O multiplicador de tachos

10-08-2019
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A política portuguesa é cenário frequente de nepotismos, favorecimentos pessoais, ligações familiares e acesso privilegiado a negócios com o Estado. Numa palavra: Portugal tem um problema endémico de corrupção, que abrange todos os partidos mas que tem o seu zénite no PS, onde familiares, amigos e medíocres acedem a carreiras estrondosas e recompensas elevadas pela fidelidade partidária. Se Portugal fosse um país normal, nenhum outro assunto se sobreporia a este no debate político, os partidos apresentariam estudadas propostas para civilizar o sistema político e a sociedade civil seria implacável com casos de ilegalidades ou falta de ética por parte dos seus representantes – punindo os governos ou os partidos que os protagonizassem. Mas como Portugal não é um país normal, não só nada disso acontece como o que se observa é precisamente o inverso: o debate que PSD e PS patrocinam é o da regionalização que, traduzido para politiquês, não é mais do que um multiplicador de cargos políticos, gabinetes, nomeações e despesa pública – de tachos ou jobs for the boys, portanto. Não, obrigado.

Na semana passada, o grupo de trabalho “independente” e de “sábios” formado para analisar o dossier da regionalização, e financiado pela Assembleia da República (meio milhão de euros, por decisão de PS e PSD), apresentou um relatório que não somente defende a regionalização como fixa uma espécie de manual de procedimentos para lá se chegar. “Independente” merece aspas porque quem presidiu o grupo de trabalho foi João Cravinho, assumido regionalista, e figuras como Alberto João Jardim (também regionalista) tiveram um papel de destaque. Ou seja, a conclusão estava definida à partida, pelo que se pagou apenas pela indicação dos passos a seguir. Que passos são esses? Aqui vão alguns: uma alteração constitucional, um novo referendo, uma espécie de assembleia das regiões com 300 “deputados regionais” (aparentemente sem salários mas com senhas de presença) e governos para as regiões administrativas. Soa a uma despesa exorbitante com novas estruturas políticas? Obviamente que sim. Mas repare-se no milagre: de acordo com os autores do relatório, nada disto implicaria aumento de impostos, sendo pago (por exemplo) por via de fundos europeus. Parece anedota.

Não é só por isto. A regionalização em Portugal é mesmo uma má ideia. Das piores, mesmo. Primeiro, insiste numa separação artificial: no nosso país, não há contexto histórico que o justifique, ao contrário de Espanha onde, por exemplo, o território esteve organizado por reinos. Segundo, o resultado seria inevitavelmente desastroso. A administração pública portuguesa já tem fama de ser pesada, ineficiente, está sempre em vias de ser alvo de “reformas de Estado” e serve de palco de colocação de efectivos partidários, que colonizam o Estado à discrição. Ora, se já é assim, imagine-se o que seria caso essa administração se reproduzisse por regiões. Aliás, não é sequer necessário imaginar, basta olhar para os exemplos existentes. Na Madeira, Alberto João Jardim fez da ilha o seu reino, controlou tudo e todos (incluindo jornais) e cavou uma dívida pública abissal. Nos Açores, o PS de Carlos César semeia nomeações para os seus e os tentáculos da sua influência não conhecem limites. Um pingo de realismo é suficiente para recear a regionalização do Portugal continental.

De resto, não nos faltam desafios reais para enfrentar. A corrupção, como acima se referiu, em relação à qual a Justiça tem sido incapaz de agir com força proporcional e em tempo útil – veja-se como nos EUA ou até em Espanha houve banqueiros e políticos acusados, julgados e condenados, enquanto em Portugal continuamos todos à espera. A economia, que cresce abaixo da velocidade dos nossos concorrentes europeus e cuja evolução nos está a afundar nas comparações europeias. A carga fiscal, que é exorbitante e que continua a aumentar. O envelhecimento da população, com o respectivo impacto na qualidade dos serviços públicos e na sustentabilidade da segurança social – em 2040, as contribuições serão insuficientes para pagar as despesas com as pensões. No ordenamento do território, tendo actualmente o nosso país mais área ardida do que a soma de Espanha e França, muito mais vastos e que ainda recentemente foram alvo de anormais vagas de calor. No meio de tudo isto, haver quem considere a regionalização uma prioridade nacional soa inacreditável.

Acredite-se, contudo, porque o tema está aí à espreita. O facto de PS e PSD terem acordado, juntos, pagar um relatório que defendesse a regionalização (por imposição expressa das direcções dos partidos, como são prova as declarações de voto dos deputados) é sinal suficiente de uma ambição que importa apontar e rejeitar: o aprofundamento irreversível da colonização partidária do Estado e um controlo hegemónico sobre a sociedade portuguesa. Esse passo tem de ser travado. E esse poderá ser mesmo um dos principais combates cívicos da próxima legislatura.

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A política portuguesa é cenário frequente de nepotismos, favorecimentos pessoais, ligações familiares e acesso privilegiado a negócios com o Estado. Numa palavra: Portugal tem um problema endémico de corrupção, que abrange todos os partidos mas que tem o seu zénite no PS, onde familiares, amigos e medíocres acedem a carreiras estrondosas e recompensas elevadas pela fidelidade partidária. Se Portugal fosse um país normal, nenhum outro assunto se sobreporia a este no debate político, os partidos apresentariam estudadas propostas para civilizar o sistema político e a sociedade civil seria implacável com casos de ilegalidades ou falta de ética por parte dos seus representantes – punindo os governos ou os partidos que os protagonizassem. Mas como Portugal não é um país normal, não só nada disso acontece como o que se observa é precisamente o inverso: o debate que PSD e PS patrocinam é o da regionalização que, traduzido para politiquês, não é mais do que um multiplicador de cargos políticos, gabinetes, nomeações e despesa pública – de tachos ou jobs for the boys, portanto. Não, obrigado.

Na semana passada, o grupo de trabalho “independente” e de “sábios” formado para analisar o dossier da regionalização, e financiado pela Assembleia da República (meio milhão de euros, por decisão de PS e PSD), apresentou um relatório que não somente defende a regionalização como fixa uma espécie de manual de procedimentos para lá se chegar. “Independente” merece aspas porque quem presidiu o grupo de trabalho foi João Cravinho, assumido regionalista, e figuras como Alberto João Jardim (também regionalista) tiveram um papel de destaque. Ou seja, a conclusão estava definida à partida, pelo que se pagou apenas pela indicação dos passos a seguir. Que passos são esses? Aqui vão alguns: uma alteração constitucional, um novo referendo, uma espécie de assembleia das regiões com 300 “deputados regionais” (aparentemente sem salários mas com senhas de presença) e governos para as regiões administrativas. Soa a uma despesa exorbitante com novas estruturas políticas? Obviamente que sim. Mas repare-se no milagre: de acordo com os autores do relatório, nada disto implicaria aumento de impostos, sendo pago (por exemplo) por via de fundos europeus. Parece anedota.

Não é só por isto. A regionalização em Portugal é mesmo uma má ideia. Das piores, mesmo. Primeiro, insiste numa separação artificial: no nosso país, não há contexto histórico que o justifique, ao contrário de Espanha onde, por exemplo, o território esteve organizado por reinos. Segundo, o resultado seria inevitavelmente desastroso. A administração pública portuguesa já tem fama de ser pesada, ineficiente, está sempre em vias de ser alvo de “reformas de Estado” e serve de palco de colocação de efectivos partidários, que colonizam o Estado à discrição. Ora, se já é assim, imagine-se o que seria caso essa administração se reproduzisse por regiões. Aliás, não é sequer necessário imaginar, basta olhar para os exemplos existentes. Na Madeira, Alberto João Jardim fez da ilha o seu reino, controlou tudo e todos (incluindo jornais) e cavou uma dívida pública abissal. Nos Açores, o PS de Carlos César semeia nomeações para os seus e os tentáculos da sua influência não conhecem limites. Um pingo de realismo é suficiente para recear a regionalização do Portugal continental.

De resto, não nos faltam desafios reais para enfrentar. A corrupção, como acima se referiu, em relação à qual a Justiça tem sido incapaz de agir com força proporcional e em tempo útil – veja-se como nos EUA ou até em Espanha houve banqueiros e políticos acusados, julgados e condenados, enquanto em Portugal continuamos todos à espera. A economia, que cresce abaixo da velocidade dos nossos concorrentes europeus e cuja evolução nos está a afundar nas comparações europeias. A carga fiscal, que é exorbitante e que continua a aumentar. O envelhecimento da população, com o respectivo impacto na qualidade dos serviços públicos e na sustentabilidade da segurança social – em 2040, as contribuições serão insuficientes para pagar as despesas com as pensões. No ordenamento do território, tendo actualmente o nosso país mais área ardida do que a soma de Espanha e França, muito mais vastos e que ainda recentemente foram alvo de anormais vagas de calor. No meio de tudo isto, haver quem considere a regionalização uma prioridade nacional soa inacreditável.

Acredite-se, contudo, porque o tema está aí à espreita. O facto de PS e PSD terem acordado, juntos, pagar um relatório que defendesse a regionalização (por imposição expressa das direcções dos partidos, como são prova as declarações de voto dos deputados) é sinal suficiente de uma ambição que importa apontar e rejeitar: o aprofundamento irreversível da colonização partidária do Estado e um controlo hegemónico sobre a sociedade portuguesa. Esse passo tem de ser travado. E esse poderá ser mesmo um dos principais combates cívicos da próxima legislatura.

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