Marcelo: o jogo de xadrez da recandidatura

20-02-2020
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Desde 1996 que Marcelo Rebelo de Sousa conhece, por experiência própria, as repercussões de afirmações demasiado taxativas. Regra geral, as tiradas categóricas colam-se e acompanham quem as produz para o resto da vida. Nesse ano, quando foi questionado sobre a hipótese de se candidatar à liderança do PSD, o professor foi contundente. “Nem que Cristo desça à Terra”, respondeu. A frase agarrou-se-lhe à pele, uma vez que acabou mesmo por avançar para a presidência do partido, apesar de não haver registo fidedigno de uma qualquer aparição de Jesus.

Talvez por isso se tenha tornado mais cauteloso e tenha evitado produzir declarações definitivas, mesmo quando estava em causa a potencial candidatura à Presidência da República – confirmada em 2015 (as eleições ocorreram em janeiro do ano seguinte). Se na política, tal como no futebol, “o que hoje é verdade amanhã pode ser mentira” – António Pimenta Machado, ex-presidente do Vitória de Guimarães, dixit –, o Chefe de Estado não tem querido comprometer-se no que toca à recandidatura, mas só mesmo os mais céticos ou distraídos suporão que o anúncio não acontecerá.

Tendo completado os 71 anos a 12 de dezembro, o Chefe de Estado tem dado vários sinais de que quer continuar em funções e entra em 2020 com o calendário bem definido: o tabu será desfeito no outono, à semelhança do timing que adotou na primeira vez (confirmou que entrava na corrida três meses antes do sufrágio). Seja como for, não tem sido fácil manter o segredo mais mal guardado da política nacional. As dúvidas e hesitações – se é que as há – têm sido desfiadas com engenho.

Vejamos: em várias ocasiões, ao longo da carreira política, Marcelo defendeu que o ideal seria que a Constituição previsse “um só mandato presidencial mais longo”, embora nunca o tenha feito em alusão ao seu caso em concreto e ao cenário de “imitar” os inquilinos do Palácio de Belém (António Ramalho Eanes, Mário Soares, Jorge Sampaio e Aníbal Cavaco Silva) no pós-Revolução de Abril, que o ocuparam, sem exceção, durante uma década.

“Algum dia, um Presidente eleito dará o exemplo de fazer os seus cinco anos sem qualquer reeleição e, por isso, não se autocondicionando por causa dela”, observou, num discurso na Voz do Operário, em Lisboa, ainda na condição de candidato.

Ao completar dois anos de mandato, a 9 de março de 2018, o antigo comentador televisivo prometeu não “utilizar o cargo de Presidente para fazer uma candidatura escondida”, afastando igualmente “despedidas grandiosas”, caso decidisse não continuar. Dois meses volvidos, numa entrevista à Rádio Renascença e ao Público, divulgada a 8 de maio, adicionou uma variável à equação: garantiu que uma nova tragédia como os incêndios florestais de 2017, nos quais 116 pessoas perderam a vida, seria um acontecimento “impeditivo de uma recandidatura”.

Já a 26 de janeiro do ano passado, no Panamá, assumiu que a realização da Jornada Mundial de Juventude de 2022 em Portugal, com a presença do Papa confirmada, seria um tónico – confessou ter “uma grande vontade” de o fazer – para mais cinco anos como primeira figura do Estado. De novo em solo lusitano, adicionou as edições seguintes da Web Summit e a presidência portuguesa da União Europeia (no primeiro semestre de 2021) à lista de estímulos para se recandidatar, mas introduziu o fator saúde na ponderação

De facto, depois de revelar ao País que tinha um pequeno problema cardíaco – numa entrevista intimista no programa Alta Definição, da SIC –, foi submetido a um cateterismo e, à saída do Hospital de Santa Cruz, em Oeiras, considerou que a melhoria do seu estado clínico constituía “um fator positivo” na reflexão. Já antes, em dezembro de 2018, Marcelo fora forçado a cancelar vários compromissos e a aliviar a sempre preenchida agenda por força de uma operação de urgência a uma hérnia umbilical.

Se o PS o apoiar ou, no mínimo, não patrocinar uma candidatura alternativa, Marcelo tem via aberta para um resultado histórico. A fasquia está nos 70,35% dos votos

Além disso, o Presidente não esconde que se considera o fiel da balança da democracia nacional – ele que já disse situar-se ideologicamente “na esquerda da direita”. Não foi inocente quando, na ressaca de umas europeias em que PSD e CDS, somados, não foram além dos 28,13% dos votos, alertou para o “equilíbrio de forças” entre os dois blocos que se formaram no Parlamento. E o diagnóstico de crise à direita foi recebido com desagrado por Rui Rio e Assunção Cristas.

Ora, num quadro em que o PS não dispõe de maioria absoluta na Assembleia da República, tendo recusado assinar um acordo com o BE que lhe garantisse estabilidade, o Presidente está ciente dos riscos da atomização do hemiciclo, onde têm lugar, pela primeira vez, dez forças políticas. E até já preveniu que este ano “serão votados dois dos quatro orçamentos da legislatura”. O subtexto é claro: quer responsabilidade dos líderes partidários, em nome da estabilidade política, económica e social do País.

Mais: o Chefe de Estado sabe que em 2020, ao abrigo da Constituição, terá os seus poderes diminuídos. Perante uma eventual crise, não terá a “bomba atómica” à mão na maior parte do ano. Só poderá dissolver a Assembleia da República entre o início de abril e o de setembro, ou seja, no intervalo entre os seis meses decorridos desde as legislativas e até entrar no último semestre do mandato presidencial.

“Eu Show Marcelo”

Em quase quatro anos de mandato, marcados por uma inaudita omnipresença mediática, Marcelo fez dos afetos (mais ou menos espontâneos) a sua lei na relação com os portugueses. Apostou no contacto direto com as populações, quis estar próximo dos mais carenciados, apareceu em bairros problemáticos, encheu carrinhos de compras em campanhas solidárias. Através de um estilo que Nuno Morais Sarmento, vice-presidente do PSD, batizou como “popularista”, o Presidente procurou transmitir a ideia de que a República não deixa ninguém para trás. Foi essa, em certa medida, a receita para refrear ímpetos populistas que pudessem estar a surgir.

Assim, não espanta que, estudo atrás de estudo, inquérito após inquérito, Marcelo seja o líder político com os índices de popularidade mais elevados. Ainda este mês, numa sondagem realizada pela Aximage para o Jornal Económico, à pergunta acerca do candidato em que votariam nas presidenciais de 2021, os inquiridos responderam de forma inequívoca: o atual Chefe de Estado recolhia 69,6% das preferências. Para que se perceba a superioridade, teria cinco vezes mais votos do que a soma das outras cinco hipóteses apresentadas (Jerónimo de Sousa, Ana Gomes, Francisco Louçã, André Ventura e Pedro Santana Lopes), o que faria desse ato eleitoral pouco mais do que uma formalidade.

O professor ainda tem exames até às eleições

Eutanásia, regionalização (mesmo em versão light), populismos: os desafios do PR

Na apresentação de cumprimentos de boas-festas dos membros do Governo ao Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa afirmou que a professora Maria de Sousa, uma amiga, “costuma dizer que a exigência é uma sentinela que não pode dormir” e que isso se “aplica bem” a 2020. O Chefe de Estado considera que este ano vai ser determinante para o futuro dos portugueses, dado que nele serão aprovados dois Orçamentos do Estado, instrumentos que Marcelo considera fundamentais para a estabilidade política e económica do País. Ainda para mais, a conjuntura internacional ameaça tornar-se mais adversa e, no primeiro semestre de 2021, Portugal assumirá a presidência da União Europeia. Crescimento mais sustentado e duradouro, educação com mais qualidade e combate feroz à pobreza e às desigualdades são uma espécie de troika das prioridades do Presidente, verbalizadas em diversas ocasiões, mas esses desígnios estão longe de ser os únicos exames a que o antigo professor universitário vai estar sujeito. Este ano, último do mandato em Belém, traz temas quentes, que vão pôr à prova a resistência de Marcelo. Desde logo, a legalização da morte medicamente assistida, vulgarmente conhecida como eutanásia, sobre a qual já foram apresentados quatro projetos de lei (do PS, BE, PAN e PEV) e que, face aos novos equilíbrios parlamentares, mais facilmente terá luz verde na Assembleia da República. Marcelo, católico, é contra a ideia, mas terá condições políticas para a vetar? E se, pelo meio, alguém propuser o referendo? Igualmente tensa adivinha-se a discussão sobre a regionalização, ainda que numa versão mais suave – a hipótese hard, que o Governo defendia, já foi empurrada para a próxima legislatura. Este plano B, com a eleição direta dos presidentes das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto e com o reforço das competências das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR), poderá implicar sobreposição de funções e multiplicação de cargos na Administração Pública, algo que o Presidente não achará aconselhável. Pelo caminho, Marcelo tem estado atento ao crescimento dos fenómenos de populismo além-fronteiras e quer minimizar as hipóteses de contágio em Portugal. A título de exemplo, o Presidente tem optado por não hostilizar André Ventura, ao contrário do que têm feito vários responsáveis da esquerda parlamentar e mesmo Eduardo Ferro Rodrigues. A lição está bem estudada: Marcelo não quer que haja qualquer pretexto para vitimizações do líder do Chega.

A sondagem fez ainda com que viessem à tona alguns dados curiosos. Nesta altura, Rebelo de Sousa reúne um apoio mais expressivo entre quem votou no PS nas últimas legislativas do que nos inquiridos que assumiram ter escolhido o PSD (83,9% contra 75,9%, respetivamente), o que pode ser lido como um sintoma de algum incómodo entre o universo “laranja” com o exercício do cargo de Presidente. Os desabafos e as críticas sobre o amparo excessivo ao Governo e à Geringonça acumulam-se e são cada vez mais audíveis.

Ainda que os sociais-democratas decidam se mudam ou não de líder já em janeiro, o caminho para que Rui Rio, Luís Montenegro ou Miguel Pinto Luz recuse apoiar o seu antigo líder é demasiado estreito e politicamente difícil de fundamentar. Quanto aos pretendentes ao lugar de Assunção Cristas, no CDS, nenhum deles se comprometeu com uma eventual bênção à decisão do Presidente, mas as circunstâncias podem vir a ditar um apoio a contragosto, como Pedro Passos Coelho e Paulo Portas fizeram há quatro anos.

Mais à direita, perfila-se já um oponente. André Ventura, o polémico presidente e deputado único do Chega, tem criticado recorrentemente o inquilino de Belém, o qual considera ter responsabilidades na erosão do centro-direita português. Na primeira convenção do partido, aliás, Ventura comprometeu-se a apresentar uma alternativa a Marcelo, para que este não venha a ser reeleito, como escreveu o Sol, com as decisões mais controversas do seu mandato – do assalto a Tancos, e subsequente encobrimento, à não recondução de Joana Marques Vidal no cargo de procuradora-geral da República, passando pela promulgação da lei da igualdade de género ou pela opção de Marcelo de alegadamente “virar as costas” aos polícias, depois do episódio no bairro da Jamaica (Seixal). Já este mês, Ventura enviou um vídeo aos dirigentes e militantes do Chega a confirmar que entrará na disputa.

DR

Ao seu estilo, António Costa também mantém tudo em aberto e não tenciona fazer movimentações arriscadas até as peças estarem todas sobre o tabuleiro. Para o primeiro-ministro e secretário-geral do PS, é um dado adquirido que Marcelo voltará a entrar na disputa. “Eu diria, se me fosse permitido ser por dez segundos analista político, que há 99% de possibilidades de ele se candidatar. Além do mais, seria incompreensível para 80% dos portugueses que o apoiam verem-se frustrados por não o terem”, disse, em julho.

O chefe do executivo excluiu-se de uma aventura presidencial em 2021, ou até noutros anos, mas reservou a posição dos socialistas para uma oportunidade mais próxima do ato eleitoral. No entanto, lá deixou escapar que o partido “sempre teve como tradição apoiar candidatos e não propor candidatos”. Se o PS o apoiar ou se, no mínimo, não patrocinar uma candidatura alternativa, Marcelo tem via aberta para um resultado histórico. Há até quem advogue a tese de que o professor terá em mente superar o score de 1991 de Mário Soares, quando o fundador e líder histórico dos socialistas renovou o mandato em Belém ao obter 70,35% dos votos. Pormenor: nesse sufrágio, Cavaco decidiu apoiá-lo e o grande entendimento ao centro traduziu-se em quase três milhões e meio de votos em Soares. Nas margens, ficaram Basílio Horta (apoiado pelo CDS), com 14,16% das preferências, Carlos Carvalhas (PCP), com 12,92%, e Carlos Marques (UDP), com 2,57%.

Perante tudo isto, os portugueses parecem “condenados” a renovar os votos com Marcelo por um segundo quinquénio. O Presidente bem pode ser um homem de fé, mas, mesmo que Cristo desça à Terra, ninguém o “livra” de mais cinco anos de afetos.

Desde 1996 que Marcelo Rebelo de Sousa conhece, por experiência própria, as repercussões de afirmações demasiado taxativas. Regra geral, as tiradas categóricas colam-se e acompanham quem as produz para o resto da vida. Nesse ano, quando foi questionado sobre a hipótese de se candidatar à liderança do PSD, o professor foi contundente. “Nem que Cristo desça à Terra”, respondeu. A frase agarrou-se-lhe à pele, uma vez que acabou mesmo por avançar para a presidência do partido, apesar de não haver registo fidedigno de uma qualquer aparição de Jesus.

Talvez por isso se tenha tornado mais cauteloso e tenha evitado produzir declarações definitivas, mesmo quando estava em causa a potencial candidatura à Presidência da República – confirmada em 2015 (as eleições ocorreram em janeiro do ano seguinte). Se na política, tal como no futebol, “o que hoje é verdade amanhã pode ser mentira” – António Pimenta Machado, ex-presidente do Vitória de Guimarães, dixit –, o Chefe de Estado não tem querido comprometer-se no que toca à recandidatura, mas só mesmo os mais céticos ou distraídos suporão que o anúncio não acontecerá.

Tendo completado os 71 anos a 12 de dezembro, o Chefe de Estado tem dado vários sinais de que quer continuar em funções e entra em 2020 com o calendário bem definido: o tabu será desfeito no outono, à semelhança do timing que adotou na primeira vez (confirmou que entrava na corrida três meses antes do sufrágio). Seja como for, não tem sido fácil manter o segredo mais mal guardado da política nacional. As dúvidas e hesitações – se é que as há – têm sido desfiadas com engenho.

Vejamos: em várias ocasiões, ao longo da carreira política, Marcelo defendeu que o ideal seria que a Constituição previsse “um só mandato presidencial mais longo”, embora nunca o tenha feito em alusão ao seu caso em concreto e ao cenário de “imitar” os inquilinos do Palácio de Belém (António Ramalho Eanes, Mário Soares, Jorge Sampaio e Aníbal Cavaco Silva) no pós-Revolução de Abril, que o ocuparam, sem exceção, durante uma década.

“Algum dia, um Presidente eleito dará o exemplo de fazer os seus cinco anos sem qualquer reeleição e, por isso, não se autocondicionando por causa dela”, observou, num discurso na Voz do Operário, em Lisboa, ainda na condição de candidato.

Ao completar dois anos de mandato, a 9 de março de 2018, o antigo comentador televisivo prometeu não “utilizar o cargo de Presidente para fazer uma candidatura escondida”, afastando igualmente “despedidas grandiosas”, caso decidisse não continuar. Dois meses volvidos, numa entrevista à Rádio Renascença e ao Público, divulgada a 8 de maio, adicionou uma variável à equação: garantiu que uma nova tragédia como os incêndios florestais de 2017, nos quais 116 pessoas perderam a vida, seria um acontecimento “impeditivo de uma recandidatura”.

Já a 26 de janeiro do ano passado, no Panamá, assumiu que a realização da Jornada Mundial de Juventude de 2022 em Portugal, com a presença do Papa confirmada, seria um tónico – confessou ter “uma grande vontade” de o fazer – para mais cinco anos como primeira figura do Estado. De novo em solo lusitano, adicionou as edições seguintes da Web Summit e a presidência portuguesa da União Europeia (no primeiro semestre de 2021) à lista de estímulos para se recandidatar, mas introduziu o fator saúde na ponderação

De facto, depois de revelar ao País que tinha um pequeno problema cardíaco – numa entrevista intimista no programa Alta Definição, da SIC –, foi submetido a um cateterismo e, à saída do Hospital de Santa Cruz, em Oeiras, considerou que a melhoria do seu estado clínico constituía “um fator positivo” na reflexão. Já antes, em dezembro de 2018, Marcelo fora forçado a cancelar vários compromissos e a aliviar a sempre preenchida agenda por força de uma operação de urgência a uma hérnia umbilical.

Se o PS o apoiar ou, no mínimo, não patrocinar uma candidatura alternativa, Marcelo tem via aberta para um resultado histórico. A fasquia está nos 70,35% dos votos

Além disso, o Presidente não esconde que se considera o fiel da balança da democracia nacional – ele que já disse situar-se ideologicamente “na esquerda da direita”. Não foi inocente quando, na ressaca de umas europeias em que PSD e CDS, somados, não foram além dos 28,13% dos votos, alertou para o “equilíbrio de forças” entre os dois blocos que se formaram no Parlamento. E o diagnóstico de crise à direita foi recebido com desagrado por Rui Rio e Assunção Cristas.

Ora, num quadro em que o PS não dispõe de maioria absoluta na Assembleia da República, tendo recusado assinar um acordo com o BE que lhe garantisse estabilidade, o Presidente está ciente dos riscos da atomização do hemiciclo, onde têm lugar, pela primeira vez, dez forças políticas. E até já preveniu que este ano “serão votados dois dos quatro orçamentos da legislatura”. O subtexto é claro: quer responsabilidade dos líderes partidários, em nome da estabilidade política, económica e social do País.

Mais: o Chefe de Estado sabe que em 2020, ao abrigo da Constituição, terá os seus poderes diminuídos. Perante uma eventual crise, não terá a “bomba atómica” à mão na maior parte do ano. Só poderá dissolver a Assembleia da República entre o início de abril e o de setembro, ou seja, no intervalo entre os seis meses decorridos desde as legislativas e até entrar no último semestre do mandato presidencial.

“Eu Show Marcelo”

Em quase quatro anos de mandato, marcados por uma inaudita omnipresença mediática, Marcelo fez dos afetos (mais ou menos espontâneos) a sua lei na relação com os portugueses. Apostou no contacto direto com as populações, quis estar próximo dos mais carenciados, apareceu em bairros problemáticos, encheu carrinhos de compras em campanhas solidárias. Através de um estilo que Nuno Morais Sarmento, vice-presidente do PSD, batizou como “popularista”, o Presidente procurou transmitir a ideia de que a República não deixa ninguém para trás. Foi essa, em certa medida, a receita para refrear ímpetos populistas que pudessem estar a surgir.

Assim, não espanta que, estudo atrás de estudo, inquérito após inquérito, Marcelo seja o líder político com os índices de popularidade mais elevados. Ainda este mês, numa sondagem realizada pela Aximage para o Jornal Económico, à pergunta acerca do candidato em que votariam nas presidenciais de 2021, os inquiridos responderam de forma inequívoca: o atual Chefe de Estado recolhia 69,6% das preferências. Para que se perceba a superioridade, teria cinco vezes mais votos do que a soma das outras cinco hipóteses apresentadas (Jerónimo de Sousa, Ana Gomes, Francisco Louçã, André Ventura e Pedro Santana Lopes), o que faria desse ato eleitoral pouco mais do que uma formalidade.

O professor ainda tem exames até às eleições

Eutanásia, regionalização (mesmo em versão light), populismos: os desafios do PR

Na apresentação de cumprimentos de boas-festas dos membros do Governo ao Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa afirmou que a professora Maria de Sousa, uma amiga, “costuma dizer que a exigência é uma sentinela que não pode dormir” e que isso se “aplica bem” a 2020. O Chefe de Estado considera que este ano vai ser determinante para o futuro dos portugueses, dado que nele serão aprovados dois Orçamentos do Estado, instrumentos que Marcelo considera fundamentais para a estabilidade política e económica do País. Ainda para mais, a conjuntura internacional ameaça tornar-se mais adversa e, no primeiro semestre de 2021, Portugal assumirá a presidência da União Europeia. Crescimento mais sustentado e duradouro, educação com mais qualidade e combate feroz à pobreza e às desigualdades são uma espécie de troika das prioridades do Presidente, verbalizadas em diversas ocasiões, mas esses desígnios estão longe de ser os únicos exames a que o antigo professor universitário vai estar sujeito. Este ano, último do mandato em Belém, traz temas quentes, que vão pôr à prova a resistência de Marcelo. Desde logo, a legalização da morte medicamente assistida, vulgarmente conhecida como eutanásia, sobre a qual já foram apresentados quatro projetos de lei (do PS, BE, PAN e PEV) e que, face aos novos equilíbrios parlamentares, mais facilmente terá luz verde na Assembleia da República. Marcelo, católico, é contra a ideia, mas terá condições políticas para a vetar? E se, pelo meio, alguém propuser o referendo? Igualmente tensa adivinha-se a discussão sobre a regionalização, ainda que numa versão mais suave – a hipótese hard, que o Governo defendia, já foi empurrada para a próxima legislatura. Este plano B, com a eleição direta dos presidentes das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto e com o reforço das competências das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR), poderá implicar sobreposição de funções e multiplicação de cargos na Administração Pública, algo que o Presidente não achará aconselhável. Pelo caminho, Marcelo tem estado atento ao crescimento dos fenómenos de populismo além-fronteiras e quer minimizar as hipóteses de contágio em Portugal. A título de exemplo, o Presidente tem optado por não hostilizar André Ventura, ao contrário do que têm feito vários responsáveis da esquerda parlamentar e mesmo Eduardo Ferro Rodrigues. A lição está bem estudada: Marcelo não quer que haja qualquer pretexto para vitimizações do líder do Chega.

A sondagem fez ainda com que viessem à tona alguns dados curiosos. Nesta altura, Rebelo de Sousa reúne um apoio mais expressivo entre quem votou no PS nas últimas legislativas do que nos inquiridos que assumiram ter escolhido o PSD (83,9% contra 75,9%, respetivamente), o que pode ser lido como um sintoma de algum incómodo entre o universo “laranja” com o exercício do cargo de Presidente. Os desabafos e as críticas sobre o amparo excessivo ao Governo e à Geringonça acumulam-se e são cada vez mais audíveis.

Ainda que os sociais-democratas decidam se mudam ou não de líder já em janeiro, o caminho para que Rui Rio, Luís Montenegro ou Miguel Pinto Luz recuse apoiar o seu antigo líder é demasiado estreito e politicamente difícil de fundamentar. Quanto aos pretendentes ao lugar de Assunção Cristas, no CDS, nenhum deles se comprometeu com uma eventual bênção à decisão do Presidente, mas as circunstâncias podem vir a ditar um apoio a contragosto, como Pedro Passos Coelho e Paulo Portas fizeram há quatro anos.

Mais à direita, perfila-se já um oponente. André Ventura, o polémico presidente e deputado único do Chega, tem criticado recorrentemente o inquilino de Belém, o qual considera ter responsabilidades na erosão do centro-direita português. Na primeira convenção do partido, aliás, Ventura comprometeu-se a apresentar uma alternativa a Marcelo, para que este não venha a ser reeleito, como escreveu o Sol, com as decisões mais controversas do seu mandato – do assalto a Tancos, e subsequente encobrimento, à não recondução de Joana Marques Vidal no cargo de procuradora-geral da República, passando pela promulgação da lei da igualdade de género ou pela opção de Marcelo de alegadamente “virar as costas” aos polícias, depois do episódio no bairro da Jamaica (Seixal). Já este mês, Ventura enviou um vídeo aos dirigentes e militantes do Chega a confirmar que entrará na disputa.

DR

Ao seu estilo, António Costa também mantém tudo em aberto e não tenciona fazer movimentações arriscadas até as peças estarem todas sobre o tabuleiro. Para o primeiro-ministro e secretário-geral do PS, é um dado adquirido que Marcelo voltará a entrar na disputa. “Eu diria, se me fosse permitido ser por dez segundos analista político, que há 99% de possibilidades de ele se candidatar. Além do mais, seria incompreensível para 80% dos portugueses que o apoiam verem-se frustrados por não o terem”, disse, em julho.

O chefe do executivo excluiu-se de uma aventura presidencial em 2021, ou até noutros anos, mas reservou a posição dos socialistas para uma oportunidade mais próxima do ato eleitoral. No entanto, lá deixou escapar que o partido “sempre teve como tradição apoiar candidatos e não propor candidatos”. Se o PS o apoiar ou se, no mínimo, não patrocinar uma candidatura alternativa, Marcelo tem via aberta para um resultado histórico. Há até quem advogue a tese de que o professor terá em mente superar o score de 1991 de Mário Soares, quando o fundador e líder histórico dos socialistas renovou o mandato em Belém ao obter 70,35% dos votos. Pormenor: nesse sufrágio, Cavaco decidiu apoiá-lo e o grande entendimento ao centro traduziu-se em quase três milhões e meio de votos em Soares. Nas margens, ficaram Basílio Horta (apoiado pelo CDS), com 14,16% das preferências, Carlos Carvalhas (PCP), com 12,92%, e Carlos Marques (UDP), com 2,57%.

Perante tudo isto, os portugueses parecem “condenados” a renovar os votos com Marcelo por um segundo quinquénio. O Presidente bem pode ser um homem de fé, mas, mesmo que Cristo desça à Terra, ninguém o “livra” de mais cinco anos de afetos.

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