Jogo duplo até ao fim

26-09-2018
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Joana Marques Vidal foi a última a saber. Quem lhe disse? “Foi um passarinho”

Ângela Silva

Marcelo Rebelo de Sousa escolheu não desalinhar do primeiro-ministro no processo de escolha do próximo procurador-geral da República (PGR) e acordou com António Costa substituir a atual PGR pela procuradora-geral adjunta Lucília Gago, com base em dois pressupostos: a defesa da limitação de mandatos e a garantia de continuidade na linha “tão dedicada e inteligentemente prosseguida pela dra. Joana Marques Vidal”.

O rasgado elogio lavrado na nota oficial da Presidência da República à atual procuradora faz da limitação do mandato “a razão” para a sua substituição. Mas Marcelo, sabendo que a lei não impede a recondução da PGR, chegou a sondar Marques Vidal sobre o que a própria pensava sobre o assunto. Num encontro em Belém, a procuradora, que em 2016 defendeu num discurso o mandato único, mostrou desprendimento e terá até chegado a disponibilizar-se para, se assim o entendessem, dizer publicamente que sairia. Mas Marcelo preferiu deixar a questão em suspenso por ser cedo. Num segundo encontro que tiveram no palácio antes das férias, quando a PGR o foi convidar para um seminário sobre corrupção e já admitia reconsiderar, o Presidente ignorou o assunto. Joana Marques Vidal aguardou notícias. E elas só chegaram na quinta-feira à noite. Uma hora antes da nomeação de Lucília Gago ter sido libertada, a PGR ficou a saber que estava dispensada. Por quem? Segundo a própria, “foi um passarinho”.

Passos duro com Marcelo e Costa Passavam duas horas desde o anúncio oficial, feito no site da Presidência. Pelas 23h de quinta-feira, Pedro Passos Coelho voltou ao jogo para protagonizar a reação mais dura à decisão acordada entre António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa, a que disse ter assistido “sem surpresa”. “Não houve a decência de assumir com transparência os motivos que conduziram à sua substituição. Em vez disso, preferiu-se a falácia da defesa de um mandato único e longo para justificar a decisão”, criticou o antigo primeiro-ministro, num artigo de opinião no Observador. O texto, intitulado “Um agradecimento a Joana Marques Vidal”, deixava elogios à PGR por cuja nomeação Passos foi responsável, misturados com farpas a Costa e Marcelo: “Não era, de resto, a si que deveria ter cabido a ação de defesa e reconhecimento de que é inteiramente merecedora. Menos compreensível é que quem pode e deve ser consequente nesse reconhecimento não esteja interessado em fazê-lo, com benefício para Portugal”. Rui Rio guardou as palavras para o fim: só reagiu à notícia ontem e quebrou o tabu sobre o tema. Afinal, só tinha elogios a fazer e até entendia “fazer sentido” a renomeação. “Este último mandato terá sido o melhor desde o 25 de abril até hoje”, declarou. Assunção Cristas, a única líder partidária que se tinha assumido favorável à recondução, fez votos de que a nova procuradora, Lucília Gago, “possa continuar o espírito” da antecessora. M.L.C.

O processo de escolha da sua sucessora foi acelerado pelo primeiro-ministro, que tinha previsto encontrar-se com o Presidente da República apenas na sexta-feira mas antecipou o encontro para quinta ao princípio da noite. Era preciso estancar rapidamente o assunto. Marcelo seguiu da sua última aula na Faculdade de Direito de Lisboa para o Palácio de Belém, e Costa, que tinha regressado da cimeira europeia de Salzburgo, tinha o trabalho de casa feito: a carta com a proposta de Lucília Gago e respetivas condições — continuidade, autonomia, separação e interdependência de poderes, mandato longo e único e alguém que já fosse magistrado do Ministério Público com estatuto de procurador-geral adjunto.

O segredo do negócio estava no “mandato longo e único”. Foi essa a frase que a ministra da Justiça libertou em janeiro, quando assumiu — sem dar espaço ao Presidente da República, que constitucionalmente tem a última palavra — que Marques Vidal devia sair. Foi essa a frase que Carlos César, presidente e líder parlamentar do PS, repetiu em momentos-chave, o último dos quais no início desta semana e depois de o Expresso e o “Observador” terem noticiado que a recondução de Joana Marques Vidal continuava de pé. Fontes da Presidência da República confirmaram ao Expresso que a recondução da PGR estava “na forja”. Além de fazer um balanço positivo do mandato da PGR, Marcelo não quereria ficar como o Presidente que ajudou a remover uma procuradora que beliscou como nunca antes tinha acontecido os mais altos poderes político, económico e futebolístico. Ad contrarium, também havia quem alertasse para o facto de as pressões para que Marcelo corresse com Marques Vidal terem sido muitas e que o Presidente apenas estava a empatar um jogo de desfecho anunciado.

“Seis anos, sem limite de renovação”

Ontem, Marcelo veio justificar o seu “sim” a António Costa: “A minha posição é muito clara, pelo mandato único, e está escrita há muitos anos”, afirmou o Presidente. A verdade é que o PR nunca o tinha dito durante este processo e, em 1997, quando liderou o PSD, chegou a subscrever com António Guterres, então líder do PS, um documento de apoio ao acordo de revisão constitucional negociado entre os dois partidos: nesse texto lê-se que o mandato do PGR será “de seis anos, sem limite de renovação”. Seria esse, na altura, o espírito do constitucionalista Marcelo?

Bastava o Presidente ter invocado o princípio que agora expressou para tudo ter ficado claro há muito tempo. Mas, pelo contrário, Marcelo Rebelo de Sousa alimentou a dúvida até ao fim, incluindo junto de alguns dos seus mais próximos conselheiros e de alguns conselheiros de Estado. Um deles sondou-o sobre o assunto esta semana e “não havia novidades”, estava tudo em aberto. O Expresso está em condições de confirmar que o Presidente da República partilhou ter dúvidas sobre o que seria melhor: se reconduzir uma PGR cuja coragem na abertura de processos polémicos era inquestionável, se escolher outra pessoa que, com o mesmo perfil e dando as mesmas garantias, pudesse imprimir ao cargo uma energia renovada. Marcelo foi fazendo saber que tinha os dois cenários na cabeça.

Pesando os pratos da balança, os argumentos a favor da recondução da procuradora eram vistos em Belém como superiores aos riscos da sua substituição, até pela leitura política que, uma vez criado um clima de braço de ferro em torno deste dossiê, poderia penalizar o Presidente se vingasse a vontade do PS. Foi por isso com surpresa que fontes do staff presidencial receberam na quinta-feira de manhã a notícia de que à noite seria nomeado um novo nome.

Quando a ministra da Justiça ouviu os partidos era tarde de mais: a decisão estava tomada

Para Costa e Marcelo havia uma prioridade: acabar com a ideia de que um dos dois sairia perdedor. E foi nessa base de antecipada gestão de danos que fecharam o pacto ontem anunciado, apanhando de surpresa meios políticos e judiciais, onde, nas últimas semanas, a recondução de Marques Vidal era dada como o cenário mais provável. “A hipótese de ser reconduzida nunca me foi colocada”, esclareceu ontem a procuradora. A abordagem com Marcelo tinha sido apenas teórica.

A saída da procuradora pelo seu pé podia ter sido a forma airosa de resolver o assunto, e o PR sonhou com ela. Só que Joana Marques Vidal não facilitou e, para o Presidente, o desfecho complicou-se. Foi quando Marcelo partilhou dúvidas, equacionou cenários e deixou correr a possibilidade de Joana ficar, sem nunca se referir às posições que agora veio dizer serem as suas de sempre. Pelo seu lado, António Costa foi firme na forma como conduziu o processo. Fez saber que também ele não queria guerras e que já teria até alinhado há muito tempo com o Presidente critérios e metodologia para a escolha em causa. Mas foi dando luz verde para que Carlos César, presidente do PS e líder parlamentar, passasse a palavra: o mandato do procurador devia ser único.

Colocado sob forte pressão, Marcelo lançou um apelo público para que se desdramatizasse o assunto. E lembrou que há outras nomeações na calha, nomeadamente de militares, como se a eventual não recondução do chefe do Estado-Maior do Exército — que o ministro da Defesa, apesar de Tancos, manteve em funções — fosse a sua compensação. Quanto à teoria do mandato único, fica a dúvida: será que o Presidente da República não se recandidata?

Joana Marques Vidal foi a última a saber. Quem lhe disse? “Foi um passarinho”

Ângela Silva

Marcelo Rebelo de Sousa escolheu não desalinhar do primeiro-ministro no processo de escolha do próximo procurador-geral da República (PGR) e acordou com António Costa substituir a atual PGR pela procuradora-geral adjunta Lucília Gago, com base em dois pressupostos: a defesa da limitação de mandatos e a garantia de continuidade na linha “tão dedicada e inteligentemente prosseguida pela dra. Joana Marques Vidal”.

O rasgado elogio lavrado na nota oficial da Presidência da República à atual procuradora faz da limitação do mandato “a razão” para a sua substituição. Mas Marcelo, sabendo que a lei não impede a recondução da PGR, chegou a sondar Marques Vidal sobre o que a própria pensava sobre o assunto. Num encontro em Belém, a procuradora, que em 2016 defendeu num discurso o mandato único, mostrou desprendimento e terá até chegado a disponibilizar-se para, se assim o entendessem, dizer publicamente que sairia. Mas Marcelo preferiu deixar a questão em suspenso por ser cedo. Num segundo encontro que tiveram no palácio antes das férias, quando a PGR o foi convidar para um seminário sobre corrupção e já admitia reconsiderar, o Presidente ignorou o assunto. Joana Marques Vidal aguardou notícias. E elas só chegaram na quinta-feira à noite. Uma hora antes da nomeação de Lucília Gago ter sido libertada, a PGR ficou a saber que estava dispensada. Por quem? Segundo a própria, “foi um passarinho”.

Passos duro com Marcelo e Costa Passavam duas horas desde o anúncio oficial, feito no site da Presidência. Pelas 23h de quinta-feira, Pedro Passos Coelho voltou ao jogo para protagonizar a reação mais dura à decisão acordada entre António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa, a que disse ter assistido “sem surpresa”. “Não houve a decência de assumir com transparência os motivos que conduziram à sua substituição. Em vez disso, preferiu-se a falácia da defesa de um mandato único e longo para justificar a decisão”, criticou o antigo primeiro-ministro, num artigo de opinião no Observador. O texto, intitulado “Um agradecimento a Joana Marques Vidal”, deixava elogios à PGR por cuja nomeação Passos foi responsável, misturados com farpas a Costa e Marcelo: “Não era, de resto, a si que deveria ter cabido a ação de defesa e reconhecimento de que é inteiramente merecedora. Menos compreensível é que quem pode e deve ser consequente nesse reconhecimento não esteja interessado em fazê-lo, com benefício para Portugal”. Rui Rio guardou as palavras para o fim: só reagiu à notícia ontem e quebrou o tabu sobre o tema. Afinal, só tinha elogios a fazer e até entendia “fazer sentido” a renomeação. “Este último mandato terá sido o melhor desde o 25 de abril até hoje”, declarou. Assunção Cristas, a única líder partidária que se tinha assumido favorável à recondução, fez votos de que a nova procuradora, Lucília Gago, “possa continuar o espírito” da antecessora. M.L.C.

O processo de escolha da sua sucessora foi acelerado pelo primeiro-ministro, que tinha previsto encontrar-se com o Presidente da República apenas na sexta-feira mas antecipou o encontro para quinta ao princípio da noite. Era preciso estancar rapidamente o assunto. Marcelo seguiu da sua última aula na Faculdade de Direito de Lisboa para o Palácio de Belém, e Costa, que tinha regressado da cimeira europeia de Salzburgo, tinha o trabalho de casa feito: a carta com a proposta de Lucília Gago e respetivas condições — continuidade, autonomia, separação e interdependência de poderes, mandato longo e único e alguém que já fosse magistrado do Ministério Público com estatuto de procurador-geral adjunto.

O segredo do negócio estava no “mandato longo e único”. Foi essa a frase que a ministra da Justiça libertou em janeiro, quando assumiu — sem dar espaço ao Presidente da República, que constitucionalmente tem a última palavra — que Marques Vidal devia sair. Foi essa a frase que Carlos César, presidente e líder parlamentar do PS, repetiu em momentos-chave, o último dos quais no início desta semana e depois de o Expresso e o “Observador” terem noticiado que a recondução de Joana Marques Vidal continuava de pé. Fontes da Presidência da República confirmaram ao Expresso que a recondução da PGR estava “na forja”. Além de fazer um balanço positivo do mandato da PGR, Marcelo não quereria ficar como o Presidente que ajudou a remover uma procuradora que beliscou como nunca antes tinha acontecido os mais altos poderes político, económico e futebolístico. Ad contrarium, também havia quem alertasse para o facto de as pressões para que Marcelo corresse com Marques Vidal terem sido muitas e que o Presidente apenas estava a empatar um jogo de desfecho anunciado.

“Seis anos, sem limite de renovação”

Ontem, Marcelo veio justificar o seu “sim” a António Costa: “A minha posição é muito clara, pelo mandato único, e está escrita há muitos anos”, afirmou o Presidente. A verdade é que o PR nunca o tinha dito durante este processo e, em 1997, quando liderou o PSD, chegou a subscrever com António Guterres, então líder do PS, um documento de apoio ao acordo de revisão constitucional negociado entre os dois partidos: nesse texto lê-se que o mandato do PGR será “de seis anos, sem limite de renovação”. Seria esse, na altura, o espírito do constitucionalista Marcelo?

Bastava o Presidente ter invocado o princípio que agora expressou para tudo ter ficado claro há muito tempo. Mas, pelo contrário, Marcelo Rebelo de Sousa alimentou a dúvida até ao fim, incluindo junto de alguns dos seus mais próximos conselheiros e de alguns conselheiros de Estado. Um deles sondou-o sobre o assunto esta semana e “não havia novidades”, estava tudo em aberto. O Expresso está em condições de confirmar que o Presidente da República partilhou ter dúvidas sobre o que seria melhor: se reconduzir uma PGR cuja coragem na abertura de processos polémicos era inquestionável, se escolher outra pessoa que, com o mesmo perfil e dando as mesmas garantias, pudesse imprimir ao cargo uma energia renovada. Marcelo foi fazendo saber que tinha os dois cenários na cabeça.

Pesando os pratos da balança, os argumentos a favor da recondução da procuradora eram vistos em Belém como superiores aos riscos da sua substituição, até pela leitura política que, uma vez criado um clima de braço de ferro em torno deste dossiê, poderia penalizar o Presidente se vingasse a vontade do PS. Foi por isso com surpresa que fontes do staff presidencial receberam na quinta-feira de manhã a notícia de que à noite seria nomeado um novo nome.

Quando a ministra da Justiça ouviu os partidos era tarde de mais: a decisão estava tomada

Para Costa e Marcelo havia uma prioridade: acabar com a ideia de que um dos dois sairia perdedor. E foi nessa base de antecipada gestão de danos que fecharam o pacto ontem anunciado, apanhando de surpresa meios políticos e judiciais, onde, nas últimas semanas, a recondução de Marques Vidal era dada como o cenário mais provável. “A hipótese de ser reconduzida nunca me foi colocada”, esclareceu ontem a procuradora. A abordagem com Marcelo tinha sido apenas teórica.

A saída da procuradora pelo seu pé podia ter sido a forma airosa de resolver o assunto, e o PR sonhou com ela. Só que Joana Marques Vidal não facilitou e, para o Presidente, o desfecho complicou-se. Foi quando Marcelo partilhou dúvidas, equacionou cenários e deixou correr a possibilidade de Joana ficar, sem nunca se referir às posições que agora veio dizer serem as suas de sempre. Pelo seu lado, António Costa foi firme na forma como conduziu o processo. Fez saber que também ele não queria guerras e que já teria até alinhado há muito tempo com o Presidente critérios e metodologia para a escolha em causa. Mas foi dando luz verde para que Carlos César, presidente do PS e líder parlamentar, passasse a palavra: o mandato do procurador devia ser único.

Colocado sob forte pressão, Marcelo lançou um apelo público para que se desdramatizasse o assunto. E lembrou que há outras nomeações na calha, nomeadamente de militares, como se a eventual não recondução do chefe do Estado-Maior do Exército — que o ministro da Defesa, apesar de Tancos, manteve em funções — fosse a sua compensação. Quanto à teoria do mandato único, fica a dúvida: será que o Presidente da República não se recandidata?

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