Guadalajara. A feira do livro em que o portunhol serviu de língua franca

30-11-2018
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Quarenta soa a batalhão. Parece mais até do que se tivessem abalado daqui uns cem. A fanfarra não soaria mais alto, nem faria tremer mais o chão da língua. São 40 os escritores que integram a embaixada que Portugal levou para o México, com a comissária da participação portuguesa na Feira Internacional do Livro de Guadalajara (FIL), Manuela Júdice, a assumir que buscou “trabalhar a diversidade”. Tendo recebido instruções para dar especial enfoque ao policial e à crónica, a incluir tanto prosadores quanto poetas, mantendo também o equilíbrio entre idade e géneros, a primeira e mais gritante falha na “antologia” de presenças que elaborou é o ter deixado de fora a juventude. Note-se que, entre os convocados de Júdice, os mais jovens estão nos quarenta anos ou a meses disso (Filipa Leal, Inês Fonseca Santos e Vasco Gato). Talvez isto decorra de uma aversão ao risco que, em si mesma, tão bem caracteriza o próprio meio literário, e que passa até pela incompreensão do sentido da palavra ‘juventude’, de como esta encarna uma atitude herética, em rebelião contra a palavra ‘experiência’. Para Benjamin, de resto, “só dela [da juventude] pode irradiar um espírito novo, ou seja, o espírito”. Mas adiante.

A tenda de campanha montada em Guadalajara – a terceira maior cidade do México –, conta com 1200 metros quadrados, mas o que a valoriza é sobretudo a sua posição estratégica no terreno, por se situar à entrada da Expo Guadalajara. Se em 2013, quando foi o país convidado da Feira do Livro de Bogotá (Colômbia), Portugal contou com um pavilhão de 3000 metros quadrados, a maior vantagem de se ser o convidado de honra em Guadalajara é o facto de ser este o maior certame aberto e dirigido ao grande público (só ficando em segundo lugar face à feira de Frankfurt, que se dirige apenas aos profissionais do sector) e de o pavilhão português ser de passagem obrigatória para os cerca de 100 mil visitantes que diariamente percorrem o salão de 34 mil metros quadrados. Ali, além do intenso programa do festival literário, a feira conta com a presença de mais de 20 mil profissionais do livro, duas mil editoras e mais de 40 mil títulos.

Num decisivo contraste com a forma como a comissária avocou os poderes de definição sobre a constelação literária que quis levar a Guadalajara, cinco gabinetes de arquitetura foram convidados a apresentar propostas para o pavilhão português, tendo-se imposto a do atelier Santa Rita & Associados uma vez que, segundo Manuela Júdice, foi a que melhor solução apresentou para que “as pessoas entrassem e nos viessem visitar sem perturbar a circulação da entrada na feira”. A comissária adiantou ao jornal “Público” que “não é preciso dar a volta ao pavilhão” já que este “tem amplitude suficiente para ser local de passagem”. E refere que, “uma vez lá dentro, temos de ser suficientemente atrativos para convencer os visitantes a ficarem. O pavilhão é permeável, mas tentámos criar espaços com conteúdos que funcionem como íman.” Quanto à representação dos órgãos de imprensa, esta resultou de convites endereçados, em alguns casos a organismos, noutros feitos diretamente a certos jornalistas. Aparte isso, o comissariado não promoveu qualquer outra ação em que os jornalistas tenham sido informados sobre esta iniciativa pública que chegou a ter um orçamento previsto de 2,5 milhões de euros. No final, gastaram-se 1,8 milhões, dos quais apenas 340 mil euros correspondem a contribuições de privados.

Quando o plano de ataque foi anunciado, estava já em execução. Em fundo, nem os grilos se ouviam. Não houve qualquer margem dada à dissensão, e, à chegada a Guadalajara, a recém-empossada Ministra da Cultura, Graça Fonseca, gabou a riqueza que as novas gerações trazem à nossa cultura, afirmando que “a imagem que conseguimos passar com este programa é que Portugal é uma potência cultural e deve ser olhado assim”. Mas se todos os responsáveis enfatizaram a enorme oportunidade que este destaque representa para o nosso país, uma vez mais se comprovou a condição anémica no âmbito da cultura, e que, por oportunismos vários, continua a ser cúmplice desta lógica de facto consumado, e a opacidade com que são tomadas decisões de fundo sem qualquer discussão, abafando toda a discórdia. Por esta razão, se a comissária veio congratular-se pela centena de novas traduções de autores portugueses a apresentar ou lançar ao longo da feira, é triste constatar que o país se apresenta numa frente unida, com os escritores arregimentados para uma campanha que, no seu desmedido ensejo promocional, dá deles a imagem de generais sem nenhuma estratégia quanto à conquista dos céus, por se ocuparem desde tempos imemoriais na diplomática disputa dos bons lugares terrenos nos quais se vão revezando. É curioso, aliás, notar como, já bem entrados no século XXI, e aparte as pontuais e pequenas quezílias de egos, não se desenham hoje oposições dramáticas entre aqueles que sempre são chamados a representar o país quando se olha ao espelho ou quando se vai mostrar lá fora.

Neste ponto, e retirando benefício desta aproximação à cultura mexicana, talvez nos possamos valer das palavras de Octavio Paz, o único Nobel da Literatura daquele país, e que no ensaio “Poesia, Sociedade, Estado” nos lembra que “não seria difícil mostrar que onde o poder invade todas as atividades humanas, a arte tem tendência a elanguescer ou transforma-se numa atividade servil e maquinal”. A censura pode exercer-se de diversos modos, e esta democracia que à cabeça de tudo coloca os valores económicos, tornou-se perita em vencer pela fadiga a ação crítica, assim nos surge esta visão filistina da cultura como facilitadora das relações económicas entre os dois países, ao ponto de Júdice afirmar que “o livro é a porta de entrada para o vinho, o azeite e muitos outros setores” no México.

O poeta e ensaísta mexicano que, depois da tardia descoberta da obra de Fernando Pessoa, veio a assumir que, entre os seus encontros imaginários, este foi um dos mais profundos, teve um papel decisivo na divulgação de Fernando Pessoa no universo da língua espanhola, dedicando-lhe dois ensaios e traduzindo mais de 50 poemas. E Paz não foi menos preclaro na hora de estudar a forma como “o poder imobiliza, fixa num só gesto – grandioso, terrível ou teatral e, no final, simplesmente monótono – a verdade da vida (...) Assim, o Estado pode impor uma visão do mundo, impedir que brotem outras e exterminar aquelas que lhe fazem sombra, mas carece de fecundidade para criar uma. E o mesmo se verifica a respeito da arte: o Estado não a cria, e dificilmente pode impulsioná-la sem a corromper e, mais frequentemente, apenas trata de se servir dela, deformando-a, sufocando-a ou convertendo-a em máscara”.

É revelador, de resto, que de entre os jornalistas que o comissariado resolveu levar à feira que arrancou no sábado, o único de cujas reportagens se aproveita uma visão crítica da participação portuguesa é João Céu e Silva, ao passo que os restantes se conformaram com o papel de publicitários e difusores das mensagens oficiais. E se coube a Céu e Silva assinalar que, ao terceiro dia, a livraria que integra o pavilhão português estava já bastante desfalcada – tendo-se vendido metade dos 3000 mil livros levados de Portugal – e que, sem a possibilidade de repor o stock, dificilmente sobrará algum livro quando a FIL encerrar este domingo, foi também ele o único a estranhar o facto de, com raríssimas exceções, os escritores portugueses terem assumido o portunhol nas comunicações que têm feito em Guadalajara, “tendo como rival temas anunciados como complexos mas que se desfazem ao fim de várias faltas assinaladas no portunhol que quase todos os autores portugueses aqui praticam, só o diabo sabe porquê”.

Depois de domingo, e com o regresso dos nossos escritores, ficaremos a aguardar esse terramoto espiritual e a expansão de novas obras escritas nesse tão prestável dialecto.

Quarenta soa a batalhão. Parece mais até do que se tivessem abalado daqui uns cem. A fanfarra não soaria mais alto, nem faria tremer mais o chão da língua. São 40 os escritores que integram a embaixada que Portugal levou para o México, com a comissária da participação portuguesa na Feira Internacional do Livro de Guadalajara (FIL), Manuela Júdice, a assumir que buscou “trabalhar a diversidade”. Tendo recebido instruções para dar especial enfoque ao policial e à crónica, a incluir tanto prosadores quanto poetas, mantendo também o equilíbrio entre idade e géneros, a primeira e mais gritante falha na “antologia” de presenças que elaborou é o ter deixado de fora a juventude. Note-se que, entre os convocados de Júdice, os mais jovens estão nos quarenta anos ou a meses disso (Filipa Leal, Inês Fonseca Santos e Vasco Gato). Talvez isto decorra de uma aversão ao risco que, em si mesma, tão bem caracteriza o próprio meio literário, e que passa até pela incompreensão do sentido da palavra ‘juventude’, de como esta encarna uma atitude herética, em rebelião contra a palavra ‘experiência’. Para Benjamin, de resto, “só dela [da juventude] pode irradiar um espírito novo, ou seja, o espírito”. Mas adiante.

A tenda de campanha montada em Guadalajara – a terceira maior cidade do México –, conta com 1200 metros quadrados, mas o que a valoriza é sobretudo a sua posição estratégica no terreno, por se situar à entrada da Expo Guadalajara. Se em 2013, quando foi o país convidado da Feira do Livro de Bogotá (Colômbia), Portugal contou com um pavilhão de 3000 metros quadrados, a maior vantagem de se ser o convidado de honra em Guadalajara é o facto de ser este o maior certame aberto e dirigido ao grande público (só ficando em segundo lugar face à feira de Frankfurt, que se dirige apenas aos profissionais do sector) e de o pavilhão português ser de passagem obrigatória para os cerca de 100 mil visitantes que diariamente percorrem o salão de 34 mil metros quadrados. Ali, além do intenso programa do festival literário, a feira conta com a presença de mais de 20 mil profissionais do livro, duas mil editoras e mais de 40 mil títulos.

Num decisivo contraste com a forma como a comissária avocou os poderes de definição sobre a constelação literária que quis levar a Guadalajara, cinco gabinetes de arquitetura foram convidados a apresentar propostas para o pavilhão português, tendo-se imposto a do atelier Santa Rita & Associados uma vez que, segundo Manuela Júdice, foi a que melhor solução apresentou para que “as pessoas entrassem e nos viessem visitar sem perturbar a circulação da entrada na feira”. A comissária adiantou ao jornal “Público” que “não é preciso dar a volta ao pavilhão” já que este “tem amplitude suficiente para ser local de passagem”. E refere que, “uma vez lá dentro, temos de ser suficientemente atrativos para convencer os visitantes a ficarem. O pavilhão é permeável, mas tentámos criar espaços com conteúdos que funcionem como íman.” Quanto à representação dos órgãos de imprensa, esta resultou de convites endereçados, em alguns casos a organismos, noutros feitos diretamente a certos jornalistas. Aparte isso, o comissariado não promoveu qualquer outra ação em que os jornalistas tenham sido informados sobre esta iniciativa pública que chegou a ter um orçamento previsto de 2,5 milhões de euros. No final, gastaram-se 1,8 milhões, dos quais apenas 340 mil euros correspondem a contribuições de privados.

Quando o plano de ataque foi anunciado, estava já em execução. Em fundo, nem os grilos se ouviam. Não houve qualquer margem dada à dissensão, e, à chegada a Guadalajara, a recém-empossada Ministra da Cultura, Graça Fonseca, gabou a riqueza que as novas gerações trazem à nossa cultura, afirmando que “a imagem que conseguimos passar com este programa é que Portugal é uma potência cultural e deve ser olhado assim”. Mas se todos os responsáveis enfatizaram a enorme oportunidade que este destaque representa para o nosso país, uma vez mais se comprovou a condição anémica no âmbito da cultura, e que, por oportunismos vários, continua a ser cúmplice desta lógica de facto consumado, e a opacidade com que são tomadas decisões de fundo sem qualquer discussão, abafando toda a discórdia. Por esta razão, se a comissária veio congratular-se pela centena de novas traduções de autores portugueses a apresentar ou lançar ao longo da feira, é triste constatar que o país se apresenta numa frente unida, com os escritores arregimentados para uma campanha que, no seu desmedido ensejo promocional, dá deles a imagem de generais sem nenhuma estratégia quanto à conquista dos céus, por se ocuparem desde tempos imemoriais na diplomática disputa dos bons lugares terrenos nos quais se vão revezando. É curioso, aliás, notar como, já bem entrados no século XXI, e aparte as pontuais e pequenas quezílias de egos, não se desenham hoje oposições dramáticas entre aqueles que sempre são chamados a representar o país quando se olha ao espelho ou quando se vai mostrar lá fora.

Neste ponto, e retirando benefício desta aproximação à cultura mexicana, talvez nos possamos valer das palavras de Octavio Paz, o único Nobel da Literatura daquele país, e que no ensaio “Poesia, Sociedade, Estado” nos lembra que “não seria difícil mostrar que onde o poder invade todas as atividades humanas, a arte tem tendência a elanguescer ou transforma-se numa atividade servil e maquinal”. A censura pode exercer-se de diversos modos, e esta democracia que à cabeça de tudo coloca os valores económicos, tornou-se perita em vencer pela fadiga a ação crítica, assim nos surge esta visão filistina da cultura como facilitadora das relações económicas entre os dois países, ao ponto de Júdice afirmar que “o livro é a porta de entrada para o vinho, o azeite e muitos outros setores” no México.

O poeta e ensaísta mexicano que, depois da tardia descoberta da obra de Fernando Pessoa, veio a assumir que, entre os seus encontros imaginários, este foi um dos mais profundos, teve um papel decisivo na divulgação de Fernando Pessoa no universo da língua espanhola, dedicando-lhe dois ensaios e traduzindo mais de 50 poemas. E Paz não foi menos preclaro na hora de estudar a forma como “o poder imobiliza, fixa num só gesto – grandioso, terrível ou teatral e, no final, simplesmente monótono – a verdade da vida (...) Assim, o Estado pode impor uma visão do mundo, impedir que brotem outras e exterminar aquelas que lhe fazem sombra, mas carece de fecundidade para criar uma. E o mesmo se verifica a respeito da arte: o Estado não a cria, e dificilmente pode impulsioná-la sem a corromper e, mais frequentemente, apenas trata de se servir dela, deformando-a, sufocando-a ou convertendo-a em máscara”.

É revelador, de resto, que de entre os jornalistas que o comissariado resolveu levar à feira que arrancou no sábado, o único de cujas reportagens se aproveita uma visão crítica da participação portuguesa é João Céu e Silva, ao passo que os restantes se conformaram com o papel de publicitários e difusores das mensagens oficiais. E se coube a Céu e Silva assinalar que, ao terceiro dia, a livraria que integra o pavilhão português estava já bastante desfalcada – tendo-se vendido metade dos 3000 mil livros levados de Portugal – e que, sem a possibilidade de repor o stock, dificilmente sobrará algum livro quando a FIL encerrar este domingo, foi também ele o único a estranhar o facto de, com raríssimas exceções, os escritores portugueses terem assumido o portunhol nas comunicações que têm feito em Guadalajara, “tendo como rival temas anunciados como complexos mas que se desfazem ao fim de várias faltas assinaladas no portunhol que quase todos os autores portugueses aqui praticam, só o diabo sabe porquê”.

Depois de domingo, e com o regresso dos nossos escritores, ficaremos a aguardar esse terramoto espiritual e a expansão de novas obras escritas nesse tão prestável dialecto.

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