Ladrões de Bicicletas: Reformatando o passado

22-05-2019
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Numa entrevista à RTP, Mário Centeno repetiu um slogan tantas vezes usado pela CDS no Parlamento: "São as empresas que criam emprego".

A expressão, para lá do evidente, sintetiza todo um programa económico que isenta as empresas do seu papel social, premeia o transbordo de rendimentos dos trabalhadores para as empresas, tudo em nome de uma competitividade nunca avaliada. Tal como aconteceu desde 2012 até agora.

A frase de Centeno surgiu a propósito de haver, segundo ele, "um compromisso de estabilidade fiscal que tem sido casado que a possibilidade de reduzir a carga fiscal global" na tributação das empresas e cidadãos (10m40). "As empresas têm beneficiado de uma estabilidade fiscal que não se via em Portugal há muitos anos". "Queremos transmitir essa estabilidade também para as empresas. São as empresas que criam emprego. Nós temos de entender que é muito importante este fluxo de investimento que estamos a sentir em Portugal (...). E para isso precisamos de estabilidade fiscal"(16m27).

Só que isso traduz-se, na prática, pela manutenção da reforma do IRC de Lobo Xavier e Paulo Núncio, que inclui, por exemplo, a isenção de tributação de dividendos distribuídos no estrangeiro, responsável pelos desvios de rendimento, por exemplo, para Malta (ver Expresso, citado aqui) ou de tributação de uma multiplicidade de rendimentos, bem abaixo do praticado no IRS (ver aqui por exemplo).

Traduz-se na quase manutenção do "enorme aumento de impostos" de 2013, aprovado por Vítor Gaspar, por o Governo não ter aprovado cortes na despesa pública. Centeno promete que esse agravamento fiscal - que faz tributar em 28,5% todo o rendimento tributável entre 500 e 2800 euros mensais (!!!) será reduzido à medida das possibilidades e num desenho ainda não finalizado. Perante a questão se mantém os actuais escalões, remete-se para uma conversa supostamente muito técnica sobre taxas marginais... e esquiva-se.

Centeno acha igualmente que, se há sucesso no turismo nacional, deve-se à "sociedade criativa, à capacidade de adaptação, à capacidade de oferta para satisfazer procura muito exigente", e não ao desemprego e aos baixos salários de quem não pode fazer mais nada.

Na mesma linha de raciocínio, António Costa repete já, em diferentes intervenções, que o sucesso recente da política orçamental se deve ao "sacrifício de todos" e tal como Mário Centeno já se referira ao pseudo-elogio do ministro alemão das Finanças: "Se Portugal tem desempenhado o papel de Cristiano Ronaldo na Europa (...) são os portugueses, os trabalhadores, os empresários que estão por detrás destes números" (0m46s).

Numa versão mais branqueadora, o presidente da República está satisfeito com as boas notícias económicas do país, achando-as mais que justas "depois de seis anos de crise". Como se a "crise" que vivemos não fosse aquela acentuada por uma política falhada, geradora de destruição de riqueza, desemprego e emigração.

Frases que em nada se distanciam da ideia repetida tantas vezes pelos dirigentes do PSD, como forma de mostrar a inevitabilidade da política de austeridade imposta pela UE (e abraçada pela direita). A nova resignação em causa será em prol de uma programa mais vasto - e supostamente já em curso - em defesa de uma nova Europa.

E há várias razões que levam dois socialistas e um social-democrata a aplanar todas as arestas do passado.
No PSD, se o passado foi mau, tem ainda uma cara: Não a de Paulo Portas (que já fugiu) ou de Assunção Cristas (que cada vez mais quer se distanciar do passado); mas a de Passos Coelho. Toda a direita vê isso e tudo está a ser resolvido. Só Passos Coelho ainda mobiliza Pedro Pinto para a distrital de Lisboa do PSD, num finca-pé antes do Congresso, marcado para depois das autárquicas.

No PS, a mensagem é a de que se "virou a página da austeridade" (15m). Agora é gerir tudo em pequenos passos, vencendo no terreno da UE - "temos de cumprir as metas" disse Centeno (5m30), que "o caminho de credibilização [externa, junto dos mercados que nos financiam] é cumprir as metas" (10m06). Tudo sem querer abrir a página laboral e de redistribuição mais acelerada do rendimento (como não quer a UE), alinhando com as reformas europeias que já se preparam para que o essencial não mexa. Como se a austeridade tivesse desaparecido no passado.

Que fazer? A alternativa não será a ruptura à esquerda com o Governo. Isso atiraria o PS para os braços do novo PSD e o que viria seria bem pior. Há que convencer - e convencer e convencer... - convencer todos (incluindo no PS) de que a melhor forma de atingir aquilo que a UE diz defender - o sacrossanto, estúpido e ininteligível Graal das metas orçamentais - está nas políticas que a UE não quer realmente. Essas mesmo que o Governo anunciou ter enterrado - como é o caso da política laboral e de melhor repartição de rendimentos.

Não se nega que o caminho não seja fácil, mas era bem melhor olhar tudo de frente, manter um olhar transparente, sincero, e escolher as palavras/ideias que são da esquerda. Porque são justas e eficazes.


Numa entrevista à RTP, Mário Centeno repetiu um slogan tantas vezes usado pela CDS no Parlamento: "São as empresas que criam emprego".

A expressão, para lá do evidente, sintetiza todo um programa económico que isenta as empresas do seu papel social, premeia o transbordo de rendimentos dos trabalhadores para as empresas, tudo em nome de uma competitividade nunca avaliada. Tal como aconteceu desde 2012 até agora.

A frase de Centeno surgiu a propósito de haver, segundo ele, "um compromisso de estabilidade fiscal que tem sido casado que a possibilidade de reduzir a carga fiscal global" na tributação das empresas e cidadãos (10m40). "As empresas têm beneficiado de uma estabilidade fiscal que não se via em Portugal há muitos anos". "Queremos transmitir essa estabilidade também para as empresas. São as empresas que criam emprego. Nós temos de entender que é muito importante este fluxo de investimento que estamos a sentir em Portugal (...). E para isso precisamos de estabilidade fiscal"(16m27).

Só que isso traduz-se, na prática, pela manutenção da reforma do IRC de Lobo Xavier e Paulo Núncio, que inclui, por exemplo, a isenção de tributação de dividendos distribuídos no estrangeiro, responsável pelos desvios de rendimento, por exemplo, para Malta (ver Expresso, citado aqui) ou de tributação de uma multiplicidade de rendimentos, bem abaixo do praticado no IRS (ver aqui por exemplo).

Traduz-se na quase manutenção do "enorme aumento de impostos" de 2013, aprovado por Vítor Gaspar, por o Governo não ter aprovado cortes na despesa pública. Centeno promete que esse agravamento fiscal - que faz tributar em 28,5% todo o rendimento tributável entre 500 e 2800 euros mensais (!!!) será reduzido à medida das possibilidades e num desenho ainda não finalizado. Perante a questão se mantém os actuais escalões, remete-se para uma conversa supostamente muito técnica sobre taxas marginais... e esquiva-se.

Centeno acha igualmente que, se há sucesso no turismo nacional, deve-se à "sociedade criativa, à capacidade de adaptação, à capacidade de oferta para satisfazer procura muito exigente", e não ao desemprego e aos baixos salários de quem não pode fazer mais nada.

Na mesma linha de raciocínio, António Costa repete já, em diferentes intervenções, que o sucesso recente da política orçamental se deve ao "sacrifício de todos" e tal como Mário Centeno já se referira ao pseudo-elogio do ministro alemão das Finanças: "Se Portugal tem desempenhado o papel de Cristiano Ronaldo na Europa (...) são os portugueses, os trabalhadores, os empresários que estão por detrás destes números" (0m46s).

Numa versão mais branqueadora, o presidente da República está satisfeito com as boas notícias económicas do país, achando-as mais que justas "depois de seis anos de crise". Como se a "crise" que vivemos não fosse aquela acentuada por uma política falhada, geradora de destruição de riqueza, desemprego e emigração.

Frases que em nada se distanciam da ideia repetida tantas vezes pelos dirigentes do PSD, como forma de mostrar a inevitabilidade da política de austeridade imposta pela UE (e abraçada pela direita). A nova resignação em causa será em prol de uma programa mais vasto - e supostamente já em curso - em defesa de uma nova Europa.

E há várias razões que levam dois socialistas e um social-democrata a aplanar todas as arestas do passado.
No PSD, se o passado foi mau, tem ainda uma cara: Não a de Paulo Portas (que já fugiu) ou de Assunção Cristas (que cada vez mais quer se distanciar do passado); mas a de Passos Coelho. Toda a direita vê isso e tudo está a ser resolvido. Só Passos Coelho ainda mobiliza Pedro Pinto para a distrital de Lisboa do PSD, num finca-pé antes do Congresso, marcado para depois das autárquicas.

No PS, a mensagem é a de que se "virou a página da austeridade" (15m). Agora é gerir tudo em pequenos passos, vencendo no terreno da UE - "temos de cumprir as metas" disse Centeno (5m30), que "o caminho de credibilização [externa, junto dos mercados que nos financiam] é cumprir as metas" (10m06). Tudo sem querer abrir a página laboral e de redistribuição mais acelerada do rendimento (como não quer a UE), alinhando com as reformas europeias que já se preparam para que o essencial não mexa. Como se a austeridade tivesse desaparecido no passado.

Que fazer? A alternativa não será a ruptura à esquerda com o Governo. Isso atiraria o PS para os braços do novo PSD e o que viria seria bem pior. Há que convencer - e convencer e convencer... - convencer todos (incluindo no PS) de que a melhor forma de atingir aquilo que a UE diz defender - o sacrossanto, estúpido e ininteligível Graal das metas orçamentais - está nas políticas que a UE não quer realmente. Essas mesmo que o Governo anunciou ter enterrado - como é o caso da política laboral e de melhor repartição de rendimentos.

Não se nega que o caminho não seja fácil, mas era bem melhor olhar tudo de frente, manter um olhar transparente, sincero, e escolher as palavras/ideias que são da esquerda. Porque são justas e eficazes.

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