tenho uma criança com problemas oncológicos, uma com problemas cardíacos, quatro crianças que vieram do 4.º ano das necessidades educativas especiais, dois hiperativos, duas crianças às quais faleceram os pais recentemente. São bombas-relógio. Com turmas assim, como é que posso fazer a flexibilidade?”, questiona.

É a deixa para João Costa falar do lego da educação, repetindo o discurso que tem feito nas escolas de norte a sul do país. “Não é por ter uma turma assim que não pode fazer flexibilidade. É exatamente por ter uma turma assim que tem de fazer flexibilidade”, sublinha o secretário de Estado. Está na altura de fazer rewind e voltar ao início da sessão, uma hora antes dos diretores confrontarem o governante, e perceber porque é que a flexibilidade é, no desenho deste puzzle construído pelo Ministério da Educação, apenas mais uma ferramenta.

“Há aquilo a que eu chamo de escolas hiperativas. Um diretor dizia-me que na sua escola tem clube de leitura, provas de ciclismo, karaté, tem de tudo, mas não tem recursos para a promoção do sucesso escolar. O que lhe respondi é que se estes clubes não estão lá para promover sucesso escolar, não estão lá para nada. E é esta integração que é preciso nas escolas e que quisemos verter para a legislação.” João Costa, secretário de Estado da Educação

Flexibilidade curricular é um meio, não um fim

Antes de começar o encontro, durante os 170 quilómetros que separam Lisboa de Pombal, o secretário de Estado explica ao Observador que uma das dificuldades que sente existir do lado dos diretores é que estes olham para diferentes medidas da política educativa do governo PS como peças avulsas. Os encontros regionais aparecem exatamente para passar a mensagem de que o puzzle é só um e que, depois de montado, o que surge na visão macro é a educação inclusiva de mãos dadas com o sucesso escolar. Ao microscópio surgem as ferramentas: a flexibilidade curricular, o desporto escolar, as residências artísticas, os centros de Ciência Viva, a rede de bibliotecas escolares. E todos devem servir para o mesmo, promover o sucesso. Se assim não for, não fazem sentido, defende.

“Há aquilo a que eu chamo de escolas hiperativas. Um diretor dizia-me que, na sua escola, tem clube de leitura, provas de ciclismo, karaté, tem de tudo, mas não tem recursos para a promoção do sucesso escolar. O que lhe respondi é que se estes clubes não estão lá para promover sucesso escolar, não estão lá para nada. E é esta integração que é preciso nas escolas e que quisemos verter para a legislação”, diz ao Observador.

Frente à centena de diretores, João Costa projeta na parede uma imagem com vária peças de legos. Lêem-se várias palavras: inclusão, perfil de cidadania e sucesso. “Isto é um lego, com peças que encaixam e que podem ser desencaixadas e reconfiguradas”, diz o secretário de Estado aos diretores. “A escola não está condenada às medidas que adota. Isto é um processo dinâmico. Se faço uma escolha em setembro e, quando chego ao final do primeiro período, vejo que não está a resultar, tenho de reconfigurar. Também por isso, quisemos que a legislação inscrevesse a auscultação aos alunos, já que, muitas vezes, eles são os primeiros a saber dizer o que está e não está a funcionar.”

A flexibilidade curricular, uma medida que teve tanto de emblemática como de polémica, não aparece ali projetada na parede.

Não era esta uma peça central do puzzle? “Às vezes pensa-se que o objetivo da flexibilidade é trabalhar de forma diferente. Não é. O objetivo é chegar às metas do diploma da Educação Inclusiva, porque não basta ter um currículo bonito, ele tem de chegar a todos os alunos”, sustenta João Costa, explicando que a flexibilidade foi criada para tornar a inclusão possível.

Era preciso dar autonomia às escolas para que criassem modelos pedagógicos que chegassem aos alunos com dificuldades, que pudessem promover o seu sucesso escolar. E, para fazê-lo, defende, esse modelos não podiam ser criados pela administração central, tinham de nascer localmente. O relatório Education at a Glance, da OCDE, relembra o governante, refere que Portugal continua a ser um dos países onde as decisões pedagógicas são mais tomadas a nível central (77% do total), quando se sabe que as decisões locais são mais eficazes.

O 54 e o 55: dois decretos, muitas críticas

“O desenho de políticas educativas começou em dezembro de 2015. E esse trabalho levou aos dois decretos lei que são o centro da mudança que se vive nas escolas e cujo objetivo é tentar encontrar respostas para carências que ainda temos no sistema educativo”, explica o secretário de Estado. A carência principal é o sucesso escolar. Os decretos lei são o 54 e o 55, os diplomas da Educação Inclusiva e da Flexibilidade Curricular, que muitas críticas têm levantado e que foram também os motores das principais mudanças deste ano letivo.

Desde logo, o facto de ambos terem sido publicados a um mês do início do ano letivo gerou um coro de críticas. No Parlamento, o Bloco de Esquerda, mesmo assumindo que este era “um passo na direção certa”, tentou adiar a aplicação do diploma da Educação Inclusiva, sem sucesso. A ideia foi também defendida pelos sindicatos de professores, com a Fenprof a pedir que a sua entrada em vigor fosse adiada para o ano letivo seguinte. A justificação era de que as escolas não teriam tempo suficiente para se apropriar do diploma.

A estas críticas, o secretário de Estado da Educação responde com “calma”. “Porquê adiar?”, diz, retribuindo a pergunta ao Observador. “Qual é a justificação? Estamos a falar de inclusão, de direitos humanos e os direitos humanos não se adiam. É importante perceber que não há uma lógica impositiva da parte do ministério que obrigue as escolas a fazerem tudo à pressa, de hoje para amanhã. É assumido por este Governo que as escolas podem levar o seu tempo. A Educação Inclusiva é para ser feita com calma, embora para quem está excluído seja urgente a inclusão. Queremos que este seja um ano de apropriação das escolas”, sublinha.

Outra crítica várias vezes feita é que por serem demasiado ambiciosos, ambos os decretos lei obrigavam a ter mais recursos afetados às escolas. Foi essa, aliás, a recomendação do Conselho Nacional de Educação no seu parecer ao diploma: reforçar os recursos humanos nas escolas.

“É normal que as escolas queiram mais recursos e que batam à porta de quem lhes pode dar mais, mas isso não as deve impedir de atuar. Dou sempre o exemplo das famílias que tiveram um filho com deficiência e que não ficaram à espera das condições ideais para o começar a educar. Nós queremos ter as condições ideais nas escolas, mas não tê-las não deve ser impeditivo de começarmos a fazer o que é possível. E há muitas escolas que conseguem”, sublinha o governante.

Entre os dedos acusadores ao diploma que veio substituir o da Educação Especial, houve também quem apontasse casos de crianças com necessidades educativas especiais — definição que desaparece na nova lei — que ficaram sem apoios. As denúncias eram da CNIPE (Confederação Nacional Independente de Pais) e da Fenprof que, mais uma vez, denunciavam a falta de tempo das escolas para se preparar para este novo diploma.

“Nós temos uma equipa, DGE e DGEstE, que faz o acompanhamento aluno a aluno de todos os casos que nos são reportados. Sempre que haja um problema, seja qual for a via — notícia de jornal, mensagem no Facebook — vamos ver o que se passa. Num universo de 87 mil crianças com necessidades educativas especiais, tínhamos, em outubro, exposição de 35 casos. Claro que cada caso é um caso a mais. Na generalidade, não eram exposições diferentes das que existiam com o decreto lei 3/2008. Mas há opções das escolas que podem ser questionadas. Choca-me muito quando um aluno com deficiência é mandado para casa porque há dois funcionários de baixa. Porque é que foi este? Não era melhor ir a turma do 7.º ano? São decisões difíceis que as escolas têm de fazer. Quando falamos de inclusão, não é só educar os excluídos, é também preciso educar os incluídos”, defende João Costa.

Às escolas, diz, o Ministério deu sempre o mesmo recado. “Há miúdos que precisam de medidas muito dirigidas, que precisam de ter um funcionário a tempo inteiro. Quando essa é a solução, isso não é questionado. O que dizemos às escolas é que, enquanto reavaliam, devem manter tudo o que alunos tinham antes. Não há razão para os miúdos ficarem sem apoios.”

Por outro lado, João Costa acredita que a inclusão não se decreta. “Há questões que são de mentalidade: não posso ter pais a dizer que não querem outras etnias na turma da filha, ou que as crianças com deficiência atrasam a aprendizagem do filho. Isto existe, é real e não se muda por decreto. Grande parte deste diploma requer uma apropriação progressiva. O pressuposto deste diploma é que todos temos o potencial de aprender.”

“É normal que as escolas queiram mais recursos e que batam à porta de quem lhes pode dar mais, mas isso não as deve impedir de atuar. Dou sempre o exemplo das famílias que tiveram um filho com deficiência e que não ficaram à espera das condições ideais para o começar a educar. Nós queremos ter as condições ideais nas escolas, mas não tê-las não deve ser impeditivo de começarmos a fazer o que é possível. E há muitas escolas que conseguem” João Costa, secretário de Estado da Educação

Missão das escolas: um problema de sucesso e não de acesso

Se todos temos potencial para aprender, todos temos potencial para ter sucesso. Daí que o diploma da Educação Inclusiva, explica João Costa, tenha de andar de mão dada com o sucesso escolar de todos os alunos, olhando com especial atenção para os que têm dificuldades. E foi na iniciativa A Escola Treme, durante um simulacro de sismo, que o secretário de Estado diz ter percebido a diferença entre as escolas que integram e as escolas que incluem alunos.

“Havia duas turmas de 2.º ano e em ambas havia alunos em cadeiras de rodas. Na primeira, quando começou o simulacro, um estudante foi buscar o colega à cadeira de rodas e levou-o para debaixo de uma carteira, protegendo-o com o corpo. Na outra, uma funcionária limitou-se a virar a cadeira de forma a que o miúdo visse o que estava a acontecer. No final, eu disse aos alunos que aquele estudante tinha levado com o teto na cabeça. A resposta que ouvi é que ele não fazia parte do exercício. A primeira turma incluiu, a segunda integrou. É evidente que a primeira turma teve muito mais trabalho, mas todos cresceram mais.”

Apesar disso, o secretário de Estado defende que Portugal tem motivos para se congratular já que 97% das crianças e jovens com deficiência estão na escola, quando em França, por exemplo, a meta é chegar aos 50%. Este é um caminho difícil de fazer, assume João Costa, já que a nova legislação é muito exigente e desafiante, mas aproveita para lembrar que em 44 anos de democracia, a evolução de Portugal na educação foi tão substancial que se tornou um case study internacional.

“É um dos eternos paradoxos da educação: todos queremos que alguma coisa mude, mas todos queremos estabilidade. Precisamos de amadurecer as ideias, claro, mas os alunos que estão excluídos não podem esperar pelos dez anos em que vamos todos estar a pensar. Os 44 anos de resultados muito bons não se conseguiram com conformismo. A dada altura alguém resolveu criar uma rede pública de educação pré-escolar, uma rede de bibliotecas escolares… Podia-se ter pensado ‘que maçada ter de fazer isto’. Não foi o que aconteceu. Se temos estes resultados é porque fomos dando passos, fomos experimentando”, sustenta.

Por outro lado, sublinha que as medidas de caráter geral — como a rede de pré-escolar ou a escolaridade obrigatória — atingiram o limite da sua eficácia. “Neste momento, o movimento que tem de se fazer é de localização. Temos um problema global, mas as medidas têm de ser locais. Se pensarmos só na escolaridade obrigatória, nós não temos um problema de acesso, temos um problema de sucesso. Os miúdos estão lá, mas depois de estarem lá, o que é que lhes acontece? O nosso desafio já não é garantir que todos vão à escola, mas que todos saem da escola com sucesso.”

Os números, do próprio Ministério da Educação, mostram que 35% dos alunos não terminam o ensino secundário dentro do tempo previsto e que 78% dos estudantes mais carenciados não têm percursos de sucesso. “Não podemos dizer que é um problema dos alunos, só seria se não houvesse um padrão. Mas o padrão é sempre o mesmo: o contexto socioeconómico da família. E isso mostra que o que temos aqui é um problema de justiça social, e como vivemos num Estado social de direito é obrigação do Estado desenhar políticas para resolver esta situação”, argumenta João Costa.

Perfil do aluno, outra peça do lego para construir sucesso

A primeira parte da aula está dada. Aos cerca de cem diretores, João Costa já explicou que o cerne das políticas educativas do governo de António Costa é conseguir que todos os alunos façam o seu percurso escolar com sucesso. Resta saber o que é sucesso, na opinião do Executivo socialista.

Os legos continuam em pano de fundo. “O grande outro objetivo destas políticas é cumprir o Perfil do Aluno. Quando falamos de sucesso, muitas vezes esquecemos-nos de definir o que é sucesso e reduzimos tudo a uma nota. O que nós queremos é incluir para o sucesso, e sucesso significa cumprir o Perfil do Aluno.” A par do saber e do conhecimento que cada aluno deve adquirir, este documento estipula quais as competências que cada estudante deve ter no final do ensino obrigatório, apontando para um perfil de cidadão humanista com consciência ambiental, pensamento crítico e criativo, e dotado de literacia cultural, científica e tecnológica.

“Queremos formar cidadãos e não apenas máquinas reprodutoras de conhecimento”, diz o secretário de Estado, defendendo que, a partir daqui, os diretores podem começar a pegar nas várias peças coloridas para construir um lego à medida dos seus alunos. “Aquilo que não podemos continuar a fazer é viver num ensino universal, obrigatório, gratuito, com a ideia de que quem está na escola é tudo igual. São todos diferentes. É isso que dá riqueza às escolas.”

“Há questões de carreira que faz com que os professores se sintam maltratados. Mas demos início ao processo de descongelamento das carreiras, fizemos um investimento de cerca de 120 milhões em formação contínua e acho que isto são sinais inequívocos de uma confiança muito grande que este Governo tem nos professores. É também um sinal que transmitimos à sociedade: é preciso respeitar os professores." João Costa, secretário de Estado da Educação

O que pedem os diretores: recursos e estabilidade

No encontro a que o Observador assistiu, a fase de perguntas dos diretores centrou-se muito no tamanho das turmas e no calendário escolar. Mas nem sempre as questões ficam por aqui. O secretário de Estado conta que a falta de recursos é sempre um tema em cima da mesa, assim como a desconfiança com a estabilidade política. Com estes diplomas, acredita que o Governo conseguiu reunir consensos na Assembleia da República, o que permitirá que perdurem no tempo. Outras questões levantadas estão ligadas às carreiras dos professores.

“Surge muitas vezes o problema da estabilidade do corpo docente. Este ano, tivemos um concurso extraordinário de professores, por decisão da Assembleia da República, e contra a vontade do governo. Muitos diretores que estiveram no projeto piloto da flexibilidade, criaram equipas, formaram-nas e este ano perderam-nas. Mas, com todas as falhas que tem, o concurso de professores é eficaz, embora ainda mereça uma reflexão aprofundada. Ninguém contrata tão rapidamente na administração pública”, defende.

Perguntas sobre carreiras congeladas, pasta da secretária de Estado adjunta da Educação, Alexandra Leitão, também aparecem. “Fala-se sempre das questões transversais de motivação dos professores.”

Motivação essa que poderia estar melhor se o diferendo das carreiras congeladas fosse resolvido? O secretário de Estado contorna a pergunta: “Há uma imagem negativa dos professores que foi alimentada por alguns governantes, de que esta é uma classe que têm muitas férias, que não querem saber dos alunos. São mais de 100 mil professores e, entre eles, há de tudo: excelentes, péssimos e a mediania. Na generalidade, são pessoas muito empenhadas e o conflito das carreiras fica à porta da sala de aulas. Mas a verdade é que se construiu esta imagem negativa dos professores e é importante reverter isso.”

No seu mais recente relatório sobre Portugal, a OCDE concluiu que os professores se sentem maltratados em Portugal. João Costa não discorda. “Há questões de carreira que fazem com que os professores se sintam maltratados. Mas demos início ao processo de descongelamento das carreiras, fizemos um investimento de cerca de 120 milhões em formação contínua e acho que isto são sinais inequívocos de uma confiança muito grande que este Governo tem nos professores. É também um sinal que transmitimos à sociedade: é preciso respeitar os professores. Eles são peças-chave na consolidação de uma democracia e merecem respeito. Mas não podemos ter políticos a passar à sociedade uma imagem negativa dos professores, nem podemos ter uma imprensa a alimentar a ideia de que são uns malandros. A mensagem que tem de passar é esta: respeitemos esta classe porque a ela devemos muito daquilo que somos hoje.”

Não será essa a imagem que está a chegar aos professores, que, pelo contrário, veem a forma como o governo geriu o processo de descongelamento das carreiras como um desrespeito pela classe. O braço de ferro continuou já esta terça-feira, com mais uma reunião entre os sindicatos e o Ministério da Educação. E, como nas anteriores, acabou sem acordo.

Os professores já tinham avisado que, a ser assim, avançam para tribunal já em janeiro.

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Numa espécie de roadshow, secretário de Estado foi explicar aos diretores como as políticas educativas se encaixam umas nas outras. Ouviu que as leis chegaram tarde e que faltam meios para as aplicar.

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A voz dos diretores ouve-se no final. Há críticas, há dúvidas e há aplausos. Há adeptos do copo meio vazio e há adeptos do copo meio cheio. Há discursos de exaltação às políticas educativas do atual governo e há perguntas feitas com a voz carregada de desconfiança em relação ao caminho que está a ser feito. Na escola secundária de Pombal, cerca de 100 diretores de escolas ouviram o secretário de Estado da Educação, João Costa, explicar como as políticas educativas do governo de António Costa se encaixam umas nas outras. Foi o quinto de oito encontros regionais, que se espalharam pelos meses de novembro e dezembro, e que já terminaram. No final de cada encontro, os diretores disparam todo o tipo de perguntas: falam de falta de recursos, de atrasos na legislação, da falta de motivação dos professores, do envelhecimento do corpo docente, da necessidade de autonomia, de como se chega à inclusão e ao sucesso escolar.

Na plateia, no encontro a que o Observador assistiu no início de dezembro, uma diretora pede autonomia ao Ministério de Educação para reduzir as suas turmas. Queixa-se de que a autonomia existe apenas no papel e que teve as suas turmas reduzidas reprovadas pela DGEstE. “Numa única turma, tenho uma criança com problemas oncológicos, uma com problemas cardíacos, quatro crianças que vieram do 4.º ano das necessidades educativas especiais, dois hiperativos, duas crianças às quais faleceram os pais recentemente. São bombas-relógio. Com turmas assim, como é que posso fazer a flexibilidade?”, questiona.

É a deixa para João Costa falar do lego da educação, repetindo o discurso que tem feito nas escolas de norte a sul do país. “Não é por ter uma turma assim que não pode fazer flexibilidade. É exatamente por ter uma turma assim que tem de fazer flexibilidade”, sublinha o secretário de Estado. Está na altura de fazer rewind e voltar ao início da sessão, uma hora antes dos diretores confrontarem o governante, e perceber porque é que a flexibilidade é, no desenho deste puzzle construído pelo Ministério da Educação, apenas mais uma ferramenta.

“Há aquilo a que eu chamo de escolas hiperativas. Um diretor dizia-me que na sua escola tem clube de leitura, provas de ciclismo, karaté, tem de tudo, mas não tem recursos para a promoção do sucesso escolar. O que lhe respondi é que se estes clubes não estão lá para promover sucesso escolar, não estão lá para nada. E é esta integração que é preciso nas escolas e que quisemos verter para a legislação.” João Costa, secretário de Estado da Educação

Flexibilidade curricular é um meio, não um fim

Antes de começar o encontro, durante os 170 quilómetros que separam Lisboa de Pombal, o secretário de Estado explica ao Observador que uma das dificuldades que sente existir do lado dos diretores é que estes olham para diferentes medidas da política educativa do governo PS como peças avulsas. Os encontros regionais aparecem exatamente para passar a mensagem de que o puzzle é só um e que, depois de montado, o que surge na visão macro é a educação inclusiva de mãos dadas com o sucesso escolar. Ao microscópio surgem as ferramentas: a flexibilidade curricular, o desporto escolar, as residências artísticas, os centros de Ciência Viva, a rede de bibliotecas escolares. E todos devem servir para o mesmo, promover o sucesso. Se assim não for, não fazem sentido, defende.

“Há aquilo a que eu chamo de escolas hiperativas. Um diretor dizia-me que, na sua escola, tem clube de leitura, provas de ciclismo, karaté, tem de tudo, mas não tem recursos para a promoção do sucesso escolar. O que lhe respondi é que se estes clubes não estão lá para promover sucesso escolar, não estão lá para nada. E é esta integração que é preciso nas escolas e que quisemos verter para a legislação”, diz ao Observador.

Frente à centena de diretores, João Costa projeta na parede uma imagem com vária peças de legos. Lêem-se várias palavras: inclusão, perfil de cidadania e sucesso. “Isto é um lego, com peças que encaixam e que podem ser desencaixadas e reconfiguradas”, diz o secretário de Estado aos diretores. “A escola não está condenada às medidas que adota. Isto é um processo dinâmico. Se faço uma escolha em setembro e, quando chego ao final do primeiro período, vejo que não está a resultar, tenho de reconfigurar. Também por isso, quisemos que a legislação inscrevesse a auscultação aos alunos, já que, muitas vezes, eles são os primeiros a saber dizer o que está e não está a funcionar.”

A flexibilidade curricular, uma medida que teve tanto de emblemática como de polémica, não aparece ali projetada na parede.

Não era esta uma peça central do puzzle? “Às vezes pensa-se que o objetivo da flexibilidade é trabalhar de forma diferente. Não é. O objetivo é chegar às metas do diploma da Educação Inclusiva, porque não basta ter um currículo bonito, ele tem de chegar a todos os alunos”, sustenta João Costa, explicando que a flexibilidade foi criada para tornar a inclusão possível.

Era preciso dar autonomia às escolas para que criassem modelos pedagógicos que chegassem aos alunos com dificuldades, que pudessem promover o seu sucesso escolar. E, para fazê-lo, defende, esse modelos não podiam ser criados pela administração central, tinham de nascer localmente. O relatório Education at a Glance, da OCDE, relembra o governante, refere que Portugal continua a ser um dos países onde as decisões pedagógicas são mais tomadas a nível central (77% do total), quando se sabe que as decisões locais são mais eficazes.

O 54 e o 55: dois decretos, muitas críticas

“O desenho de políticas educativas começou em dezembro de 2015. E esse trabalho levou aos dois decretos lei que são o centro da mudança que se vive nas escolas e cujo objetivo é tentar encontrar respostas para carências que ainda temos no sistema educativo”, explica o secretário de Estado. A carência principal é o sucesso escolar. Os decretos lei são o 54 e o 55, os diplomas da Educação Inclusiva e da Flexibilidade Curricular, que muitas críticas têm levantado e que foram também os motores das principais mudanças deste ano letivo.

Desde logo, o facto de ambos terem sido publicados a um mês do início do ano letivo gerou um coro de críticas. No Parlamento, o Bloco de Esquerda, mesmo assumindo que este era “um passo na direção certa”, tentou adiar a aplicação do diploma da Educação Inclusiva, sem sucesso. A ideia foi também defendida pelos sindicatos de professores, com a Fenprof a pedir que a sua entrada em vigor fosse adiada para o ano letivo seguinte. A justificação era de que as escolas não teriam tempo suficiente para se apropriar do diploma.

A estas críticas, o secretário de Estado da Educação responde com “calma”. “Porquê adiar?”, diz, retribuindo a pergunta ao Observador. “Qual é a justificação? Estamos a falar de inclusão, de direitos humanos e os direitos humanos não se adiam. É importante perceber que não há uma lógica impositiva da parte do ministério que obrigue as escolas a fazerem tudo à pressa, de hoje para amanhã. É assumido por este Governo que as escolas podem levar o seu tempo. A Educação Inclusiva é para ser feita com calma, embora para quem está excluído seja urgente a inclusão. Queremos que este seja um ano de apropriação das escolas”, sublinha.

Outra crítica várias vezes feita é que por serem demasiado ambiciosos, ambos os decretos lei obrigavam a ter mais recursos afetados às escolas. Foi essa, aliás, a recomendação do Conselho Nacional de Educação no seu parecer ao diploma: reforçar os recursos humanos nas escolas.

“É normal que as escolas queiram mais recursos e que batam à porta de quem lhes pode dar mais, mas isso não as deve impedir de atuar. Dou sempre o exemplo das famílias que tiveram um filho com deficiência e que não ficaram à espera das condições ideais para o começar a educar. Nós queremos ter as condições ideais nas escolas, mas não tê-las não deve ser impeditivo de começarmos a fazer o que é possível. E há muitas escolas que conseguem”, sublinha o governante.

Entre os dedos acusadores ao diploma que veio substituir o da Educação Especial, houve também quem apontasse casos de crianças com necessidades educativas especiais — definição que desaparece na nova lei — que ficaram sem apoios. As denúncias eram da CNIPE (Confederação Nacional Independente de Pais) e da Fenprof que, mais uma vez, denunciavam a falta de tempo das escolas para se preparar para este novo diploma.

“Nós temos uma equipa, DGE e DGEstE, que faz o acompanhamento aluno a aluno de todos os casos que nos são reportados. Sempre que haja um problema, seja qual for a via — notícia de jornal, mensagem no Facebook — vamos ver o que se passa. Num universo de 87 mil crianças com necessidades educativas especiais, tínhamos, em outubro, exposição de 35 casos. Claro que cada caso é um caso a mais. Na generalidade, não eram exposições diferentes das que existiam com o decreto lei 3/2008. Mas há opções das escolas que podem ser questionadas. Choca-me muito quando um aluno com deficiência é mandado para casa porque há dois funcionários de baixa. Porque é que foi este? Não era melhor ir a turma do 7.º ano? São decisões difíceis que as escolas têm de fazer. Quando falamos de inclusão, não é só educar os excluídos, é também preciso educar os incluídos”, defende João Costa.

Às escolas, diz, o Ministério deu sempre o mesmo recado. “Há miúdos que precisam de medidas muito dirigidas, que precisam de ter um funcionário a tempo inteiro. Quando essa é a solução, isso não é questionado. O que dizemos às escolas é que, enquanto reavaliam, devem manter tudo o que alunos tinham antes. Não há razão para os miúdos ficarem sem apoios.”

Por outro lado, João Costa acredita que a inclusão não se decreta. “Há questões que são de mentalidade: não posso ter pais a dizer que não querem outras etnias na turma da filha, ou que as crianças com deficiência atrasam a aprendizagem do filho. Isto existe, é real e não se muda por decreto. Grande parte deste diploma requer uma apropriação progressiva. O pressuposto deste diploma é que todos temos o potencial de aprender.”

“É normal que as escolas queiram mais recursos e que batam à porta de quem lhes pode dar mais, mas isso não as deve impedir de atuar. Dou sempre o exemplo das famílias que tiveram um filho com deficiência e que não ficaram à espera das condições ideais para o começar a educar. Nós queremos ter as condições ideais nas escolas, mas não tê-las não deve ser impeditivo de começarmos a fazer o que é possível. E há muitas escolas que conseguem” João Costa, secretário de Estado da Educação

Missão das escolas: um problema de sucesso e não de acesso

Se todos temos potencial para aprender, todos temos potencial para ter sucesso. Daí que o diploma da Educação Inclusiva, explica João Costa, tenha de andar de mão dada com o sucesso escolar de todos os alunos, olhando com especial atenção para os que têm dificuldades. E foi na iniciativa A Escola Treme, durante um simulacro de sismo, que o secretário de Estado diz ter percebido a diferença entre as escolas que integram e as escolas que incluem alunos.

“Havia duas turmas de 2.º ano e em ambas havia alunos em cadeiras de rodas. Na primeira, quando começou o simulacro, um estudante foi buscar o colega à cadeira de rodas e levou-o para debaixo de uma carteira, protegendo-o com o corpo. Na outra, uma funcionária limitou-se a virar a cadeira de forma a que o miúdo visse o que estava a acontecer. No final, eu disse aos alunos que aquele estudante tinha levado com o teto na cabeça. A resposta que ouvi é que ele não fazia parte do exercício. A primeira turma incluiu, a segunda integrou. É evidente que a primeira turma teve muito mais trabalho, mas todos cresceram mais.”

Apesar disso, o secretário de Estado defende que Portugal tem motivos para se congratular já que 97% das crianças e jovens com deficiência estão na escola, quando em França, por exemplo, a meta é chegar aos 50%. Este é um caminho difícil de fazer, assume João Costa, já que a nova legislação é muito exigente e desafiante, mas aproveita para lembrar que em 44 anos de democracia, a evolução de Portugal na educação foi tão substancial que se tornou um case study internacional.

“É um dos eternos paradoxos da educação: todos queremos que alguma coisa mude, mas todos queremos estabilidade. Precisamos de amadurecer as ideias, claro, mas os alunos que estão excluídos não podem esperar pelos dez anos em que vamos todos estar a pensar. Os 44 anos de resultados muito bons não se conseguiram com conformismo. A dada altura alguém resolveu criar uma rede pública de educação pré-escolar, uma rede de bibliotecas escolares… Podia-se ter pensado ‘que maçada ter de fazer isto’. Não foi o que aconteceu. Se temos estes resultados é porque fomos dando passos, fomos experimentando”, sustenta.

Por outro lado, sublinha que as medidas de caráter geral — como a rede de pré-escolar ou a escolaridade obrigatória — atingiram o limite da sua eficácia. “Neste momento, o movimento que tem de se fazer é de localização. Temos um problema global, mas as medidas têm de ser locais. Se pensarmos só na escolaridade obrigatória, nós não temos um problema de acesso, temos um problema de sucesso. Os miúdos estão lá, mas depois de estarem lá, o que é que lhes acontece? O nosso desafio já não é garantir que todos vão à escola, mas que todos saem da escola com sucesso.”

Os números, do próprio Ministério da Educação, mostram que 35% dos alunos não terminam o ensino secundário dentro do tempo previsto e que 78% dos estudantes mais carenciados não têm percursos de sucesso. “Não podemos dizer que é um problema dos alunos, só seria se não houvesse um padrão. Mas o padrão é sempre o mesmo: o contexto socioeconómico da família. E isso mostra que o que temos aqui é um problema de justiça social, e como vivemos num Estado social de direito é obrigação do Estado desenhar políticas para resolver esta situação”, argumenta João Costa.

Perfil do aluno, outra peça do lego para construir sucesso

A primeira parte da aula está dada. Aos cerca de cem diretores, João Costa já explicou que o cerne das políticas educativas do governo de António Costa é conseguir que todos os alunos façam o seu percurso escolar com sucesso. Resta saber o que é sucesso, na opinião do Executivo socialista.

Os legos continuam em pano de fundo. “O grande outro objetivo destas políticas é cumprir o Perfil do Aluno. Quando falamos de sucesso, muitas vezes esquecemos-nos de definir o que é sucesso e reduzimos tudo a uma nota. O que nós queremos é incluir para o sucesso, e sucesso significa cumprir o Perfil do Aluno.” A par do saber e do conhecimento que cada aluno deve adquirir, este documento estipula quais as competências que cada estudante deve ter no final do ensino obrigatório, apontando para um perfil de cidadão humanista com consciência ambiental, pensamento crítico e criativo, e dotado de literacia cultural, científica e tecnológica.

“Queremos formar cidadãos e não apenas máquinas reprodutoras de conhecimento”, diz o secretário de Estado, defendendo que, a partir daqui, os diretores podem começar a pegar nas várias peças coloridas para construir um lego à medida dos seus alunos. “Aquilo que não podemos continuar a fazer é viver num ensino universal, obrigatório, gratuito, com a ideia de que quem está na escola é tudo igual. São todos diferentes. É isso que dá riqueza às escolas.”

“Há questões de carreira que faz com que os professores se sintam maltratados. Mas demos início ao processo de descongelamento das carreiras, fizemos um investimento de cerca de 120 milhões em formação contínua e acho que isto são sinais inequívocos de uma confiança muito grande que este Governo tem nos professores. É também um sinal que transmitimos à sociedade: é preciso respeitar os professores." João Costa, secretário de Estado da Educação

O que pedem os diretores: recursos e estabilidade

No encontro a que o Observador assistiu, a fase de perguntas dos diretores centrou-se muito no tamanho das turmas e no calendário escolar. Mas nem sempre as questões ficam por aqui. O secretário de Estado conta que a falta de recursos é sempre um tema em cima da mesa, assim como a desconfiança com a estabilidade política. Com estes diplomas, acredita que o Governo conseguiu reunir consensos na Assembleia da República, o que permitirá que perdurem no tempo. Outras questões levantadas estão ligadas às carreiras dos professores.

“Surge muitas vezes o problema da estabilidade do corpo docente. Este ano, tivemos um concurso extraordinário de professores, por decisão da Assembleia da República, e contra a vontade do governo. Muitos diretores que estiveram no projeto piloto da flexibilidade, criaram equipas, formaram-nas e este ano perderam-nas. Mas, com todas as falhas que tem, o concurso de professores é eficaz, embora ainda mereça uma reflexão aprofundada. Ninguém contrata tão rapidamente na administração pública”, defende.

Perguntas sobre carreiras congeladas, pasta da secretária de Estado adjunta da Educação, Alexandra Leitão, também aparecem. “Fala-se sempre das questões transversais de motivação dos professores.”

Motivação essa que poderia estar melhor se o diferendo das carreiras congeladas fosse resolvido? O secretário de Estado contorna a pergunta: “Há uma imagem negativa dos professores que foi alimentada por alguns governantes, de que esta é uma classe que têm muitas férias, que não querem saber dos alunos. São mais de 100 mil professores e, entre eles, há de tudo: excelentes, péssimos e a mediania. Na generalidade, são pessoas muito empenhadas e o conflito das carreiras fica à porta da sala de aulas. Mas a verdade é que se construiu esta imagem negativa dos professores e é importante reverter isso.”

No seu mais recente relatório sobre Portugal, a OCDE concluiu que os professores se sentem maltratados em Portugal. João Costa não discorda. “Há questões de carreira que fazem com que os professores se sintam maltratados. Mas demos início ao processo de descongelamento das carreiras, fizemos um investimento de cerca de 120 milhões em formação contínua e acho que isto são sinais inequívocos de uma confiança muito grande que este Governo tem nos professores. É também um sinal que transmitimos à sociedade: é preciso respeitar os professores. Eles são peças-chave na consolidação de uma democracia e merecem respeito. Mas não podemos ter políticos a passar à sociedade uma imagem negativa dos professores, nem podemos ter uma imprensa a alimentar a ideia de que são uns malandros. A mensagem que tem de passar é esta: respeitemos esta classe porque a ela devemos muito daquilo que somos hoje.”

Não será essa a imagem que está a chegar aos professores, que, pelo contrário, veem a forma como o governo geriu o processo de descongelamento das carreiras como um desrespeito pela classe. O braço de ferro continuou já esta terça-feira, com mais uma reunião entre os sindicatos e o Ministério da Educação. E, como nas anteriores, acabou sem acordo.

Os professores já tinham avisado que, a ser assim, avançam para tribunal já em janeiro.

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