A IDEIA LIVRE

26-03-2019
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Mais um Verão e novo assédio de fogos florestais,
depois de um início de época que parecia mais contida do que habitualmente. Mas
Agosto desatou-se em fogo incontrolável em várias partes do território
português, com menos desastres pessoais de outros anos mas com as mesmas
angústias e os prejuízos de sempre. Se a actividade de atear fogos ou de os
apagar contasse para o PIB, ainda haveria quem se alegrasse mas, assim, estamos
todos sempre a ficar um pouco pior que dantes.

Os comentários, propostas e soluções vêm
habitualmente a posteriori e nunca
impedem a catástrofe seguinte, seja a dos incêndios florestais, industriais ou
urbanos, seja a dos tornados, tempestades ou inundações (já para não evocar o
pesadelo dos sismos). De todas estas tragédias que caem como trovões na vida das
pessoas que os sofrem (como, de resto, os acidentes rodoviários), as mais previsíveis
e evitáveis são os incêndios. Para isso existem regras de prudência e segurança
(nas edificações e nos modos de florestação), penalizações criminais para a sua
provocação intencional e dispositivos organizacionais com tradição (caso dos
corpos de bombeiros voluntários) que actualmente dispõem de importantes meios
financiados pelo Estado através da Autoridade Nacional de Protecção Civil,
inserta no Ministério da Administração Interna desde 2006. De certa maneira,
este sistema público é hoje visto como tão ou mais importante do que a defesa
nacional, de cujas instituições copia uma parte das suas práticas e
imaginários: “soldados da paz”; “combate” (aos incêndios); “frentes” (de fogo);
“comando”; “planos de operações”, etc. Fala-se muito da prevenção, por vezes da
reestruturação fundiária (por nós próprios aqui aventada há seis anos atrás),
de meios mais eficientes, de agravamento de penas, etc. Mas nada disto obsta a
reedição destes tristes espectáculos.

É verdade que algumas destas ocorrências têm causas
naturais que não podem ser previstas em antecipação aos factos nem totalmente
evitadas: as alterações climáticas (sejam elas originadas ou não pelos
processos de industrialização, urbanização e motorização da vida moderna) e os abalos
geológicos contam-se entre as mais importantes. Porém, duas questões
fundamentais parecem dever ser afrontadas sem tibieza no caso dos incêndios
florestais:

1ª – O direito de propriedade destes solos deve
ceder a prioridade à segurança contra o fogo, seja em termos do regime de
florestação (espécies arbóreas, extensão, localização, eventual necessidade de deflorestação
de certas áreas, etc.), seja em termos de limpeza e manutenção das parcelas nas
condições mais adequadas para prevenir a irrupção de incêndios e facilitar o
seu combate (corredores de isolamento, postos de vigilância, etc.). Todos os
terrenos abandonados devem reverter sem demora para o património público e aos
proprietários dos não-cuidados (por prazo de cada temporada) deveria ser
automaticamente retirada a sua gestão, nos termos seguintes.

2ª – Se o dispositivo de vigilância e ataque aos
fogos deve indubitavelmente ser nacional (e da responsabilidade governamental,
tal como o cadastro fundiário), já a gestão económica da floresta deveria ser
deixada a empresas privadas de dimensão adequada especializadas nesta
actividade, em regime de concessão que respeitasse o direito dos proprietários
a receber a sua quota-parte do resultado financeiro daquela exploração e as
melhores regras de segurança anti-fogos e de preservação ambiental. A escala e
relevância do problema já não se compadecem com velho direito do camponês de
dispor da sua parcela de terra como bem lhe apetece (ou é capaz). Condicionada
por aquelas regras técnicas, a “empresarialização” será hoje, provavelmente, a
melhor forma de aproveitamento das riquezas da floresta para um país como o
nosso.

Agora, no auge de nova comoção estival, voltou a
falar-se destas questões fundamentais e em envolver mais os municípios na sua
resolução. Certamente que o poder local terá um papel sempre muito importante,
porque é nas suas áreas de jurisdição que ocorre cada um destes sinistros – da
mesma forma sendo de encarar a acção das beneméritas associações locais de
bombeiros voluntários. Mas terão de existir legislação e orientações nacionais
que permitam uma gestão global e integrada das florestas num quadro de
ordenamento racional do território participado por diversos actores e entidades
(interesses económicos, protecção civil, investigação científica, preservação
ambiental, população residente, etc.) mas concretizadas e decididas em última
instância por algum órgão, alguém identificado a que possam ser exigidas
responsabilidades. Os direitos de propriedade individual são actualmente
aceites por todos (mesmo pelas escolas de pensamento socialistas que
inicialmente contra eles se fundaram) mas, assim como no século XIX se lhes
amputou o direito de escravidão e servidão de pessoas, também é hoje imperativo
retirar-lhes o “absolutismo” de que gozam em certos domínios, um dos quais é
este de manter terras abandonadas ou não-ordenadas sem justificação plausível.    

Ao lado destas efervescências episódicas da
actualidade informativa-partidária, a vida económica do país tem vindo a manter
em lume brando as polémicas sobre o (in)sucesso das políticas governativas. O
primeiro-ministro António Costa multiplica-se em declarações óbvias e de circunstância,
sem qualquer profundidade ou relevância, salvo a de manter a base
inter-partidária em que assenta o seu governo e de parecer ir cumprindo os
compromissos a que se obrigou. Quem lhe faz a oposição mais coriácea parecem
ser a instituições europeias, por um lado, e os indicadores económicos que
desmentem as apostas de crescimento em que se baseou o seu programa eleitoral,
por outro.

Mas o problema que, arrastadamente, se mostra mais
preocupante nem é agora o da nossa baixa produtividade, da falta de
investimento ou o agravamento da balança comercial externa, mas sim o sector
bancário que pode romper-se de um momento para o outro. É certo que o mesmo
tipo de receio existe para vários outros países vizinhos bem mais decisivos do
que o nosso e para a Europa no seu conjunto. Pode ser que estejamos numa espécie
de corrida para ver quem foge a rebentar primeiro. Mas aqui a escala impõe-se,
de maneira brutal: a Europa financeira (ou os bancos alemães, ou a própria
finança italiana) não pode rebentar –
pura e simplesmente. Americanos, chineses e outros não o permitiriam, pois
todos veriam a sua sobrevivência posta em causa. Quanto aos portugueses – como
o caso grego bem o demonstrou –, se não cumprem a regras da UE, que se danem! O
país bem-pensante ficou chocado com a justificação do sr. Juncker para a
ultrapassagem do limite do défice gaulês “porque é a França”. Há, de facto, a
indelicadeza da frase. Mas só um “espírito liliputiano” se pode sentir ofendido
com esta realista apreciação: de facto, sem a França não há Europa, sem que tal
seja desprimoroso para alguém, e não evita todas as críticas que aquele país
possa merecer.

É por tudo isto que se torna deprimente assistir à
forma patética como o governo tem lidado com a situação da Caixa Geral de
Depósitos (empréstimos ruinosos, resultados negativos, recapitalização,
designação e remuneração de novos responsáveis), como lidou com o Banco
Internacional do Funchal, e como se arrasta ainda o caso do Novo Banco/GES ou mesmo
o já quase esquecido Banco Português de Negócios – isto, para não referir as
complicadas e suspeitas relações financeiras com instituições angolanas e
brasileiras, os dois “países parceiros” de
choix dos nossos governantes nas últimas décadas (com PS, PSD e CDS bem
juntinhos em tais oportunidades). Perante a gravidade deste quadro, a “novela”
das sanções e dos incumprimentos do défice público são meros peanuts para entreter os nossos
telejornais. Como o são as intervenções “apaziguadoras” e “encorajadoras” do PR
ou as dissonantes tomadas de posição de Cavaco Silva (esse
pequeno-Salazar-das-finanças em versão democrático-populista) no último
Conselho de Estado.

O desemprego estrutural, a emigração, a escassez de
investimento, os desequilíbrios da segurança social e as indeterminações acerca
da ADSE vão permanecendo sem vislumbre de uma credível resolução a prazo. Com a
finança e a economia periclitantes, e uma (já habitual) re-governamentalização
sistemática dos dirigentes da administração pública, a aprovação do orçamento
para 2017 e os indicadores das contas públicas deste ano que se vão conhecendo
a pouco e pouco deverão ditar a continuidade, ou não, desta experiência de
governação-de-esquerda, num macro-contexto que não permite grandes alternativas
mas nem por isso inibe ásperas disputas internas pelo poder de Estado. Por
alguma razão se diz agora, por aqui e por acolá, que a social-democracia terá
esgotado o cumprimento da sua missão histórica.

O tempo de Verão (ou “silly season”) é aproveitado por muito gente da classe média para conversas
desprendidas, para se envolver nalgum romance clássico/contemporâneo ou para
leituras ocasionais, como mais uma vez aconteceu connosco. Instalei-me assim na
leitura de um Hamlet traduzido num
excelente francês clássico e segui cuidadosamente as páginas da delicada e
erudita obra que é Fim de Império, de
António (Bracinha) Vieira, também autor de um inquietante Ensaio sobre o Termo da História. E mais convicto fiquei de que,
quando publicamos sobre qualquer assunto, mais nos revelamos de nós próprios.

O gestor (de quê? de empresas?) Pedro Jordão, que
agora escreve com mais frequência no jornal Público,
revela geralmente o sentido prático e o bom senso de quem está longe da
política e enfrenta directamente problemas de economia e de sociedade a que é
necessário dar resposta, por vezes com urgência. Mas tem o sentido das heranças
históricas de que somos os receptáculos e da globalidade e interdependência do
mundo actual. É com reflexões deste tipo, parece-me, que os governantes, altos
funcionários, actores políticos e outros responsáveis institucionais deviam
confrontar-se e procurar o sentido das acções que desenvolvem no dia-a-dia, e não
nos “sistemas fechados” em que sempre se movem: conselheiros; adversários
partidários; comunicação social; membros de outras elites sociais; e talvez
raramente a voz da sua própria consciência ou de algum amigo lúcido e
desinteressado.   

Entre os raros ensaios de boa qualidade lidos na
imprensa, demos pela crítica de um livro reunindo textos de Almeida Santos, por
Diogo Ramada Curto, intitulado “Testemunhos ou equívocos da memória colonial” (Público, suplemento Ipsilon de
22.Jul.2016), pelo texto de António Valdemar “Os quatro avisos de D. Pedro:
seiscentos anos de actualidade” (Público,
22.Ago.2016) e sobretudo por “Le Corbusier e a direita radical e
revolucionária”, de António Sérgio Rosa de Carvalho (no mesmo jornal, datado de
15.Ago.2016), que terá surpreendido alguns menos informados sobre esta matéria.

Também devemos registar a qualidade informativa do
muito que o Novo Jornal de Angola (semanal,
on line, onde se percebe “a mão” do
jornalista português João Garcia) vem publicando sobre este país, desde
notícias sobre economia, sociedade, política, vida cultural, etc. Na realidade,
esta é hoje uma nação pujante, muito distante do que foi a antiga colónia
portuguesa, com as feridas e os problemas este século, mas garantindo ainda a
sua matriz cultural africana, com os arcaísmos e as belezas inerentes.

E em espaço de entretenimento, assinale-se a série
televisiva francesa Ainsi-soit-ils que
o 2º canal da RTP lançou para o ar aos domingos à noite neste tempo de Verão, tratando
em modo ficcional (e provavelmente algo exagerado) dos meandros, hesitações e
conflitos que assolam actualmente a Igreja Católica. Enquanto na rádio a nossa
Antena 1 continua a proporcionar-nos os excelentes programas de David Ferreira
sobre música, textos e os seus contextos.

Mas a actualidade (que a cadeia televisiva EuroNews destila a cada meia-hora) não pára
de nos interpelar, seja com o revelador “No
Comment” (explicitamente: no
statement, no argument, no judgement), seja com as notícias do mundo
que, muitas vezes, nos deixam perplexos ou angustiados. A guerra na Síria e
norte do Iraque prossegue sem fim à vista, apesar do envolvimento militar
limitado dos Estados Unidos e outros aliados, e sobretudo da Rússia a sustentar
o governo de Assad, com vários contendores em conflitos cruzados uns com os
outros: todos contra o ISIS; sunitas contra xiitas; curdos contra todos (contando
por agora com algum apoio americano); e poucos locais ao lado das forças do
governo de Damasco. Note-se que Israel, a Jordânia e o Egipto têm conseguido
manter-se à margem e parece milagre como a fogueira destruidora ainda não se
ateou no Líbano. Mas a Rússia está ensaiando grandes manobras de aproximação e
influência sobre toda a região do Médio-Oriente, pela diplomacia, as pressões
políticas e pontualmente o uso da força militar. Falta-lhe a presença local dos
partidos-irmãos de outros tempos e receia a contaminação do extremismo islâmico
dentro das suas repúblicas e vizinhos do flanco sul (e decerto não voltará a mandar
soldados para o Afeganistão) mas a política de Putin é a de nada ceder e manter
a “chama russófila” onde tem populações, a ocidente; e de ganhar projecção
extra-fronteiras em todo aquele vasto espaço em convulsão onde se concentram petro-dólares,
reservas energéticas mundiais e povos mobilizáveis para causas anti-ocidentais.
Além do seu porto de mar na Síria, o governo de Moscovo parece apostar em criar
alinhamentos (se não mesmo, alianças) com as três principais potências
regionais – Egipto, Irão e Turquia – limitando pelo mesmo gesto a influência
americana, ou deixando-a restrita ao reino Saudita (até que este caia, sendo talvez
o Iémen o “balão de ensaio” desta estratégia). Mas a Turquia será o objectivo
mais imediato e apetecível, sem grandes cedências suas. Ressentido como está
com a UE e a NATO, com um processo de purga interna só comparável com os tempos
estalinianos, maoistas ou “kampucheanos” (segundo a Amnistia Internacional,
foram soltos 38 mil presos comuns para permitir enjaular os supostos
conspiradores de Julho último), o governo de Ankara joga agora a fundo todas as
cartadas políticas ao seu alcance para consolidar um regime ainda mais forte e
personalizado na figura de Erdogan, uma “democracia islâmica” com ar moderno
que satisfaça as massas e compense a travagem da economia; agora, parece ter-se
decidido a dar prioridade militar ao combate no terreno contra o “Estado Islâmico” vizinho e, simultaneamente,
com o argumento do combate ao terrorismo, tentará esmagar o mais possível as
veleidades independentistas dos curdos, mas arriscando-se cada vez mais a ver
as suas cidades sacudidas por atentados mortíferos, que os do PKK também não
são “crianças de coro”.

Com uma Turquia em turbulência, é toda a insolúvel
(a curto prazo) questão dos refugiados e migrantes que cai de novo sobre os
países da Europa, no não-esperado contexto aberto pelo “Brexit”. É péssimo
sinal que a UE só consiga algum mínimo entendimento em política externa (e
segurança e defesa) funcionando “em directório”. Mas, apesar dos seus tão
criticáveis desempenhos governativos, é preferível que os senhores Hollande e
Renzi se juntem a Merkel para relembrar o projecto europeu (como fizeram
simbolicamente a bordo do Garibaldi
na ilha de Ventotene) do que deixar Berlim isolada a comandar a economia e as
finanças de todo o continente sob os ácidos apupos dos diversos impotentes
esquerdismos, com os nacionalismos extremistas a medrarem e o isolacionismo
americano a aprofundar-se.

Goste-se ou não, é quase certo que Hilary Clinton
seja a próxima presidente dos EUA e que do milionário Trump só restem
recordações de boçalidade, ignorância e estupidez. Mas o próprio facto da sua
candidatura (com os apoios que suscitou) é já sintoma da má evolução da
sociedade norte-americana, como também o são os afloramentos de atitudes
racistas e integristas de largos sectores da sua população. Assim, com toda a
sua experiência das relações internacionais e o legado “pro-social” de Obama nos
problemas domésticos, é provável que a primeira mulher “dona” da Casa Branca
utilize a força da sua superioridade militar e tecnológica para negociar status quo razoáveis com os seus grandes
competidores do futuro (como a China, a Índia, a Indonésia, o Brasil, o Japão
ou a África do Sul) enquanto tentará gerir “com pinças” as ameaças do
terrorismo, do fundamentalismo islâmico e os desafios “a prazo” das alterações
climáticas. Neste quadro, a Europa será apenas um parceiro secundário, bom para
tentar pôr de pé o contestado tratado comercial TTIP (Transatlantic Trade
and Investment Partnership) mas só verdadeiramente aliado se deste lado do
Atlântico as coisas começarem a correr mesmo mal.

Uma palavra ainda sobre a lamentável crise
brasileira (vide as contrastantes análises saídas na mesma edição do jornal Público de 2.Set.2016: “A queda final”,
de Carlos Blanco de Morais, e “Anatomia do golpe” de Joana Mortágua). Triste,
porque a situação económica é má e está de novo a lançar milhões de pessoas
para difíceis situações de sobrevivência (como já acontece na Venezuela). Pode
ser conspiração das forças políticas de direita mas esta esquerda politiqueira
e estatista – militarizada como a de Chávez e Maduro, ou civil e operária como
o PT de Lula e Dilma – tem mostrado no exercício da governação como pode ser
tão vil e corrupta como os seus adversários na luta pelo poder.

JF / 10.Set.2016

Mais um Verão e novo assédio de fogos florestais,
depois de um início de época que parecia mais contida do que habitualmente. Mas
Agosto desatou-se em fogo incontrolável em várias partes do território
português, com menos desastres pessoais de outros anos mas com as mesmas
angústias e os prejuízos de sempre. Se a actividade de atear fogos ou de os
apagar contasse para o PIB, ainda haveria quem se alegrasse mas, assim, estamos
todos sempre a ficar um pouco pior que dantes.

Os comentários, propostas e soluções vêm
habitualmente a posteriori e nunca
impedem a catástrofe seguinte, seja a dos incêndios florestais, industriais ou
urbanos, seja a dos tornados, tempestades ou inundações (já para não evocar o
pesadelo dos sismos). De todas estas tragédias que caem como trovões na vida das
pessoas que os sofrem (como, de resto, os acidentes rodoviários), as mais previsíveis
e evitáveis são os incêndios. Para isso existem regras de prudência e segurança
(nas edificações e nos modos de florestação), penalizações criminais para a sua
provocação intencional e dispositivos organizacionais com tradição (caso dos
corpos de bombeiros voluntários) que actualmente dispõem de importantes meios
financiados pelo Estado através da Autoridade Nacional de Protecção Civil,
inserta no Ministério da Administração Interna desde 2006. De certa maneira,
este sistema público é hoje visto como tão ou mais importante do que a defesa
nacional, de cujas instituições copia uma parte das suas práticas e
imaginários: “soldados da paz”; “combate” (aos incêndios); “frentes” (de fogo);
“comando”; “planos de operações”, etc. Fala-se muito da prevenção, por vezes da
reestruturação fundiária (por nós próprios aqui aventada há seis anos atrás),
de meios mais eficientes, de agravamento de penas, etc. Mas nada disto obsta a
reedição destes tristes espectáculos.

É verdade que algumas destas ocorrências têm causas
naturais que não podem ser previstas em antecipação aos factos nem totalmente
evitadas: as alterações climáticas (sejam elas originadas ou não pelos
processos de industrialização, urbanização e motorização da vida moderna) e os abalos
geológicos contam-se entre as mais importantes. Porém, duas questões
fundamentais parecem dever ser afrontadas sem tibieza no caso dos incêndios
florestais:

1ª – O direito de propriedade destes solos deve
ceder a prioridade à segurança contra o fogo, seja em termos do regime de
florestação (espécies arbóreas, extensão, localização, eventual necessidade de deflorestação
de certas áreas, etc.), seja em termos de limpeza e manutenção das parcelas nas
condições mais adequadas para prevenir a irrupção de incêndios e facilitar o
seu combate (corredores de isolamento, postos de vigilância, etc.). Todos os
terrenos abandonados devem reverter sem demora para o património público e aos
proprietários dos não-cuidados (por prazo de cada temporada) deveria ser
automaticamente retirada a sua gestão, nos termos seguintes.

2ª – Se o dispositivo de vigilância e ataque aos
fogos deve indubitavelmente ser nacional (e da responsabilidade governamental,
tal como o cadastro fundiário), já a gestão económica da floresta deveria ser
deixada a empresas privadas de dimensão adequada especializadas nesta
actividade, em regime de concessão que respeitasse o direito dos proprietários
a receber a sua quota-parte do resultado financeiro daquela exploração e as
melhores regras de segurança anti-fogos e de preservação ambiental. A escala e
relevância do problema já não se compadecem com velho direito do camponês de
dispor da sua parcela de terra como bem lhe apetece (ou é capaz). Condicionada
por aquelas regras técnicas, a “empresarialização” será hoje, provavelmente, a
melhor forma de aproveitamento das riquezas da floresta para um país como o
nosso.

Agora, no auge de nova comoção estival, voltou a
falar-se destas questões fundamentais e em envolver mais os municípios na sua
resolução. Certamente que o poder local terá um papel sempre muito importante,
porque é nas suas áreas de jurisdição que ocorre cada um destes sinistros – da
mesma forma sendo de encarar a acção das beneméritas associações locais de
bombeiros voluntários. Mas terão de existir legislação e orientações nacionais
que permitam uma gestão global e integrada das florestas num quadro de
ordenamento racional do território participado por diversos actores e entidades
(interesses económicos, protecção civil, investigação científica, preservação
ambiental, população residente, etc.) mas concretizadas e decididas em última
instância por algum órgão, alguém identificado a que possam ser exigidas
responsabilidades. Os direitos de propriedade individual são actualmente
aceites por todos (mesmo pelas escolas de pensamento socialistas que
inicialmente contra eles se fundaram) mas, assim como no século XIX se lhes
amputou o direito de escravidão e servidão de pessoas, também é hoje imperativo
retirar-lhes o “absolutismo” de que gozam em certos domínios, um dos quais é
este de manter terras abandonadas ou não-ordenadas sem justificação plausível.    

Ao lado destas efervescências episódicas da
actualidade informativa-partidária, a vida económica do país tem vindo a manter
em lume brando as polémicas sobre o (in)sucesso das políticas governativas. O
primeiro-ministro António Costa multiplica-se em declarações óbvias e de circunstância,
sem qualquer profundidade ou relevância, salvo a de manter a base
inter-partidária em que assenta o seu governo e de parecer ir cumprindo os
compromissos a que se obrigou. Quem lhe faz a oposição mais coriácea parecem
ser a instituições europeias, por um lado, e os indicadores económicos que
desmentem as apostas de crescimento em que se baseou o seu programa eleitoral,
por outro.

Mas o problema que, arrastadamente, se mostra mais
preocupante nem é agora o da nossa baixa produtividade, da falta de
investimento ou o agravamento da balança comercial externa, mas sim o sector
bancário que pode romper-se de um momento para o outro. É certo que o mesmo
tipo de receio existe para vários outros países vizinhos bem mais decisivos do
que o nosso e para a Europa no seu conjunto. Pode ser que estejamos numa espécie
de corrida para ver quem foge a rebentar primeiro. Mas aqui a escala impõe-se,
de maneira brutal: a Europa financeira (ou os bancos alemães, ou a própria
finança italiana) não pode rebentar –
pura e simplesmente. Americanos, chineses e outros não o permitiriam, pois
todos veriam a sua sobrevivência posta em causa. Quanto aos portugueses – como
o caso grego bem o demonstrou –, se não cumprem a regras da UE, que se danem! O
país bem-pensante ficou chocado com a justificação do sr. Juncker para a
ultrapassagem do limite do défice gaulês “porque é a França”. Há, de facto, a
indelicadeza da frase. Mas só um “espírito liliputiano” se pode sentir ofendido
com esta realista apreciação: de facto, sem a França não há Europa, sem que tal
seja desprimoroso para alguém, e não evita todas as críticas que aquele país
possa merecer.

É por tudo isto que se torna deprimente assistir à
forma patética como o governo tem lidado com a situação da Caixa Geral de
Depósitos (empréstimos ruinosos, resultados negativos, recapitalização,
designação e remuneração de novos responsáveis), como lidou com o Banco
Internacional do Funchal, e como se arrasta ainda o caso do Novo Banco/GES ou mesmo
o já quase esquecido Banco Português de Negócios – isto, para não referir as
complicadas e suspeitas relações financeiras com instituições angolanas e
brasileiras, os dois “países parceiros” de
choix dos nossos governantes nas últimas décadas (com PS, PSD e CDS bem
juntinhos em tais oportunidades). Perante a gravidade deste quadro, a “novela”
das sanções e dos incumprimentos do défice público são meros peanuts para entreter os nossos
telejornais. Como o são as intervenções “apaziguadoras” e “encorajadoras” do PR
ou as dissonantes tomadas de posição de Cavaco Silva (esse
pequeno-Salazar-das-finanças em versão democrático-populista) no último
Conselho de Estado.

O desemprego estrutural, a emigração, a escassez de
investimento, os desequilíbrios da segurança social e as indeterminações acerca
da ADSE vão permanecendo sem vislumbre de uma credível resolução a prazo. Com a
finança e a economia periclitantes, e uma (já habitual) re-governamentalização
sistemática dos dirigentes da administração pública, a aprovação do orçamento
para 2017 e os indicadores das contas públicas deste ano que se vão conhecendo
a pouco e pouco deverão ditar a continuidade, ou não, desta experiência de
governação-de-esquerda, num macro-contexto que não permite grandes alternativas
mas nem por isso inibe ásperas disputas internas pelo poder de Estado. Por
alguma razão se diz agora, por aqui e por acolá, que a social-democracia terá
esgotado o cumprimento da sua missão histórica.

O tempo de Verão (ou “silly season”) é aproveitado por muito gente da classe média para conversas
desprendidas, para se envolver nalgum romance clássico/contemporâneo ou para
leituras ocasionais, como mais uma vez aconteceu connosco. Instalei-me assim na
leitura de um Hamlet traduzido num
excelente francês clássico e segui cuidadosamente as páginas da delicada e
erudita obra que é Fim de Império, de
António (Bracinha) Vieira, também autor de um inquietante Ensaio sobre o Termo da História. E mais convicto fiquei de que,
quando publicamos sobre qualquer assunto, mais nos revelamos de nós próprios.

O gestor (de quê? de empresas?) Pedro Jordão, que
agora escreve com mais frequência no jornal Público,
revela geralmente o sentido prático e o bom senso de quem está longe da
política e enfrenta directamente problemas de economia e de sociedade a que é
necessário dar resposta, por vezes com urgência. Mas tem o sentido das heranças
históricas de que somos os receptáculos e da globalidade e interdependência do
mundo actual. É com reflexões deste tipo, parece-me, que os governantes, altos
funcionários, actores políticos e outros responsáveis institucionais deviam
confrontar-se e procurar o sentido das acções que desenvolvem no dia-a-dia, e não
nos “sistemas fechados” em que sempre se movem: conselheiros; adversários
partidários; comunicação social; membros de outras elites sociais; e talvez
raramente a voz da sua própria consciência ou de algum amigo lúcido e
desinteressado.   

Entre os raros ensaios de boa qualidade lidos na
imprensa, demos pela crítica de um livro reunindo textos de Almeida Santos, por
Diogo Ramada Curto, intitulado “Testemunhos ou equívocos da memória colonial” (Público, suplemento Ipsilon de
22.Jul.2016), pelo texto de António Valdemar “Os quatro avisos de D. Pedro:
seiscentos anos de actualidade” (Público,
22.Ago.2016) e sobretudo por “Le Corbusier e a direita radical e
revolucionária”, de António Sérgio Rosa de Carvalho (no mesmo jornal, datado de
15.Ago.2016), que terá surpreendido alguns menos informados sobre esta matéria.

Também devemos registar a qualidade informativa do
muito que o Novo Jornal de Angola (semanal,
on line, onde se percebe “a mão” do
jornalista português João Garcia) vem publicando sobre este país, desde
notícias sobre economia, sociedade, política, vida cultural, etc. Na realidade,
esta é hoje uma nação pujante, muito distante do que foi a antiga colónia
portuguesa, com as feridas e os problemas este século, mas garantindo ainda a
sua matriz cultural africana, com os arcaísmos e as belezas inerentes.

E em espaço de entretenimento, assinale-se a série
televisiva francesa Ainsi-soit-ils que
o 2º canal da RTP lançou para o ar aos domingos à noite neste tempo de Verão, tratando
em modo ficcional (e provavelmente algo exagerado) dos meandros, hesitações e
conflitos que assolam actualmente a Igreja Católica. Enquanto na rádio a nossa
Antena 1 continua a proporcionar-nos os excelentes programas de David Ferreira
sobre música, textos e os seus contextos.

Mas a actualidade (que a cadeia televisiva EuroNews destila a cada meia-hora) não pára
de nos interpelar, seja com o revelador “No
Comment” (explicitamente: no
statement, no argument, no judgement), seja com as notícias do mundo
que, muitas vezes, nos deixam perplexos ou angustiados. A guerra na Síria e
norte do Iraque prossegue sem fim à vista, apesar do envolvimento militar
limitado dos Estados Unidos e outros aliados, e sobretudo da Rússia a sustentar
o governo de Assad, com vários contendores em conflitos cruzados uns com os
outros: todos contra o ISIS; sunitas contra xiitas; curdos contra todos (contando
por agora com algum apoio americano); e poucos locais ao lado das forças do
governo de Damasco. Note-se que Israel, a Jordânia e o Egipto têm conseguido
manter-se à margem e parece milagre como a fogueira destruidora ainda não se
ateou no Líbano. Mas a Rússia está ensaiando grandes manobras de aproximação e
influência sobre toda a região do Médio-Oriente, pela diplomacia, as pressões
políticas e pontualmente o uso da força militar. Falta-lhe a presença local dos
partidos-irmãos de outros tempos e receia a contaminação do extremismo islâmico
dentro das suas repúblicas e vizinhos do flanco sul (e decerto não voltará a mandar
soldados para o Afeganistão) mas a política de Putin é a de nada ceder e manter
a “chama russófila” onde tem populações, a ocidente; e de ganhar projecção
extra-fronteiras em todo aquele vasto espaço em convulsão onde se concentram petro-dólares,
reservas energéticas mundiais e povos mobilizáveis para causas anti-ocidentais.
Além do seu porto de mar na Síria, o governo de Moscovo parece apostar em criar
alinhamentos (se não mesmo, alianças) com as três principais potências
regionais – Egipto, Irão e Turquia – limitando pelo mesmo gesto a influência
americana, ou deixando-a restrita ao reino Saudita (até que este caia, sendo talvez
o Iémen o “balão de ensaio” desta estratégia). Mas a Turquia será o objectivo
mais imediato e apetecível, sem grandes cedências suas. Ressentido como está
com a UE e a NATO, com um processo de purga interna só comparável com os tempos
estalinianos, maoistas ou “kampucheanos” (segundo a Amnistia Internacional,
foram soltos 38 mil presos comuns para permitir enjaular os supostos
conspiradores de Julho último), o governo de Ankara joga agora a fundo todas as
cartadas políticas ao seu alcance para consolidar um regime ainda mais forte e
personalizado na figura de Erdogan, uma “democracia islâmica” com ar moderno
que satisfaça as massas e compense a travagem da economia; agora, parece ter-se
decidido a dar prioridade militar ao combate no terreno contra o “Estado Islâmico” vizinho e, simultaneamente,
com o argumento do combate ao terrorismo, tentará esmagar o mais possível as
veleidades independentistas dos curdos, mas arriscando-se cada vez mais a ver
as suas cidades sacudidas por atentados mortíferos, que os do PKK também não
são “crianças de coro”.

Com uma Turquia em turbulência, é toda a insolúvel
(a curto prazo) questão dos refugiados e migrantes que cai de novo sobre os
países da Europa, no não-esperado contexto aberto pelo “Brexit”. É péssimo
sinal que a UE só consiga algum mínimo entendimento em política externa (e
segurança e defesa) funcionando “em directório”. Mas, apesar dos seus tão
criticáveis desempenhos governativos, é preferível que os senhores Hollande e
Renzi se juntem a Merkel para relembrar o projecto europeu (como fizeram
simbolicamente a bordo do Garibaldi
na ilha de Ventotene) do que deixar Berlim isolada a comandar a economia e as
finanças de todo o continente sob os ácidos apupos dos diversos impotentes
esquerdismos, com os nacionalismos extremistas a medrarem e o isolacionismo
americano a aprofundar-se.

Goste-se ou não, é quase certo que Hilary Clinton
seja a próxima presidente dos EUA e que do milionário Trump só restem
recordações de boçalidade, ignorância e estupidez. Mas o próprio facto da sua
candidatura (com os apoios que suscitou) é já sintoma da má evolução da
sociedade norte-americana, como também o são os afloramentos de atitudes
racistas e integristas de largos sectores da sua população. Assim, com toda a
sua experiência das relações internacionais e o legado “pro-social” de Obama nos
problemas domésticos, é provável que a primeira mulher “dona” da Casa Branca
utilize a força da sua superioridade militar e tecnológica para negociar status quo razoáveis com os seus grandes
competidores do futuro (como a China, a Índia, a Indonésia, o Brasil, o Japão
ou a África do Sul) enquanto tentará gerir “com pinças” as ameaças do
terrorismo, do fundamentalismo islâmico e os desafios “a prazo” das alterações
climáticas. Neste quadro, a Europa será apenas um parceiro secundário, bom para
tentar pôr de pé o contestado tratado comercial TTIP (Transatlantic Trade
and Investment Partnership) mas só verdadeiramente aliado se deste lado do
Atlântico as coisas começarem a correr mesmo mal.

Uma palavra ainda sobre a lamentável crise
brasileira (vide as contrastantes análises saídas na mesma edição do jornal Público de 2.Set.2016: “A queda final”,
de Carlos Blanco de Morais, e “Anatomia do golpe” de Joana Mortágua). Triste,
porque a situação económica é má e está de novo a lançar milhões de pessoas
para difíceis situações de sobrevivência (como já acontece na Venezuela). Pode
ser conspiração das forças políticas de direita mas esta esquerda politiqueira
e estatista – militarizada como a de Chávez e Maduro, ou civil e operária como
o PT de Lula e Dilma – tem mostrado no exercício da governação como pode ser
tão vil e corrupta como os seus adversários na luta pelo poder.

JF / 10.Set.2016

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