Olhar Bruxelas com os pés em Marvão: o Summer CEmp 2018

03-09-2018
marcar artigo

Por lá passaram oradores com vários percursos profissionais, de vários quadrantes políticos, e com opiniões diferentes sobre o projecto europeu, bem como 50 jovens universitários escolhidos pela Representação. Tive a sorte de ser um deles, e esta é uma reportagem, necessariamente enviesada, daquilo que por lá foi dito.

Por lá passaram oradores com vários percursos profissionais, de vários quadrantes políticos, e com opiniões diferentes sobre o projecto europeu, bem como 50 jovens universitários escolhidos pela Representação. Tive a sorte de ser um deles, e esta é uma reportagem, necessariamente enviesada, daquilo que por lá foi dito.

Não é o lugar óbvio para reunir uma escola de Verão da Comissão Europeia. Marvão fica a 890 metros de altitude, no cume de um enorme monte granítico, a mais de 200 km de um aeroporto. Uma pesquisa no Google não apresenta soluções a quem lá queira chegar de transportes públicos. No entanto, e talvez por isso mesmo, foi lá que a Representação da Comissão Europeia em Portugal decidiu reunir a segunda edição do Summer CEmp, nos dias 28 a 31 de Agosto.

Em discussão estiveram passado, presente, e futuro da União Europeia, não esquecendo o papel de Portugal na sua construção. Por lá passaram oradores com vários percursos profissionais, de vários quadrantes políticos, e com opiniões diferentes sobre o projecto europeu, bem como 50 jovens universitários escolhidos pela Representação. Tive a sorte de ser um deles, e esta é uma reportagem, necessariamente enviesada, daquilo que por lá foi dito.

Dizia Saramago, nas suas Viagens a Portugal, que se compreende que “neste lugar, do alto da torre de menagem do Castelo de Marvão, o viajante murmure respeitosamente: «Que grande é o mundo»”. Essa foi, certamente, uma das sensações mais comuns à chegada. Debaixo de um calor tórrido, as boas-vindas da organização permitiam vislumbrar o que seriam os dias seguintes – de Marvão, iríamos ver a Europa, com todas as suas virtudes e defeitos. Reunidos à porta do Centro Cultural de Marvão, bem no interior das velhas muralhas, participantes e oradores foram distribuídos pelos alojamentos disponíveis no interior da vila, integrando-se na harmoniosa vida local. O programa correria de sol a sol (entrando pela noite dentro), aberto aos habitantes locais interessados em integrar a discussão, e começou de imediato.

Como tiro de partida, relembraram-se as origens do projecto europeu. Estranhamente, ou talvez não, já que é um nativo da região, foi o Ministro da Agricultura que nos lembrou um facto inconveniente, uns dias mais tarde, falando à luz das estrelas que, naquele local, são também espanholas: aquele castelo de Marvão serviu, recentemente à escala da história, para dar guerra aos vizinhos espanhóis. Toda a história de Marvão é uma história de guerra, aliás. A outrora aldeia foi um posto de vigia romano conquistado pelos árabes, sob liderança de Ibn Marwan, para lá construir um castelo. D. Sancho II e D. Dinis foram grandes impulsionadores da região, também por razões militares. É, por isso, natural que Marvão tenha perdido parte do seu propósito em 1986, quando Portugal se juntou ao projeto de paz mais bem sucedido que este continente já sentiu. Ganhou novos propósitos, como mais tarde terei tempo de contar.

As sessões tiveram temas variados e procuraram juntar vozes dissonantes, no respeito pela diferença que é lema da União. O tom nem sempre foi muito positivo, sobretudo naquelas sessões em que se procurava uma discussão profunda dos problemas. Um dos espectros a assolar o Summer CEmp foi a “crise”. Assim mesmo, bem indefinida, já que são muitas e diferentes as que se atribuem à UE, nem todas elas reais.

O tema dos refugiados e migrantes, por exemplo, foi abordado em várias sessões, com um sentido comum de que a “crise”, propriamente dita, já passou. A discussão aconteceu com Ana Paula Zacarias, depois com Lisa Matos e Paulo Sande, e também com Marisa Matias. Do conjunto de intervenções passaram várias mensagens, todas elas surpreendentemente alinhadas. As chegadas registadas em 2018 são manifestamente diminutas quando comparadas com as de outrora, ou com as de outros países. Quando postos em percentagem da população europeia, os números são pequenos, e mais se tornam quando os comparamos com as populações de refugiados na Turquia, na Jordânia ou no Líbano. No entanto, a imagem de uma avalanche humana a desabar sobre a Europa é facilmente veiculada por alguns políticos e imprensa. Tal como na caverna platónica, a nossa incapacidade de perceber que as sombras são meras ilusões e que a realidade é uma outra, tem prejudicado a construção de uma solução comum. Discutiram-se os acordos da União com outros países, as propostas de plataformas de retenção, e o enquadramento de tudo isto com os valores europeus. Soluções? Enquanto não se enfrentar o problema tal como ele é, em vez de fugir da sombra que ele projecta, é difícil chegar a elas.

Também a “crise” do défice democrático da UE, da tirania tecnocrática de Bruxelas, não escapou a um bom escrutínio. Este tema foi ainda mais constante que o dos refugiados, com sessões como “A culpa é sempre da Europa?” ou “A Europa só interessa 33,8%?”. O estereótipo do tecnocrata de Bruxelas é útil para uma redução “schmittiana” da política, permitindo esconder responsabilidades dos agentes nacionais em toda a construção do projecto europeu.

A União tem três grandes centros de decisão: Parlamento, Comissão e Conselho. O Parlamento é eleito directamente pelos europeus, e a sua composição foi decidida através dos tratados, utilizando o método de proporcionalidade degressiva (estados mais pequenos estão sobre-representados), tal como negociado pelos chefes de estado e de governo eleitos de cada membro da União. A Comissão é composta por um cidadão de cada um dos estados-membros, distorcendo até a igualdade pura em direcção a uma maior representação dos mais “pequenos”. Os comissários são nomeados pelos governos eleitos de cada um dos estados e aprovados pelo Parlamento Europeu. Por último, o Conselho senta à mesa os governantes eleitos de cada país. Onde estão os decisores não-eleitos que arrasam a vontade dos povos da União?

Podia haver maior escrutínio e uma decisão mais directa, é claro. Foram apontadas algumas soluções, nem sempre apoiadas por todos os presentes: expandir o conceito de spitzenkandidaten e passar a eleger toda a Comissão, e incentivar os media a escrutinar as decisões que ministros e chefes de estado tomam no Conselho, obrigando-os a comprometer-se com a sua quota parte de responsabilidade, são dois exemplos. André Freire argumentou que um dos problemas estaria nos tais “tecnocratas” a presidir a entidades de regulação e fiscalização europeias. Como exemplo, usou a intervenção da Direção Geral da Concorrência Europeia no dossier Banif. Tive a ocasião de perguntar qual a diferença entre entidades não eleitas europeias e portuguesas, já que ninguém parece queixar-se destas análogas nacionais. A resposta foi vaga e pareceu-me expressar um sentimento comum do discurso crítico da União – o que há de especial quanto às entidades europeias é que elas são muito mais atentas e interventivas e, portanto, mais “incómodas”.

Outra grande crise dos nossos dias, e que necessariamente teria de ser abordada, é a da “verdade”, tema transversal ao evento, mas focalizado na sessão “Após o pós-verdade e desinformação”. Para o discutir, estiveram Diogo Queiroz de Andrade, Filipe Caetano e Daniel Rosário, numa mistura de jornalismo, comunicação e tecnologia, ideal para discutir o tema. Esta não é uma crise europeia, mas a União pode resolvê-la mais facilmente que outras construções políticas, pela forte cultura democrática liberal que representa. É uma crise que se supera fortalecendo o jornalismo, mudando hábitos e cultura digitais, e re-credibilizando as instituições. É, de todas as crises, aquela que mais depende de cada um de nós: da capacidade de financiar o bom jornalismo e votar o mau à ignorância, da desconfiança saudável ao navegar na rede, da batalha contra as empresas que preferem o dinheiro de clicks e bots ao respeito pelas regras da comunidade.

O que sentem 50 jovens ao ouvir tudo isto? O que sentem estes 50 jovens, cuidadosamente seleccionados, não representativos da generalidade dos seus pares? É que, afinal, todas estas crises podem ser referidas a uma outra: a falta de vontade política. Não me refiro à falta de coragem que é apontada a decisores que, sabendo que outro rumo seria melhor, não o escolhem com medo das consequências eleitorais. Refiro-me mesmo à falta de vontade de fazer política, uma atimia que se enraizou em muitos cidadãos e que diaboliza qualquer um que pretenda ter a política como carreira. A falta de participação organizada por parte daqueles que vão lutando por causas, somada à energia com que opositores das sociedades abertas e liberais saem à rua e se apresentam às urnas, tem sido determinante para a deterioração das condições políticas, económicas e sociais na União pós-crise.

Será este um problema novo? Já em 1978, num histórico hino prog-rock, José Cid cantava:

“Vimos pouco a pouco

O mundo acabar

E ficámos calados

Não se ouviu um grito

Não se fez um gesto

Nem a própria ruína

Nos conseguiu manter acordados”

– José Cid

Talvez o problema seja hoje diferente porque o silêncio é só de uma parte. Talvez as coisas se resolvam com maior participação jovem. Foi essa a conclusão de muitos dos oradores, que foram repetindo que está nas nossas mãos mudar isto. É uma afirmação que me parece muito injusta, embora bem intencionada; uma espécie de lavar da responsabilidade por parte da geração que recebeu um estado de coisas próspero e que, agora, se vai revoltando contra ele. Frans Timmermans disse-nos que somos uma geração para a qual a ideologia já não faz sentido e que luta agora por causas, dando o exemplo da regulação sobre o uso de plásticos que a Comissão está a desenvolver. Disse-o, de certa forma, resignado. Também o Secretário de Estado da Juventude, João Paulo Rebelo, falou muito de associativismo jovem, como se ele substituísse uma participação política ativa. Há condições para construir uma família, resolvendo a crise demográfica? Há condições para ter a independência necessária a uma atividade política enérgica? Das desigualdades sociais crescentes e das condições precárias para a maior parte dos jovens que se lançam no mercado de trabalho, pouco se falou. Ironicamente, houve um sentimento quase unânime de que a sessão com as juventudes partidárias ficou aquém das expectativas, pelo seu discurso desligado das preocupações dos seus pares, e pela semelhança entre JP, JS e JSD (a presença de alguém da JCP, convidada também, teria ajudado a sacudir as águas, mas foi marcada falta no livro de ponto).

Se teve mérito maior, este Summer CEmp, foi o de credibilizar a política e quem a faz. Para mim, foi revelador perceber quem são os homens e as mulheres que se dedicam ao exercício do poder político, um poder muitas vezes envenenado, em que é difícil equilibrar vontades enquanto se enfrenta a limitação que a realidade impõe. Acho que esta noção foi comum aos 50 jovens, e será uma mensagem a divulgar junto dos nossos pares.

Não foram 4 dias demasiado focados em debater problemas, contudo. Houve também lugar para partilha de interesses e motivações, em conversas mais intimistas, recheadas de histórias. A capacidade de contar histórias podia, aliás, ter sido o critério para as sessões que aconteceram no Último Reduto do Castelo de Marvão, três finais de tarde à conversa com três líderes políticos. Frans Timmermans, um homem com um cargo bem “à Bruxelas” – Primeiro Vice-Presidente da Comissão Europeia –, veio lembrar-nos que estamos hoje muito melhor do que quando o projecto europeu foi iniciado, e também que a sua construção sempre dependeu de crises e da vontade de as superar colectivamente. Tiago Brandão Rodrigues, Ministro da Educação, usou a sua história de vida para falar sobre as vantagens da União para estudantes e cientistas e, por isso mesmo, para todos os europeus. Independentemente da qualidade do trabalho político, julgada de forma diferente consoante o juiz, creio ter ficado claro para todos nós o seu bom exemplo, ao abdicar de carreira, salário e qualidade de vida para se envolver numa luta que, percebemos, quer que gire em torno de melhores condições de ensino, maior igualdade de oportunidades, e modernização dos currículos da escola portuguesa. O terceiro interveniente, Luís Capoulas Santos, Ministro da Agricultura, despertou a reacção que mais me surpreendeu: telemóveis a gravar e blocos de notas a registar o conjunto de factos, histórias e previsões com que nos brindou. De forma educada, mas sem dar trégua às suas preocupações, os 50 foram disparando perguntas até bem depois do anoitecer.

O espírito de partilha informal que se viveu durante 4 dias não deixou ninguém indiferente. Atrevo-me a dizer que os momentos altos foram as refeições na “Varanda do Alentejo”, em formato lotaria, com senhas a ditarem a companhia a cada momento. Foi assim que pude jantar com a presidente da CCDR-Centro, Ana Abrunhosa, com a adjunta do Ministro da Agricultura, La Salette Marques, ou com o Presidente da Câmara de Marvão, Luís Vitorino, aproveitando para conversar sobre funções que são peculiares, centrais para o bom funcionamento do Estado, e muito pouco abordadas nos meios tradicionais. Como é distribuir fundos europeus em articulação com Estado, autarquias e empresas, garantindo que eles cumprem a sua função? Como é coordenar a estratégia e o desenho de políticas públicas para um governo nacional? Como é governar uma Câmara isolada dos grandes centros de decisão, numa região fronteiriça, em governo minoritário? Não são perguntas que se possam fazer regularmente, e seria difícil conseguir um ambiente onde elas fossem respondidas com maior transparência e sentido crítico. O pós-jantar, sob o ar frio mas aconchegante de Marvão, acompanhado de algumas cervejas, permitiu que jovens, oradores e jornalistas se misturassem ao ponto de não se perceber quem era quem, para no dia seguinte, às 8:30, se voltar ao trabalho mais capaz de compreender o papel do outro.

E, afinal, o que teve Marvão a dizer sobre tudo isto? Tal como bem explicou o Presidente da Câmara na sessão de abertura, Marvão é um bom exemplo da chegada da UE a Portugal. Se, em alguns aspectos, foi danoso para os residentes – acabou o posto fronteiriço, foram reduzidos serviços administrativos, algumas das indústrias-chave da região perderam o domínio dos seus mercados; a verdade é que a entrada na UE permitiu repensar o desenvolvimento do território, dando melhores condições de vida e reorientando a actividade económica. Marvão tinha grandes dificuldades ao nível do saneamento, das telecomunicações e de equipamentos e infraestruturas, dificuldades que têm vindo a ser superadas com a ajuda das políticas de coesão da União. Se a fronteira era, anteriormente, uma fonte de empregos e serviços na região, era também um entrave à circulação entre dois países vizinhos com comunidades interligadas, e que Schengen veio unir de forma muito mais intensa.

Houve até uma sessão dedicada à “Europa dos (muitos) interiores”, onde foi possível ouvir Adolfo Mesquita Nunes a contar-nos que lhe parece ignorante que se diga que a Europa não chegou ao interior do país. “Como se antes disso o país chegasse e se tivesse perdido o comboio do desenvolvimento por causa disso”, completou, tendo o cuidado de deixar claro que, na sua opinião, a Europa fez muito pelo interior. Os exemplos que forneceu sobre a região da Covilhã são semelhantes àqueles que o presidente da Câmara de Marvão foi dando. Hoje, Marvão é uma vila europeia, com uma taxa de ocupação hoteleira anual que ronda os 80%, capaz de organizar um festival internacional de música clássica, e com relações muito próximas com Badajoz.

A partida deixou claro que o Summer CEmp foi, pelo segundo ano consecutivo, uma aposta ganha por parte da Representação da Comissão Europeia em Portugal. Enquanto evento formativo, não é formatador. Enquanto estratégia de comunicação da União, é coerente com os ideais que lhe dão corpo. Vim embora com vontade de voltar. No regresso a casa, o Pedro Ramos, colega Summer CEmpiano, partilhou comigo o poema que resume a experiência inacabada por que passámos:

“abandonar a aldeia o lugar a casa o corpo

a escrita e todas as paisagens

viajar escondido no comboio-correio da noite

repisar tua sombra oblíqua naqueles areais

cercado de água morder o coral do medo

onde tua ausência se quebra… migrar

com as marés da noite para regiões onde o sonho existe

fora de ti

uma cerveja outra e outra

para que um sorriso se revele na embriaguez da despedida

abro um livro:

‘Uma só coisa é necessária: a solidão, a grande solidão interior.

Caminhar em si próprio e, durante horas, não encontrar ninguém

– é a isto que é preciso chegar.’

não consigo ler mais… fecho os olhos

a paisagem desaparece num rápido e desfocado adeus

penso voltar

e sei que mentira desperta já em mim

recosto-me profundamente no assento … desafio o sono

invade-me a ânsia do eterno viajante

comboios barcos que vão para onde?

esperem por mim

eu vou”

– Al Berto

Por lá passaram oradores com vários percursos profissionais, de vários quadrantes políticos, e com opiniões diferentes sobre o projecto europeu, bem como 50 jovens universitários escolhidos pela Representação. Tive a sorte de ser um deles, e esta é uma reportagem, necessariamente enviesada, daquilo que por lá foi dito.

Por lá passaram oradores com vários percursos profissionais, de vários quadrantes políticos, e com opiniões diferentes sobre o projecto europeu, bem como 50 jovens universitários escolhidos pela Representação. Tive a sorte de ser um deles, e esta é uma reportagem, necessariamente enviesada, daquilo que por lá foi dito.

Não é o lugar óbvio para reunir uma escola de Verão da Comissão Europeia. Marvão fica a 890 metros de altitude, no cume de um enorme monte granítico, a mais de 200 km de um aeroporto. Uma pesquisa no Google não apresenta soluções a quem lá queira chegar de transportes públicos. No entanto, e talvez por isso mesmo, foi lá que a Representação da Comissão Europeia em Portugal decidiu reunir a segunda edição do Summer CEmp, nos dias 28 a 31 de Agosto.

Em discussão estiveram passado, presente, e futuro da União Europeia, não esquecendo o papel de Portugal na sua construção. Por lá passaram oradores com vários percursos profissionais, de vários quadrantes políticos, e com opiniões diferentes sobre o projecto europeu, bem como 50 jovens universitários escolhidos pela Representação. Tive a sorte de ser um deles, e esta é uma reportagem, necessariamente enviesada, daquilo que por lá foi dito.

Dizia Saramago, nas suas Viagens a Portugal, que se compreende que “neste lugar, do alto da torre de menagem do Castelo de Marvão, o viajante murmure respeitosamente: «Que grande é o mundo»”. Essa foi, certamente, uma das sensações mais comuns à chegada. Debaixo de um calor tórrido, as boas-vindas da organização permitiam vislumbrar o que seriam os dias seguintes – de Marvão, iríamos ver a Europa, com todas as suas virtudes e defeitos. Reunidos à porta do Centro Cultural de Marvão, bem no interior das velhas muralhas, participantes e oradores foram distribuídos pelos alojamentos disponíveis no interior da vila, integrando-se na harmoniosa vida local. O programa correria de sol a sol (entrando pela noite dentro), aberto aos habitantes locais interessados em integrar a discussão, e começou de imediato.

Como tiro de partida, relembraram-se as origens do projecto europeu. Estranhamente, ou talvez não, já que é um nativo da região, foi o Ministro da Agricultura que nos lembrou um facto inconveniente, uns dias mais tarde, falando à luz das estrelas que, naquele local, são também espanholas: aquele castelo de Marvão serviu, recentemente à escala da história, para dar guerra aos vizinhos espanhóis. Toda a história de Marvão é uma história de guerra, aliás. A outrora aldeia foi um posto de vigia romano conquistado pelos árabes, sob liderança de Ibn Marwan, para lá construir um castelo. D. Sancho II e D. Dinis foram grandes impulsionadores da região, também por razões militares. É, por isso, natural que Marvão tenha perdido parte do seu propósito em 1986, quando Portugal se juntou ao projeto de paz mais bem sucedido que este continente já sentiu. Ganhou novos propósitos, como mais tarde terei tempo de contar.

As sessões tiveram temas variados e procuraram juntar vozes dissonantes, no respeito pela diferença que é lema da União. O tom nem sempre foi muito positivo, sobretudo naquelas sessões em que se procurava uma discussão profunda dos problemas. Um dos espectros a assolar o Summer CEmp foi a “crise”. Assim mesmo, bem indefinida, já que são muitas e diferentes as que se atribuem à UE, nem todas elas reais.

O tema dos refugiados e migrantes, por exemplo, foi abordado em várias sessões, com um sentido comum de que a “crise”, propriamente dita, já passou. A discussão aconteceu com Ana Paula Zacarias, depois com Lisa Matos e Paulo Sande, e também com Marisa Matias. Do conjunto de intervenções passaram várias mensagens, todas elas surpreendentemente alinhadas. As chegadas registadas em 2018 são manifestamente diminutas quando comparadas com as de outrora, ou com as de outros países. Quando postos em percentagem da população europeia, os números são pequenos, e mais se tornam quando os comparamos com as populações de refugiados na Turquia, na Jordânia ou no Líbano. No entanto, a imagem de uma avalanche humana a desabar sobre a Europa é facilmente veiculada por alguns políticos e imprensa. Tal como na caverna platónica, a nossa incapacidade de perceber que as sombras são meras ilusões e que a realidade é uma outra, tem prejudicado a construção de uma solução comum. Discutiram-se os acordos da União com outros países, as propostas de plataformas de retenção, e o enquadramento de tudo isto com os valores europeus. Soluções? Enquanto não se enfrentar o problema tal como ele é, em vez de fugir da sombra que ele projecta, é difícil chegar a elas.

Também a “crise” do défice democrático da UE, da tirania tecnocrática de Bruxelas, não escapou a um bom escrutínio. Este tema foi ainda mais constante que o dos refugiados, com sessões como “A culpa é sempre da Europa?” ou “A Europa só interessa 33,8%?”. O estereótipo do tecnocrata de Bruxelas é útil para uma redução “schmittiana” da política, permitindo esconder responsabilidades dos agentes nacionais em toda a construção do projecto europeu.

A União tem três grandes centros de decisão: Parlamento, Comissão e Conselho. O Parlamento é eleito directamente pelos europeus, e a sua composição foi decidida através dos tratados, utilizando o método de proporcionalidade degressiva (estados mais pequenos estão sobre-representados), tal como negociado pelos chefes de estado e de governo eleitos de cada membro da União. A Comissão é composta por um cidadão de cada um dos estados-membros, distorcendo até a igualdade pura em direcção a uma maior representação dos mais “pequenos”. Os comissários são nomeados pelos governos eleitos de cada um dos estados e aprovados pelo Parlamento Europeu. Por último, o Conselho senta à mesa os governantes eleitos de cada país. Onde estão os decisores não-eleitos que arrasam a vontade dos povos da União?

Podia haver maior escrutínio e uma decisão mais directa, é claro. Foram apontadas algumas soluções, nem sempre apoiadas por todos os presentes: expandir o conceito de spitzenkandidaten e passar a eleger toda a Comissão, e incentivar os media a escrutinar as decisões que ministros e chefes de estado tomam no Conselho, obrigando-os a comprometer-se com a sua quota parte de responsabilidade, são dois exemplos. André Freire argumentou que um dos problemas estaria nos tais “tecnocratas” a presidir a entidades de regulação e fiscalização europeias. Como exemplo, usou a intervenção da Direção Geral da Concorrência Europeia no dossier Banif. Tive a ocasião de perguntar qual a diferença entre entidades não eleitas europeias e portuguesas, já que ninguém parece queixar-se destas análogas nacionais. A resposta foi vaga e pareceu-me expressar um sentimento comum do discurso crítico da União – o que há de especial quanto às entidades europeias é que elas são muito mais atentas e interventivas e, portanto, mais “incómodas”.

Outra grande crise dos nossos dias, e que necessariamente teria de ser abordada, é a da “verdade”, tema transversal ao evento, mas focalizado na sessão “Após o pós-verdade e desinformação”. Para o discutir, estiveram Diogo Queiroz de Andrade, Filipe Caetano e Daniel Rosário, numa mistura de jornalismo, comunicação e tecnologia, ideal para discutir o tema. Esta não é uma crise europeia, mas a União pode resolvê-la mais facilmente que outras construções políticas, pela forte cultura democrática liberal que representa. É uma crise que se supera fortalecendo o jornalismo, mudando hábitos e cultura digitais, e re-credibilizando as instituições. É, de todas as crises, aquela que mais depende de cada um de nós: da capacidade de financiar o bom jornalismo e votar o mau à ignorância, da desconfiança saudável ao navegar na rede, da batalha contra as empresas que preferem o dinheiro de clicks e bots ao respeito pelas regras da comunidade.

O que sentem 50 jovens ao ouvir tudo isto? O que sentem estes 50 jovens, cuidadosamente seleccionados, não representativos da generalidade dos seus pares? É que, afinal, todas estas crises podem ser referidas a uma outra: a falta de vontade política. Não me refiro à falta de coragem que é apontada a decisores que, sabendo que outro rumo seria melhor, não o escolhem com medo das consequências eleitorais. Refiro-me mesmo à falta de vontade de fazer política, uma atimia que se enraizou em muitos cidadãos e que diaboliza qualquer um que pretenda ter a política como carreira. A falta de participação organizada por parte daqueles que vão lutando por causas, somada à energia com que opositores das sociedades abertas e liberais saem à rua e se apresentam às urnas, tem sido determinante para a deterioração das condições políticas, económicas e sociais na União pós-crise.

Será este um problema novo? Já em 1978, num histórico hino prog-rock, José Cid cantava:

“Vimos pouco a pouco

O mundo acabar

E ficámos calados

Não se ouviu um grito

Não se fez um gesto

Nem a própria ruína

Nos conseguiu manter acordados”

– José Cid

Talvez o problema seja hoje diferente porque o silêncio é só de uma parte. Talvez as coisas se resolvam com maior participação jovem. Foi essa a conclusão de muitos dos oradores, que foram repetindo que está nas nossas mãos mudar isto. É uma afirmação que me parece muito injusta, embora bem intencionada; uma espécie de lavar da responsabilidade por parte da geração que recebeu um estado de coisas próspero e que, agora, se vai revoltando contra ele. Frans Timmermans disse-nos que somos uma geração para a qual a ideologia já não faz sentido e que luta agora por causas, dando o exemplo da regulação sobre o uso de plásticos que a Comissão está a desenvolver. Disse-o, de certa forma, resignado. Também o Secretário de Estado da Juventude, João Paulo Rebelo, falou muito de associativismo jovem, como se ele substituísse uma participação política ativa. Há condições para construir uma família, resolvendo a crise demográfica? Há condições para ter a independência necessária a uma atividade política enérgica? Das desigualdades sociais crescentes e das condições precárias para a maior parte dos jovens que se lançam no mercado de trabalho, pouco se falou. Ironicamente, houve um sentimento quase unânime de que a sessão com as juventudes partidárias ficou aquém das expectativas, pelo seu discurso desligado das preocupações dos seus pares, e pela semelhança entre JP, JS e JSD (a presença de alguém da JCP, convidada também, teria ajudado a sacudir as águas, mas foi marcada falta no livro de ponto).

Se teve mérito maior, este Summer CEmp, foi o de credibilizar a política e quem a faz. Para mim, foi revelador perceber quem são os homens e as mulheres que se dedicam ao exercício do poder político, um poder muitas vezes envenenado, em que é difícil equilibrar vontades enquanto se enfrenta a limitação que a realidade impõe. Acho que esta noção foi comum aos 50 jovens, e será uma mensagem a divulgar junto dos nossos pares.

Não foram 4 dias demasiado focados em debater problemas, contudo. Houve também lugar para partilha de interesses e motivações, em conversas mais intimistas, recheadas de histórias. A capacidade de contar histórias podia, aliás, ter sido o critério para as sessões que aconteceram no Último Reduto do Castelo de Marvão, três finais de tarde à conversa com três líderes políticos. Frans Timmermans, um homem com um cargo bem “à Bruxelas” – Primeiro Vice-Presidente da Comissão Europeia –, veio lembrar-nos que estamos hoje muito melhor do que quando o projecto europeu foi iniciado, e também que a sua construção sempre dependeu de crises e da vontade de as superar colectivamente. Tiago Brandão Rodrigues, Ministro da Educação, usou a sua história de vida para falar sobre as vantagens da União para estudantes e cientistas e, por isso mesmo, para todos os europeus. Independentemente da qualidade do trabalho político, julgada de forma diferente consoante o juiz, creio ter ficado claro para todos nós o seu bom exemplo, ao abdicar de carreira, salário e qualidade de vida para se envolver numa luta que, percebemos, quer que gire em torno de melhores condições de ensino, maior igualdade de oportunidades, e modernização dos currículos da escola portuguesa. O terceiro interveniente, Luís Capoulas Santos, Ministro da Agricultura, despertou a reacção que mais me surpreendeu: telemóveis a gravar e blocos de notas a registar o conjunto de factos, histórias e previsões com que nos brindou. De forma educada, mas sem dar trégua às suas preocupações, os 50 foram disparando perguntas até bem depois do anoitecer.

O espírito de partilha informal que se viveu durante 4 dias não deixou ninguém indiferente. Atrevo-me a dizer que os momentos altos foram as refeições na “Varanda do Alentejo”, em formato lotaria, com senhas a ditarem a companhia a cada momento. Foi assim que pude jantar com a presidente da CCDR-Centro, Ana Abrunhosa, com a adjunta do Ministro da Agricultura, La Salette Marques, ou com o Presidente da Câmara de Marvão, Luís Vitorino, aproveitando para conversar sobre funções que são peculiares, centrais para o bom funcionamento do Estado, e muito pouco abordadas nos meios tradicionais. Como é distribuir fundos europeus em articulação com Estado, autarquias e empresas, garantindo que eles cumprem a sua função? Como é coordenar a estratégia e o desenho de políticas públicas para um governo nacional? Como é governar uma Câmara isolada dos grandes centros de decisão, numa região fronteiriça, em governo minoritário? Não são perguntas que se possam fazer regularmente, e seria difícil conseguir um ambiente onde elas fossem respondidas com maior transparência e sentido crítico. O pós-jantar, sob o ar frio mas aconchegante de Marvão, acompanhado de algumas cervejas, permitiu que jovens, oradores e jornalistas se misturassem ao ponto de não se perceber quem era quem, para no dia seguinte, às 8:30, se voltar ao trabalho mais capaz de compreender o papel do outro.

E, afinal, o que teve Marvão a dizer sobre tudo isto? Tal como bem explicou o Presidente da Câmara na sessão de abertura, Marvão é um bom exemplo da chegada da UE a Portugal. Se, em alguns aspectos, foi danoso para os residentes – acabou o posto fronteiriço, foram reduzidos serviços administrativos, algumas das indústrias-chave da região perderam o domínio dos seus mercados; a verdade é que a entrada na UE permitiu repensar o desenvolvimento do território, dando melhores condições de vida e reorientando a actividade económica. Marvão tinha grandes dificuldades ao nível do saneamento, das telecomunicações e de equipamentos e infraestruturas, dificuldades que têm vindo a ser superadas com a ajuda das políticas de coesão da União. Se a fronteira era, anteriormente, uma fonte de empregos e serviços na região, era também um entrave à circulação entre dois países vizinhos com comunidades interligadas, e que Schengen veio unir de forma muito mais intensa.

Houve até uma sessão dedicada à “Europa dos (muitos) interiores”, onde foi possível ouvir Adolfo Mesquita Nunes a contar-nos que lhe parece ignorante que se diga que a Europa não chegou ao interior do país. “Como se antes disso o país chegasse e se tivesse perdido o comboio do desenvolvimento por causa disso”, completou, tendo o cuidado de deixar claro que, na sua opinião, a Europa fez muito pelo interior. Os exemplos que forneceu sobre a região da Covilhã são semelhantes àqueles que o presidente da Câmara de Marvão foi dando. Hoje, Marvão é uma vila europeia, com uma taxa de ocupação hoteleira anual que ronda os 80%, capaz de organizar um festival internacional de música clássica, e com relações muito próximas com Badajoz.

A partida deixou claro que o Summer CEmp foi, pelo segundo ano consecutivo, uma aposta ganha por parte da Representação da Comissão Europeia em Portugal. Enquanto evento formativo, não é formatador. Enquanto estratégia de comunicação da União, é coerente com os ideais que lhe dão corpo. Vim embora com vontade de voltar. No regresso a casa, o Pedro Ramos, colega Summer CEmpiano, partilhou comigo o poema que resume a experiência inacabada por que passámos:

“abandonar a aldeia o lugar a casa o corpo

a escrita e todas as paisagens

viajar escondido no comboio-correio da noite

repisar tua sombra oblíqua naqueles areais

cercado de água morder o coral do medo

onde tua ausência se quebra… migrar

com as marés da noite para regiões onde o sonho existe

fora de ti

uma cerveja outra e outra

para que um sorriso se revele na embriaguez da despedida

abro um livro:

‘Uma só coisa é necessária: a solidão, a grande solidão interior.

Caminhar em si próprio e, durante horas, não encontrar ninguém

– é a isto que é preciso chegar.’

não consigo ler mais… fecho os olhos

a paisagem desaparece num rápido e desfocado adeus

penso voltar

e sei que mentira desperta já em mim

recosto-me profundamente no assento … desafio o sono

invade-me a ânsia do eterno viajante

comboios barcos que vão para onde?

esperem por mim

eu vou”

– Al Berto

marcar artigo