“Está lá? Daqui é o seu gestor de conta e esta conversa está a ser gravada”

16-09-2018
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PROTEÇÃO Nos últimos anos, milhares de clientes bancários viram as suas aplicações evaporar-se, ou porque se deixaram seduzir por rendibilidades de produtos complexos ou porque foram enganados. Dez anos depois há uma enxurrada de regras para prevenir que as más práticas se repitam, mas o seu verdadeiro alcance ainda está por testar

Se num destes dias receber um telefonema do seu gestor de conta a avisá-lo de que “a nossa conversa está a ser gravada”, não se espante. Do mesmo modo, se for ao banco aplicar o seu dinheiro, não se admire se, antes do mais, lhe fizerem um raio x à escolaridade e aos hábitos de poupança e, no fim de tudo, lhe apresentarem uma pilha de papéis e termos de responsabilidade para assinar. Os procedimentos são novos e, em teoria, servem para garantir que cada cliente sai do banco bem informado e seguro dos investimentos que fez. Na prática, contudo, os especialistas dividem-se sobre o seu verdadeiro alcance: há quem considere as regras revolucionárias e quem, com maior ceticismo, não descarte novos grupos de “lesados” da banca no futuro.

A preocupação com o pequeno investidor não profissional adquiriu uma nova centralidade após a crise financeira, e as regras são tão abundantes e densas que não só demoraram dez anos a cozinhar (só agora chegam ao terreno) como se tornam pouco acessíveis ao cidadão comum. Uma das peças centrais desta rede de proteção dá pelo nome técnico de DMIF II, e Paulo Câmara, sócio no Departamento Financeiro & Governance da Sérvulo, chama-lhe “a maior revolução regulatória de sempre”. Ao todo, “são mais de 10 mil páginas” que, se, por um lado, garantem que as regras “cobrem todo o percurso da produção e distribuição de produtos financeiros”, por outro, também criam um “excesso regulatório”, aponta.

O cliente primeiro

É neste vasto pacote que se encontram medidas que obrigam os bancos a fazer uma análise às características dos produtos que disponibilizam, a hierarquizá-los em função do grau de risco e a vendê-los apenas a quem tem literacia financeira para compreender as suas nuances. Pessoas com menor escolaridade e idosos serão objeto de mais cuidados e, para prevenir situações em que os clientes vêm dizer depois que foram enganados, as suas interações com o funcionário do banco ficam registadas. Se as conversas forem telefónicas, elas têm de ser gravadas; se a transação for feita ao balcão, tudo tem de ficar escrito e documentado. No limite, se o regulador quiser ter acesso a todas as conversas que decorreram dentro da instituição financeira sobre a estratégia de venda de um produto, pode requerer a informação. E quem diz o regulador diz o cliente, sobre o seu caso concreto.

De resto, as novas obrigações vêm acompanhadas de um reforço do poder dos reguladores e supervisores e, “por exemplo, o Banco de Portugal pode suspender a comercialização de um produto com características que não tenham aderência ao perfil do cliente bancário. Em certos casos, a idade do cliente poderá ser um aspeto a considerar”, argumenta Lúcia Leitão, diretora do Departamento de Supervisão Comportamental.

As regras querem proteger os investidores não profissionais de abusos e vendas agressivas de produtos

Um aforrador não está impedido de comprar um produto que não se adeque ao seu perfil, mas, nesse caso, terá de assinar um termo de responsabilidade onde garante que tomou conhecimento dos riscos que corre. E, seja prudente ou aventureiro, receberá informação abundante sobre as características do que está a comprar, sobre os cenários de variação do produto (como já acontece com a variação dos juros do crédito à habitação) e sobre se o bancário tem algum interesse na venda do produto (se, por exemplo, recebe uma comissão) que possa estar a comprometer a sua isenção.

Os polémicos depósitos indexados também passam a ter a malha mais apertada, já que “das novas regras decorre a proibição da comercialização combinada de depósitos estruturados com produtos financeiros que não garantam o capital investido a todo o tempo”, refere ainda Lúcia Leitão.

Controlo de prémios e comissões

Com esta bateria de procedimentos, Rita Costa, sócia da EY, está convencida de que “passou a haver incomparavelmente mais instrumentos para proteger os clientes e o mercado”. Até porque “o banco, passando a ter muito mais informação, passa a ter mais capacidade de analisar o perfil de risco do cliente”. É também esta a opinião de Paulo Câmara: “Temos agora uma malha normativa que é integral e cobre todo o tipo de produtos bancários, de seguros e do mercado de capitas. E tudo o que tem a ver com incentivos mudou”, recorda, convocando outra bateria de regras que diz que os prémios que os bancários recebem não podem estar desenhados de molde a incentivá-los a impingir produtos de maior risco aos clientes.

Só que, assinala Magda Moura Canas, jurista da Deco Proteste, “sendo o enquadramento legal de extrema importância — e, note-se, o legislador português até foi além das exigências comunitárias —, tudo vai depender da forma como todas estas alterações vão ser executadas”. E antecipam-se já vários objetivos conflituantes à espreita. Desde logo porque “a maior complexidade e exigência regulatória terá de aprender a conviver com a pressão dos clientes, que querem celeridade e simplicidade nas suas interações com o banco”, afirma Rita Costa. Depois porque “as instituições financeiras continuam a prosseguir o lucro, e a pressão para alcançar objetivos de venda não acaba de um dia para o outro”, acrescenta Magda Canas.

Entre o lucro e a lei

Colocados perante “uma lei que obriga a dar primazia aos interesses dos consumidores e, por outro lado, a exigência do lucro”, onde é que os bancos atingem o ponto de equilíbrio?, ques­tiona a jurista da Deco Proteste. Paulo Pinho, professor na Nova School of Business and Economics (NSBE), não tem dúvidas sobre para que lado o pêndulo se inclinará e, por isso, antecipa que “vamos continuar a assistir a histórias como as que vimos no BPN, no Banif e no BES e a ter lesados no futuro”. Primeiro porque, apesar de não ser suposto os bancos venderem produtos desfasados do perfil do cliente, “nada impede o bancário de dizer ao cliente para fazer lá uma cruzinha a dizer que está a comprar o produto com cons­ciência do risco”. Este risco é também sublinhado por Magda Canas, que lembra que, como na venda presencial as conversas não são gravadas, “nada nos garante que aquilo que é escrito corresponde ao que foi dito”. Depois porque os bancários conti­nuam a enfrentar objetivos de vendas de produtos de risco, coisa que, para Paulo Pinho, devia ser proibido. E depois ainda porque, ao contrário do que chegou a ser sugerido no Parlamento, “as instituições financeiras continuam a poder vender produtos do grupo aos próprios clientes”, outra ideia que também é subscrita pela jurista da Deco Proteste, para quem, pelo menos, “devia ter sido acautelada a imposição de limites à venda de produtos do grupo”.

A malha é apertada, mas a eficácia das regras vai depender da sua aplicação prática. Cultura empresarial tem de mudar

Tudo somado leva o professor Paulo Pinho a afirmar que “em Portugal falou-se muito e fez-se pouco”, uma conclusão que choca de frente com a convicção exibida por Ricardo Mourinho Félix, secretário de Estado das Finanças, quando no Parlamento garantiu que “acaba agora o tempo em que se vendia tudo a todos”.

A meio caminho entre otimistas e céticos parece colocar-se o regulador. Lúcia Leitão diz ao Expresso que “as novas regras vêm aumentar a proteção dos consumidores de produtos bancários no que respeita aos depósitos e aos créditos”, e, “tendo em conta as alterações dos vários pacotes legislativos, os clientes passaram a ter um quadro geral de proteção mais amplo e denso”. Igualmente prudente é Gabriela Figueiredo Dias, presidente da CMVM, que já disse que com esta lei “vão ser mitigados os riscos de irregularidades, abusos e irresponsabilidades” do passado, mas “não eliminamos, seguramente, todas as vulnerabilidades do sistema, designadamente as que dependem da conduta, da ética e da diligência individual de todos os agentes, investidores incluídos”. “Não podemos pensar que as autoridades são omnipresentes e estarão em todos os balcões, a todo o momento, a monitorizar cada informação, cada investimento, cada transação”, porque “os meios serão sempre escassos em face da multiplicidade e complexidade de agentes e transações e do contínuo surgimento de novas realidades”.

PROTEÇÃO Nos últimos anos, milhares de clientes bancários viram as suas aplicações evaporar-se, ou porque se deixaram seduzir por rendibilidades de produtos complexos ou porque foram enganados. Dez anos depois há uma enxurrada de regras para prevenir que as más práticas se repitam, mas o seu verdadeiro alcance ainda está por testar

Se num destes dias receber um telefonema do seu gestor de conta a avisá-lo de que “a nossa conversa está a ser gravada”, não se espante. Do mesmo modo, se for ao banco aplicar o seu dinheiro, não se admire se, antes do mais, lhe fizerem um raio x à escolaridade e aos hábitos de poupança e, no fim de tudo, lhe apresentarem uma pilha de papéis e termos de responsabilidade para assinar. Os procedimentos são novos e, em teoria, servem para garantir que cada cliente sai do banco bem informado e seguro dos investimentos que fez. Na prática, contudo, os especialistas dividem-se sobre o seu verdadeiro alcance: há quem considere as regras revolucionárias e quem, com maior ceticismo, não descarte novos grupos de “lesados” da banca no futuro.

A preocupação com o pequeno investidor não profissional adquiriu uma nova centralidade após a crise financeira, e as regras são tão abundantes e densas que não só demoraram dez anos a cozinhar (só agora chegam ao terreno) como se tornam pouco acessíveis ao cidadão comum. Uma das peças centrais desta rede de proteção dá pelo nome técnico de DMIF II, e Paulo Câmara, sócio no Departamento Financeiro & Governance da Sérvulo, chama-lhe “a maior revolução regulatória de sempre”. Ao todo, “são mais de 10 mil páginas” que, se, por um lado, garantem que as regras “cobrem todo o percurso da produção e distribuição de produtos financeiros”, por outro, também criam um “excesso regulatório”, aponta.

O cliente primeiro

É neste vasto pacote que se encontram medidas que obrigam os bancos a fazer uma análise às características dos produtos que disponibilizam, a hierarquizá-los em função do grau de risco e a vendê-los apenas a quem tem literacia financeira para compreender as suas nuances. Pessoas com menor escolaridade e idosos serão objeto de mais cuidados e, para prevenir situações em que os clientes vêm dizer depois que foram enganados, as suas interações com o funcionário do banco ficam registadas. Se as conversas forem telefónicas, elas têm de ser gravadas; se a transação for feita ao balcão, tudo tem de ficar escrito e documentado. No limite, se o regulador quiser ter acesso a todas as conversas que decorreram dentro da instituição financeira sobre a estratégia de venda de um produto, pode requerer a informação. E quem diz o regulador diz o cliente, sobre o seu caso concreto.

De resto, as novas obrigações vêm acompanhadas de um reforço do poder dos reguladores e supervisores e, “por exemplo, o Banco de Portugal pode suspender a comercialização de um produto com características que não tenham aderência ao perfil do cliente bancário. Em certos casos, a idade do cliente poderá ser um aspeto a considerar”, argumenta Lúcia Leitão, diretora do Departamento de Supervisão Comportamental.

As regras querem proteger os investidores não profissionais de abusos e vendas agressivas de produtos

Um aforrador não está impedido de comprar um produto que não se adeque ao seu perfil, mas, nesse caso, terá de assinar um termo de responsabilidade onde garante que tomou conhecimento dos riscos que corre. E, seja prudente ou aventureiro, receberá informação abundante sobre as características do que está a comprar, sobre os cenários de variação do produto (como já acontece com a variação dos juros do crédito à habitação) e sobre se o bancário tem algum interesse na venda do produto (se, por exemplo, recebe uma comissão) que possa estar a comprometer a sua isenção.

Os polémicos depósitos indexados também passam a ter a malha mais apertada, já que “das novas regras decorre a proibição da comercialização combinada de depósitos estruturados com produtos financeiros que não garantam o capital investido a todo o tempo”, refere ainda Lúcia Leitão.

Controlo de prémios e comissões

Com esta bateria de procedimentos, Rita Costa, sócia da EY, está convencida de que “passou a haver incomparavelmente mais instrumentos para proteger os clientes e o mercado”. Até porque “o banco, passando a ter muito mais informação, passa a ter mais capacidade de analisar o perfil de risco do cliente”. É também esta a opinião de Paulo Câmara: “Temos agora uma malha normativa que é integral e cobre todo o tipo de produtos bancários, de seguros e do mercado de capitas. E tudo o que tem a ver com incentivos mudou”, recorda, convocando outra bateria de regras que diz que os prémios que os bancários recebem não podem estar desenhados de molde a incentivá-los a impingir produtos de maior risco aos clientes.

Só que, assinala Magda Moura Canas, jurista da Deco Proteste, “sendo o enquadramento legal de extrema importância — e, note-se, o legislador português até foi além das exigências comunitárias —, tudo vai depender da forma como todas estas alterações vão ser executadas”. E antecipam-se já vários objetivos conflituantes à espreita. Desde logo porque “a maior complexidade e exigência regulatória terá de aprender a conviver com a pressão dos clientes, que querem celeridade e simplicidade nas suas interações com o banco”, afirma Rita Costa. Depois porque “as instituições financeiras continuam a prosseguir o lucro, e a pressão para alcançar objetivos de venda não acaba de um dia para o outro”, acrescenta Magda Canas.

Entre o lucro e a lei

Colocados perante “uma lei que obriga a dar primazia aos interesses dos consumidores e, por outro lado, a exigência do lucro”, onde é que os bancos atingem o ponto de equilíbrio?, ques­tiona a jurista da Deco Proteste. Paulo Pinho, professor na Nova School of Business and Economics (NSBE), não tem dúvidas sobre para que lado o pêndulo se inclinará e, por isso, antecipa que “vamos continuar a assistir a histórias como as que vimos no BPN, no Banif e no BES e a ter lesados no futuro”. Primeiro porque, apesar de não ser suposto os bancos venderem produtos desfasados do perfil do cliente, “nada impede o bancário de dizer ao cliente para fazer lá uma cruzinha a dizer que está a comprar o produto com cons­ciência do risco”. Este risco é também sublinhado por Magda Canas, que lembra que, como na venda presencial as conversas não são gravadas, “nada nos garante que aquilo que é escrito corresponde ao que foi dito”. Depois porque os bancários conti­nuam a enfrentar objetivos de vendas de produtos de risco, coisa que, para Paulo Pinho, devia ser proibido. E depois ainda porque, ao contrário do que chegou a ser sugerido no Parlamento, “as instituições financeiras continuam a poder vender produtos do grupo aos próprios clientes”, outra ideia que também é subscrita pela jurista da Deco Proteste, para quem, pelo menos, “devia ter sido acautelada a imposição de limites à venda de produtos do grupo”.

A malha é apertada, mas a eficácia das regras vai depender da sua aplicação prática. Cultura empresarial tem de mudar

Tudo somado leva o professor Paulo Pinho a afirmar que “em Portugal falou-se muito e fez-se pouco”, uma conclusão que choca de frente com a convicção exibida por Ricardo Mourinho Félix, secretário de Estado das Finanças, quando no Parlamento garantiu que “acaba agora o tempo em que se vendia tudo a todos”.

A meio caminho entre otimistas e céticos parece colocar-se o regulador. Lúcia Leitão diz ao Expresso que “as novas regras vêm aumentar a proteção dos consumidores de produtos bancários no que respeita aos depósitos e aos créditos”, e, “tendo em conta as alterações dos vários pacotes legislativos, os clientes passaram a ter um quadro geral de proteção mais amplo e denso”. Igualmente prudente é Gabriela Figueiredo Dias, presidente da CMVM, que já disse que com esta lei “vão ser mitigados os riscos de irregularidades, abusos e irresponsabilidades” do passado, mas “não eliminamos, seguramente, todas as vulnerabilidades do sistema, designadamente as que dependem da conduta, da ética e da diligência individual de todos os agentes, investidores incluídos”. “Não podemos pensar que as autoridades são omnipresentes e estarão em todos os balcões, a todo o momento, a monitorizar cada informação, cada investimento, cada transação”, porque “os meios serão sempre escassos em face da multiplicidade e complexidade de agentes e transações e do contínuo surgimento de novas realidades”.

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