Fact Check. Armando Vara foi mesmo condenado sem provas?

20-10-2019
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O coletivo de juízes liderado por Raul Cordeiro valorou a prova documental (ficheiro informático apreendido nos computadores da O2 que se intitulava “Ficheiro Digital 130 — Pasta de Brindes”) com as listagens exaustivas de prendas de Natal oferecidas por Manuel Godinho a titulares de cargos políticos e administradores e diretores de empresas públicas e privadas. E, acima de tudo, valorou o testemunho de Namércio Cunha, licenciado em psicologia, braço direito de Manuel Godinho no Grupo O2 e o autor das listagens, que também coordenava a entrega das prendas. Foi Namércio quem informou o tribunal dos valores dos relógios oferecidos a Vara e confirmou que, quando o presente não era entregue, o próprio colocava essa informação na listagem informática.

Daí o juiz presidente Raul Cordeiro ter concluído que “tais presentes foram efetivamente entregues e recebidos”. “Ademais, nem sequer vislumbramos que o arguido Manuel Godinho, perante a consideração e atenção que dispensava a tais arguidos, especialmente a Armando Vara e a Lopes Barreira” não o fizesse, lê-se na sentença.

Namércio explicou em pormenor como Manuel Godinho organizava as listagens consoante uma hierarquia dos destinatários das prendas e da importância de cada um deles para a O2. Assim, havia a categoria “AAAA” (o topo da lista onde estava Armando Vara) e a classe “G” (a base da pirâmide), sendo certo que o custo desta lista de prendas variou entre os 80 mil euros ao início e os 40 mil euros que terão sido gastos em 2008. No caso de Vara, Godinho olhava para este como um “lobbista” — alguém “bem colocado” com quem “o sr. Godinho se relacionava” e era um dos que poderiam “proporcionar oportunidades de negócio”.

De acordo com Namércio, Godinho referiu-se várias vezes ao “dr. Armando Vara”, com quem dizia encontrar-se regularmente (o que é confirmado pelas escutas telefónicas realizadas aos arguidos) já que este o “ajudou a obter crédito bancário junto da Caixa Geral de Depósitos e lhe proporcionou alguns contactos com pessoas influentes em empresas, algumas delas já clientes da O2″, lê-se na sentença.

O objetivo das prendas de Natal era claro, na ótica do tribunal”: “Criar e potenciar um clima de permeabilidade e cumplicidade para posteriores diligências e de predisposição à aceitação das suas pretensões”.

O tribunal fez questão de referir ainda um facto acessório de “grande coincidência” assinalado pela Polícia Judiciária num dos diversos relatórios produzidos durante a investigação. Havia “uma partilha de gostos e de intenções” entre Vara e Godinho: “ambos conduziam veículos exatamente iguais” (um carro topo de gama da BMW: o modelo 730d), “os quais foram comprados na mesma ocasião” e com um “registo da propriedade que ocorreu no mesmo dia: 05-12-2008.”

A tentativa de afastar Ana Paula Vitorino e Luís Pardal em 2009

Tendo em conta que o conflito entre a Refer e o Grupo O2 não se resolveu (pelo contrário, agravou-se), Manuel Godinho voltou à carga em 2009 e contactou Armando Vara e Lopes Barreira com um novo objetivo: Ana Paula Vitorino e Luís Pardal deveriam ser destituídos dos cargos que ocupavam, de forma a que a Refer modificasse o seu comportamento comercial para com a O2. Godinho, diz o tribunal, via Pardal e Vitorino como obstáculos que deveriam ser removidos. O primeiro continuava a excluir o Grupo O2 dos concursos da Refer, enquanto a segunda apoiava o líder da Refer a 100%.

De acordo com as escutas telefónicas que constam dos autos, o ministro Mário Lino foi novamente contactado por Armando Vara e Lopes Barreira. Desta vez, Lino contactou diretamente Luís Pardal e disse-lhe que tinha a informação de que a Refer estava a ter “uma postura penalizadora para com a O2 nos concursos e nas consultas públicas de adjudicação de contratos de compra e venda e de prestação de serviços na área dos resíduos”. O ministro das Obras Públicas instou Pardal “a modificar o comportamento da Refer para com a O2” e “a procurar a resolução do contencioso que as opunha.”

O tribunal deu estes factos como provados tendo por base os testemunhos de Luís Pardal e Ana Paula Vitorino. O presidente da Refer afirmou que recebeu “três telefonemas” de Mário Lino entre 2008 e 2009 com as queixas de Manuel Godinho sobre “perseguição” e “discriminação”, sendo que o ministro “lhe pediu para receber Godinho” — o que foi concretizado no dia 18 de agosto de 2008, com o conhecimento antecipado de Vitorino, mas sem qualquer alteração da posição da Refer.

Pardal enfatizou que só por duas vezes Mário Lino lhe pediu para receber outras empresas: aquando desta situação e do problema do Túnel do Rossio com a Teixeira Duarte.

Outro episódio que reforça a prova da influência do então vice-presidente do BCP é o chamado caso da demissão de José Cardoso dos Reis, então presidente da CP, a quem Ana Paula Vitorino comunicou a sua exoneração. Depois de avisado por Francisco Bandeira, então responsável da Caixa Geral de Depósitos, Vara falou ele próprio com Cardoso dos Reis para lhe dar conta que tinha transmitido ao primeiro-ministro José Sócrates o que estava a acontecer, ao que Sócrates terá respondido, segundo Vara, que o processo de substituição seria parado. Daí Vara ser visto pelo tribunal “como uma pessoa especialmente influente para Manuel Godinho” pela sua “grande proximidade junto das cúpulas do poder, concretamente do Partido Socialista”, como comprova o episódio da “demissão” do então presidente da CP.

Os “25 quilómetros” e os “50 mil documentos”

Um dos principais argumentos da defesa de Armando Vara sempre foi que não existia qualquer prova de que tivesse recebido 25 mil euros em casa de Manuel Godinho, em Ovar, durante um almoço que ocorreu no dia 20 de junho de 2009. O recebimento de tal valor (tendo sido dado idêntico valor a Lopes Barreira) representaria uma contrapartida pelo facto de Vara ter exercido a sua influência junto de Mário Lino para afastar Vitorino e Pardal.

Mais uma vez: o crime de tráfico de influência consuma-se com a aceitação de um arguido em abusar da sua influência — e não depende do recebimento de uma contrapartida. Contudo, o tribunal entendeu valorar as provas indiretas que apontam nesse sentido e dar como provado que Vara recebeu uma contrapartida de 25 mil euros. Que provas são essas?

Em primeiro lugar, o excerto de uma escuta telefónica de uma conversa que decorreu no dia 28 de maio de 2009 às 15 horas:

Manuel Godinho: Você aqui há dias falou-me… falou-me naquela situação, que… lembra-se ? E era para agora, era ?

Armando Vara: A situação de quê ?

Manuel Godinho: Se for, p’ra a semana passo por aí.

Armando Vara: Não me lembro do quê…

Manuel Godinho: Ehh… Você falou-me em vinte e cinco quilómetros.

Armando Vara: Não, não, não… é para depois, isso é para depois.

Manuel Godinho: Ah ! Então depois a gente fala, tá bem ?

Armando Vara: Tá bem, tá bem. Ok. A gente depois vê isso.

Para interpretar aquilo que entende ser uma linguagem “dissimulada” em redor de “25 quilómetros” ou de “25 mil metros”, o tribunal chegou a interrogar um diretor do BCP chamado a depor pela defesa de Armando Vara para perguntar-lhe se aquele tipo de linguagem, dos 25 quilómetros, era normal entre os banqueiros e bancários, ao que o funcionários respondeu “não”. Como alguém disse, lê-se na sentença, “é da natureza humana quando se tem algo a esconder”.

O coletivo de juízes liderado por Raul Cordeiro valorou a prova documental (ficheiro informático apreendido nos computadores da O2 que se intitulava “Ficheiro Digital 130 — Pasta de Brindes”) com as listagens exaustivas de prendas de Natal oferecidas por Manuel Godinho a titulares de cargos políticos e administradores e diretores de empresas públicas e privadas. E, acima de tudo, valorou o testemunho de Namércio Cunha, licenciado em psicologia, braço direito de Manuel Godinho no Grupo O2 e o autor das listagens, que também coordenava a entrega das prendas. Foi Namércio quem informou o tribunal dos valores dos relógios oferecidos a Vara e confirmou que, quando o presente não era entregue, o próprio colocava essa informação na listagem informática.

Daí o juiz presidente Raul Cordeiro ter concluído que “tais presentes foram efetivamente entregues e recebidos”. “Ademais, nem sequer vislumbramos que o arguido Manuel Godinho, perante a consideração e atenção que dispensava a tais arguidos, especialmente a Armando Vara e a Lopes Barreira” não o fizesse, lê-se na sentença.

Namércio explicou em pormenor como Manuel Godinho organizava as listagens consoante uma hierarquia dos destinatários das prendas e da importância de cada um deles para a O2. Assim, havia a categoria “AAAA” (o topo da lista onde estava Armando Vara) e a classe “G” (a base da pirâmide), sendo certo que o custo desta lista de prendas variou entre os 80 mil euros ao início e os 40 mil euros que terão sido gastos em 2008. No caso de Vara, Godinho olhava para este como um “lobbista” — alguém “bem colocado” com quem “o sr. Godinho se relacionava” e era um dos que poderiam “proporcionar oportunidades de negócio”.

De acordo com Namércio, Godinho referiu-se várias vezes ao “dr. Armando Vara”, com quem dizia encontrar-se regularmente (o que é confirmado pelas escutas telefónicas realizadas aos arguidos) já que este o “ajudou a obter crédito bancário junto da Caixa Geral de Depósitos e lhe proporcionou alguns contactos com pessoas influentes em empresas, algumas delas já clientes da O2″, lê-se na sentença.

O objetivo das prendas de Natal era claro, na ótica do tribunal”: “Criar e potenciar um clima de permeabilidade e cumplicidade para posteriores diligências e de predisposição à aceitação das suas pretensões”.

O tribunal fez questão de referir ainda um facto acessório de “grande coincidência” assinalado pela Polícia Judiciária num dos diversos relatórios produzidos durante a investigação. Havia “uma partilha de gostos e de intenções” entre Vara e Godinho: “ambos conduziam veículos exatamente iguais” (um carro topo de gama da BMW: o modelo 730d), “os quais foram comprados na mesma ocasião” e com um “registo da propriedade que ocorreu no mesmo dia: 05-12-2008.”

A tentativa de afastar Ana Paula Vitorino e Luís Pardal em 2009

Tendo em conta que o conflito entre a Refer e o Grupo O2 não se resolveu (pelo contrário, agravou-se), Manuel Godinho voltou à carga em 2009 e contactou Armando Vara e Lopes Barreira com um novo objetivo: Ana Paula Vitorino e Luís Pardal deveriam ser destituídos dos cargos que ocupavam, de forma a que a Refer modificasse o seu comportamento comercial para com a O2. Godinho, diz o tribunal, via Pardal e Vitorino como obstáculos que deveriam ser removidos. O primeiro continuava a excluir o Grupo O2 dos concursos da Refer, enquanto a segunda apoiava o líder da Refer a 100%.

De acordo com as escutas telefónicas que constam dos autos, o ministro Mário Lino foi novamente contactado por Armando Vara e Lopes Barreira. Desta vez, Lino contactou diretamente Luís Pardal e disse-lhe que tinha a informação de que a Refer estava a ter “uma postura penalizadora para com a O2 nos concursos e nas consultas públicas de adjudicação de contratos de compra e venda e de prestação de serviços na área dos resíduos”. O ministro das Obras Públicas instou Pardal “a modificar o comportamento da Refer para com a O2” e “a procurar a resolução do contencioso que as opunha.”

O tribunal deu estes factos como provados tendo por base os testemunhos de Luís Pardal e Ana Paula Vitorino. O presidente da Refer afirmou que recebeu “três telefonemas” de Mário Lino entre 2008 e 2009 com as queixas de Manuel Godinho sobre “perseguição” e “discriminação”, sendo que o ministro “lhe pediu para receber Godinho” — o que foi concretizado no dia 18 de agosto de 2008, com o conhecimento antecipado de Vitorino, mas sem qualquer alteração da posição da Refer.

Pardal enfatizou que só por duas vezes Mário Lino lhe pediu para receber outras empresas: aquando desta situação e do problema do Túnel do Rossio com a Teixeira Duarte.

Outro episódio que reforça a prova da influência do então vice-presidente do BCP é o chamado caso da demissão de José Cardoso dos Reis, então presidente da CP, a quem Ana Paula Vitorino comunicou a sua exoneração. Depois de avisado por Francisco Bandeira, então responsável da Caixa Geral de Depósitos, Vara falou ele próprio com Cardoso dos Reis para lhe dar conta que tinha transmitido ao primeiro-ministro José Sócrates o que estava a acontecer, ao que Sócrates terá respondido, segundo Vara, que o processo de substituição seria parado. Daí Vara ser visto pelo tribunal “como uma pessoa especialmente influente para Manuel Godinho” pela sua “grande proximidade junto das cúpulas do poder, concretamente do Partido Socialista”, como comprova o episódio da “demissão” do então presidente da CP.

Os “25 quilómetros” e os “50 mil documentos”

Um dos principais argumentos da defesa de Armando Vara sempre foi que não existia qualquer prova de que tivesse recebido 25 mil euros em casa de Manuel Godinho, em Ovar, durante um almoço que ocorreu no dia 20 de junho de 2009. O recebimento de tal valor (tendo sido dado idêntico valor a Lopes Barreira) representaria uma contrapartida pelo facto de Vara ter exercido a sua influência junto de Mário Lino para afastar Vitorino e Pardal.

Mais uma vez: o crime de tráfico de influência consuma-se com a aceitação de um arguido em abusar da sua influência — e não depende do recebimento de uma contrapartida. Contudo, o tribunal entendeu valorar as provas indiretas que apontam nesse sentido e dar como provado que Vara recebeu uma contrapartida de 25 mil euros. Que provas são essas?

Em primeiro lugar, o excerto de uma escuta telefónica de uma conversa que decorreu no dia 28 de maio de 2009 às 15 horas:

Manuel Godinho: Você aqui há dias falou-me… falou-me naquela situação, que… lembra-se ? E era para agora, era ?

Armando Vara: A situação de quê ?

Manuel Godinho: Se for, p’ra a semana passo por aí.

Armando Vara: Não me lembro do quê…

Manuel Godinho: Ehh… Você falou-me em vinte e cinco quilómetros.

Armando Vara: Não, não, não… é para depois, isso é para depois.

Manuel Godinho: Ah ! Então depois a gente fala, tá bem ?

Armando Vara: Tá bem, tá bem. Ok. A gente depois vê isso.

Para interpretar aquilo que entende ser uma linguagem “dissimulada” em redor de “25 quilómetros” ou de “25 mil metros”, o tribunal chegou a interrogar um diretor do BCP chamado a depor pela defesa de Armando Vara para perguntar-lhe se aquele tipo de linguagem, dos 25 quilómetros, era normal entre os banqueiros e bancários, ao que o funcionários respondeu “não”. Como alguém disse, lê-se na sentença, “é da natureza humana quando se tem algo a esconder”.

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