Por este caminho não me levam. Não há boas ideias quando há tiques autoritários

10-09-2018
marcar artigo

Irrita-me ter de escrever este texto. Esperei mesmo por ouvir a intervenção de Rui Rio no encerramento da Universidade de Verão do PSD para ter a certeza que não podia ignorar o problema – e o problema é que temos um líder da oposição que mais depressa é um populista autoritário do que um estadista com ideias para o seu país.

O meu ponto de partida é o óbvio: não me recordo de nenhum líder do PSD, ou mesmo de um outro líder de um partido democrático, desafiar os seus críticos a calarem-se ou a abandonarem o partido. Sei que é assim no PCP. Sei que é assim nos partidos extremistas. Sei que é assim nos partidos caudilhistas. Nunca foi assim no PSD, tal como nunca chegou a ser assim no PS – mesmo nos tempos de chumbo de Sócrates.

Rui Rio queixa-se de que ninguém repara no que ele diz sobre o país (que é muito pouco, de resto), e só notam o que ele diz sobre as guerras internas no PSD. É natural: o cão que morde o homem não é notícia, o homem que morde o cão é notícia. E aquilo que Rio tem feito é tratar de ser o homem que morde o cão. A toda a hora e a todo o momento.

Sexta-feira fiquei boquiaberto quando o ouvi sugerir que os críticos da sua liderança deviam sair. Recomendou-lhes mesmo que seguissem o caminho de Santana Lopes: “os que discordam do ponto de vista estrutural é mais coerente saírem” fez questão de sublinhar. Não tenho paciência, e julgo que ninguém tem, para recordar tudo o que Rui Rio fez desde que foi eleito presidente do PSD para desconsiderar os seus críticos, para provar que o seu PSD era outro PSD (o que mostra que discordava “estruturalmente” do anterior PSD mas que nunca teve a frontalidade de o assumir) e para promover fiéis e não os que têm mais qualidade, mais brilho e mais futuro. Julgo que também não valerá a pena recordar que o PSD sempre teve militantes críticos das suas direcções, por vezes até mais do que críticos no passado recente, e nunca os líderes sugeriram que se fossem embora nem Rui Rio alguma vez defendeu que era isso que deviam fazer.

Nos anos em que fui director do Público tive problemas graves de limitação da liberdade de informação com três políticos: com João Soares, por causa dos artigos de investigação de José António Cerejo; com Rui Rio, por causa da forma como o Local Porto escrutinava a sua acção como presidente da Câmara; e, claro, com José Sócrates, por tudo e mais alguma coisa.

Mas pouco mais me ocorreria dizer, pois é difícil encontrar sinal mais claro de uma liderança fraca do que passar a vida a falar dos descontentes e querer vê-los pelas costas. Há contudo algo no comportamento de Rui Rio que vai para além da simples vontade suicida de ter um PSD pequenino mas feito à sua imagem e só à sua imagem – há naquela declaração, tal como houve em parte do discurso que fez no encerramento da Universidade de Verão do PSD, um indiscutível e indisfarçável travo autoritário. Pior: esse tipo de travo autoritário não faz parte apenas da maneira de ser de Rui Rio, é também parte da sua forma de pensar.

Infelizmente sei do que falo. Nos anos em que fui director do Público tive problemas graves de limitação da liberdade de informação com três políticos: com João Soares, por causa dos artigos de investigação de José António Cerejo; com Rui Rio, por causa da forma como o Local Porto escrutinava a sua acção como presidente da Câmara; e, claro, com José Sócrates, por tudo e mais alguma coisa. Como imaginam faz parte da vida de um jornalista, e de um jornalista que escreve opinião, desagradar aos políticos. Como aprendi com a vida, esses políticos por regra não esquecem nem perdoam. Agora aquilo que já é uma raridade é termos políticos que tudo fazem para limitar a liberdade de informação, nomeadamente usando o seu poder para discriminar ou mesmo perseguir os jornalistas de que não gostam. Rui Rio fê-lo sempre que pôde enquanto foi presidente da Câmara do Porto, e não importa se tinha ou não razões de queixa: como titular de um cargo público estava, como agora volta a estar, sujeito a um escrutínio mais apertado e é muito importante que esse escrutínio exista, mesmo quando é injusto.

Mas se já tinha conhecido na pele a intolerância à crítica de Rui Rio, tive a seu convite o privilégio de ouvir da sua boca a teorização da menorização do papel da liberdade de imprensa numa democracia. Foi numa conferência no Porto, organizada pela Câmara, onde no essencial repetiu o célebre argumento de Spiro Agnew, um quadro superior da administração Nixon, quando este atacou a imprensa e os jornalistas por estes, ao contrário dos políticos, não serem eleitos. Em concreto, que quem não é eleito não tem legitimidade para criticar quem é eleito. Felizmente eu, que o próprio convidara para essa conferência dizendo-me que era “para levar na cabeça”, ainda tive oportunidade de lhe responder à letra.

Há aqui um padrão, e esse padrão é o de um político que não compreende a essência nem da separação de poderes, nem da importância de sistemas de feios e contrapesos que limitem o poder dos eleitos.

Recordo este episódio para destacar o mais importante: os tiques autoritários e o estilo “posso, quero e mando” são, em Rui Rio, mais do que um impulso sanguíneo, são uma forma de estar e de pensar. E foi por isso que me decidi mesmo a escrever este texto quando, este domingo, o ouvi voltar a disparar contra a comunicação social, desta vez chegando ao ponto de considerar que esta apenas age “em nome das vendas e do lucro.”

Pior: o ataque ao que classificou de “mediaticamente correcto” – sendo que o “mediaticamente correcto” que diz querer combater é o hábito dos jornalistas de seguirem a actualidade e atreverem-se a querer conhecer as posições dos políticos sobre os temas do dia… – veio acompanhado por um ataque sibilino, no limite cobarde, ao Ministério Público. De novo nada que nos surpreenda, pois o presidente do PSD sempre deu mais sinais de estar preocupado com as violações do segredo de Justiça e com a teoria conspirativa da aliança entre a imprensa e o MP do que com a capacidade de a Justiça chegar aos poderosos.

Há aqui um padrão, e esse padrão é o de um político que não compreende a essência nem da separação de poderes, nem da importância de sistemas de freios e contrapesos que limitem o poder dos eleitos. É por isso que sempre me inquietou o seu discurso sobre necessitarmos “de um novo 25 de Abril”, da recorrência com que fala de uma grande reforma da Justiça sem avançar uma só ideia concreta e das palavras sobre mudar o sistema político sem que se entenda como o quer fazer.

Esse padrão é também demasiado semelhante a todos aqueles que entendem que lhes basta ganharem eleições para fazerem o que bem entenderem – de preferência sem críticos a atrapalhar, sem jornalistas a vigiar e escrutinar e com uma Justiça dócil, como a que os poderosos costumam apreciar.

Rui Rio costuma dizer que para ele, como político, o país está sempre primeiro. Já eu, como cidadão, tenho a regra de colocar sempre a liberdade em primeiro lugar e como primeiro critério da avaliação de qualquer político ou qualquer política.

Por fim, tal padrão aproxima-se perigosamente do dos “populismos com bênção democrática”, com as suas vestes de político que não é político, antes alguém que se distingue de todos os outros por dizer que é o interesse nacional que vem sempre em primeiro lugar. Tal como é demasiado próxima da dos líderes autoritários que fazem da comunicação social e da Justiça alvos preferenciais, e julgo que nem preciso de os citar pois são bem conhecidos.

Exagero? Gostava de acreditar que sim e de estar a discutir as ideias de Rui Rio para a Justiça, para a reforma do sistema político ou para a segurança social — só que não as conheço para além de umas generalidades que nada adiantam. Para além de que, mesmo que essas ideias existissem e fossem geniais, para mim de nada serviriam trazendo à mistura tiques de autoritarismo.

Rui Rio costuma dizer que para ele, como político, o país está sempre primeiro. Já eu, como cidadão, tenho a regra de colocar sempre a liberdade em primeiro lugar e como primeiro critério da avaliação de qualquer político ou qualquer política. É por isso que me irritou tanto escrever este texto.

Continuar a ler

Irrita-me ter de escrever este texto. Esperei mesmo por ouvir a intervenção de Rui Rio no encerramento da Universidade de Verão do PSD para ter a certeza que não podia ignorar o problema – e o problema é que temos um líder da oposição que mais depressa é um populista autoritário do que um estadista com ideias para o seu país.

O meu ponto de partida é o óbvio: não me recordo de nenhum líder do PSD, ou mesmo de um outro líder de um partido democrático, desafiar os seus críticos a calarem-se ou a abandonarem o partido. Sei que é assim no PCP. Sei que é assim nos partidos extremistas. Sei que é assim nos partidos caudilhistas. Nunca foi assim no PSD, tal como nunca chegou a ser assim no PS – mesmo nos tempos de chumbo de Sócrates.

Rui Rio queixa-se de que ninguém repara no que ele diz sobre o país (que é muito pouco, de resto), e só notam o que ele diz sobre as guerras internas no PSD. É natural: o cão que morde o homem não é notícia, o homem que morde o cão é notícia. E aquilo que Rio tem feito é tratar de ser o homem que morde o cão. A toda a hora e a todo o momento.

Sexta-feira fiquei boquiaberto quando o ouvi sugerir que os críticos da sua liderança deviam sair. Recomendou-lhes mesmo que seguissem o caminho de Santana Lopes: “os que discordam do ponto de vista estrutural é mais coerente saírem” fez questão de sublinhar. Não tenho paciência, e julgo que ninguém tem, para recordar tudo o que Rui Rio fez desde que foi eleito presidente do PSD para desconsiderar os seus críticos, para provar que o seu PSD era outro PSD (o que mostra que discordava “estruturalmente” do anterior PSD mas que nunca teve a frontalidade de o assumir) e para promover fiéis e não os que têm mais qualidade, mais brilho e mais futuro. Julgo que também não valerá a pena recordar que o PSD sempre teve militantes críticos das suas direcções, por vezes até mais do que críticos no passado recente, e nunca os líderes sugeriram que se fossem embora nem Rui Rio alguma vez defendeu que era isso que deviam fazer.

Nos anos em que fui director do Público tive problemas graves de limitação da liberdade de informação com três políticos: com João Soares, por causa dos artigos de investigação de José António Cerejo; com Rui Rio, por causa da forma como o Local Porto escrutinava a sua acção como presidente da Câmara; e, claro, com José Sócrates, por tudo e mais alguma coisa.

Mas pouco mais me ocorreria dizer, pois é difícil encontrar sinal mais claro de uma liderança fraca do que passar a vida a falar dos descontentes e querer vê-los pelas costas. Há contudo algo no comportamento de Rui Rio que vai para além da simples vontade suicida de ter um PSD pequenino mas feito à sua imagem e só à sua imagem – há naquela declaração, tal como houve em parte do discurso que fez no encerramento da Universidade de Verão do PSD, um indiscutível e indisfarçável travo autoritário. Pior: esse tipo de travo autoritário não faz parte apenas da maneira de ser de Rui Rio, é também parte da sua forma de pensar.

Infelizmente sei do que falo. Nos anos em que fui director do Público tive problemas graves de limitação da liberdade de informação com três políticos: com João Soares, por causa dos artigos de investigação de José António Cerejo; com Rui Rio, por causa da forma como o Local Porto escrutinava a sua acção como presidente da Câmara; e, claro, com José Sócrates, por tudo e mais alguma coisa. Como imaginam faz parte da vida de um jornalista, e de um jornalista que escreve opinião, desagradar aos políticos. Como aprendi com a vida, esses políticos por regra não esquecem nem perdoam. Agora aquilo que já é uma raridade é termos políticos que tudo fazem para limitar a liberdade de informação, nomeadamente usando o seu poder para discriminar ou mesmo perseguir os jornalistas de que não gostam. Rui Rio fê-lo sempre que pôde enquanto foi presidente da Câmara do Porto, e não importa se tinha ou não razões de queixa: como titular de um cargo público estava, como agora volta a estar, sujeito a um escrutínio mais apertado e é muito importante que esse escrutínio exista, mesmo quando é injusto.

Mas se já tinha conhecido na pele a intolerância à crítica de Rui Rio, tive a seu convite o privilégio de ouvir da sua boca a teorização da menorização do papel da liberdade de imprensa numa democracia. Foi numa conferência no Porto, organizada pela Câmara, onde no essencial repetiu o célebre argumento de Spiro Agnew, um quadro superior da administração Nixon, quando este atacou a imprensa e os jornalistas por estes, ao contrário dos políticos, não serem eleitos. Em concreto, que quem não é eleito não tem legitimidade para criticar quem é eleito. Felizmente eu, que o próprio convidara para essa conferência dizendo-me que era “para levar na cabeça”, ainda tive oportunidade de lhe responder à letra.

Há aqui um padrão, e esse padrão é o de um político que não compreende a essência nem da separação de poderes, nem da importância de sistemas de feios e contrapesos que limitem o poder dos eleitos.

Recordo este episódio para destacar o mais importante: os tiques autoritários e o estilo “posso, quero e mando” são, em Rui Rio, mais do que um impulso sanguíneo, são uma forma de estar e de pensar. E foi por isso que me decidi mesmo a escrever este texto quando, este domingo, o ouvi voltar a disparar contra a comunicação social, desta vez chegando ao ponto de considerar que esta apenas age “em nome das vendas e do lucro.”

Pior: o ataque ao que classificou de “mediaticamente correcto” – sendo que o “mediaticamente correcto” que diz querer combater é o hábito dos jornalistas de seguirem a actualidade e atreverem-se a querer conhecer as posições dos políticos sobre os temas do dia… – veio acompanhado por um ataque sibilino, no limite cobarde, ao Ministério Público. De novo nada que nos surpreenda, pois o presidente do PSD sempre deu mais sinais de estar preocupado com as violações do segredo de Justiça e com a teoria conspirativa da aliança entre a imprensa e o MP do que com a capacidade de a Justiça chegar aos poderosos.

Há aqui um padrão, e esse padrão é o de um político que não compreende a essência nem da separação de poderes, nem da importância de sistemas de freios e contrapesos que limitem o poder dos eleitos. É por isso que sempre me inquietou o seu discurso sobre necessitarmos “de um novo 25 de Abril”, da recorrência com que fala de uma grande reforma da Justiça sem avançar uma só ideia concreta e das palavras sobre mudar o sistema político sem que se entenda como o quer fazer.

Esse padrão é também demasiado semelhante a todos aqueles que entendem que lhes basta ganharem eleições para fazerem o que bem entenderem – de preferência sem críticos a atrapalhar, sem jornalistas a vigiar e escrutinar e com uma Justiça dócil, como a que os poderosos costumam apreciar.

Rui Rio costuma dizer que para ele, como político, o país está sempre primeiro. Já eu, como cidadão, tenho a regra de colocar sempre a liberdade em primeiro lugar e como primeiro critério da avaliação de qualquer político ou qualquer política.

Por fim, tal padrão aproxima-se perigosamente do dos “populismos com bênção democrática”, com as suas vestes de político que não é político, antes alguém que se distingue de todos os outros por dizer que é o interesse nacional que vem sempre em primeiro lugar. Tal como é demasiado próxima da dos líderes autoritários que fazem da comunicação social e da Justiça alvos preferenciais, e julgo que nem preciso de os citar pois são bem conhecidos.

Exagero? Gostava de acreditar que sim e de estar a discutir as ideias de Rui Rio para a Justiça, para a reforma do sistema político ou para a segurança social — só que não as conheço para além de umas generalidades que nada adiantam. Para além de que, mesmo que essas ideias existissem e fossem geniais, para mim de nada serviriam trazendo à mistura tiques de autoritarismo.

Rui Rio costuma dizer que para ele, como político, o país está sempre primeiro. Já eu, como cidadão, tenho a regra de colocar sempre a liberdade em primeiro lugar e como primeiro critério da avaliação de qualquer político ou qualquer política. É por isso que me irritou tanto escrever este texto.

Continuar a ler

marcar artigo