Joacine Moreira não é caso único. Em Portugal há 100 mil gagos, mas o tema ainda é tabu

16-10-2019
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Quando, em agosto, Joacine Katar Moreira deu uma entrevista à Rádio Observador, ainda a campanha oficial não tinha começado, era difícil perceber de que forma a gaguez severa da agora deputada iria marcar a sua eleição. A conversa nas Manhãs 360º tornou-se rapidamente viral e mereceu centenas comentários, entre a crítica e a solidariedade. Com ela, a candidata do Livre, que nasceu na Guiné-Bissau e chegou a Portugal aos oito anos, saía do anonimato.

De lá para cá, a sua gaguez tornou-se tema constante. Ao DN, por exemplo, contou o episódio em que decidiu assumir a gaguez, depois de quase ter mudado um pedido num café por ter dificuldade em fazê-lo: “As pessoas na fila atrás de mim estavam à espera, a empregada do café começou a perder a paciência e eu acabei por pedir uma água. Mas, depois, pensei melhor: eu não quero uma água, quero uma Coca-Cola e é isso que vou pedir, não me interessa o que os outros pensam”. Depois admitiu ao Expresso que foi adiando a chegada ao espaço público por gaguejar. “Evitei durante muito tempo a televisão. Achava que as pessoas iam prestar mais atenção à forma como eu falava do que àquilo que eu dizia.” E não se enganou.

Depois do debate dos pequenos partidos, na RTP, a questão tornou-se polémica, com alguns a duvidarem da veracidade do problema, por causa da forma severa como Joacine Katar Moreira gaguejava. Houve quem afirmasse nas redes sociais que se tratava de um “exagero” e uma “fraude”, numa “tentativa de manipular os portugueses”, levando a candidata a defender-se no Twitter.

Nunca na minha vida pensei que viveria para provar que a minha gaguez, que já me fez passar por tanto, é uma realidade; que a minha cor de pele não me beneficia; que ser mulher não me trouxe segurança; que não ser rica não me ajudou; que estudar não me enriqueceu. — Joacine Katar-Moreira (@KatarMoreira) October 2, 2019

Nesse mesmo debate, Carlos Guimarães Pinto, líder da Iniciativa Liberal, também falou sobre o facto de ser gago. E logo ao seu lado estava sentado Fernando Loureiro, candidato do Partido Unido dos Reformados e Pensionistas, que também se juntou: “Já somos três aqui”. Na verdade, estima-se que sejam 100 mil em todo o país e há até uma associação que promove encontros, atividades e colóquios, nacionais e internacionais.

A gaguez é um problema maioritariamente masculino e continua a ser tabu — mesmo dentro de algumas famílias. Pode ter múltiplas origens — nomeadamente a hereditariedade — e melhorar ao longo do tempo, mas há ainda muitos estereótipos e mitos à sua volta. Os gagos falam em limitações sociais e profissionais — e nem todos concordam que a visibilidade do caso de Joacine Katar Moreira e a leveza com que a deputada fala do assunto possam ajudar.

Da queda no mar ao susto com um cão

Áurea Mendonça tem 55 anos e começa por dizer, em entrevista ao Observador, que não é “gaga a tempo inteiro”. Isto porque a sua gaguez apenas se manifesta quando está mais nervosa, algo que, garante, já aprendeu a controlar. Ao contrário da maioria dos gagos, Áurea não nasceu assim. Aos cinco anos, estava a aprender a nadar e foi na praia da Barreirinha, no Funchal, de onde é natural, que fez a primeira tentativa de mergulho. Sozinha, sem braçadeiras, colocou-se num pontão e foi empurrada por um grupo de jovens. Caiu à água e acabou por desmaiar. Foi imediatamente socorrida pela mãe e por outras pessoas que estavam no local, demorou a assimilar o que lhe tinha acontecido e, com o susto, tornou-se gaga. “Nunca mais falei como antes”, conta.

Inicialmente tinha reações musculares que acompanhavam a sua dificuldade em comunicar, como fechar os olhos ou abrir muito as mãos e a boca, tiques ultrapassados com ajuda médica. “Nunca fiz terapia da fala, naquela altura era uma prática pouco comum e numa ilha ainda menos”, recorda. No colégio de freiras que frequentou, na Madeira, era caso único de gaguez e, por isso, era “vista como uma menina diferente”.

Aos seis anos, mudou-se para o continente, mas as suas palavras “continuavam a enrolar-se”. Na nova escola, “sofria horrores” quando os professores a chamavam para ir ao quadro ou lhe pediam para ler algo em voz alta. “Era difícil ter amigos, só nas aulas de ginástica é que sentia que éramos todos iguais.” Nas brincadeiras físicas, como saltar à corda ou ao elástico, podiam contar com ela, mas para dizer piadas ou contar anedotas já não. Ao longo da adolescência, protegeu-se, “não falando muito”, mas, “como corava facilmente”, denunciava rapidamente o desconforto.

A madeirense, já quase sem pronúncia, é agora secretária administrativa e lida com a sua gaguez “de forma mais leve” e sem complexos. “Por vezes, sorrio e digo mesmo que preciso de meter a primeira. Em reuniões acontece muito.” Quando sabe que tem de falar em público, treina o discurso em voz alta, trabalha o raciocínio e aprende a relaxar para conseguir falar pausadamente. “Nas palavras grandes é onde sinto mais dificuldade.”

Áurea enche-se de orgulho quando ouve um político ou um locutor de rádio a gaguejar, sente-se de alguma forma representada, como é o caso da recente eleita Joacine Katar Moreira. “Ela tem uma coragem enorme. A gaguez não é uma doença, é apenas um desafio diário”, afirma, dando o exemplo dos canhotos. Espera que, no Parlamento, Joacine “ganhe o respeito de todos, tenha mais tempo para falar do que os restantes e não seja olhada com pena”. “Tivemos uma secretária de Estado cega, a Ana Sofia Antunes, e não foi por isso que deixou de cumprir as suas funções, pois não?”

Leonel Mendes também não nasceu gago. Este mecânico de 48 anos, da Figueira da Foz, conta ao Observador que foi graças a um susto com um cão solto na rua que regressou a casa a gaguejar pela primeira vez. Tinha quatro anos. “Como era muito falador, os meus pais achavam que aquilo passava naturalmente.” A gaguez continuou, mas nunca teve terapia nem vergonha da forma como se exprimia.

Quando, em agosto, Joacine Katar Moreira deu uma entrevista à Rádio Observador, ainda a campanha oficial não tinha começado, era difícil perceber de que forma a gaguez severa da agora deputada iria marcar a sua eleição. A conversa nas Manhãs 360º tornou-se rapidamente viral e mereceu centenas comentários, entre a crítica e a solidariedade. Com ela, a candidata do Livre, que nasceu na Guiné-Bissau e chegou a Portugal aos oito anos, saía do anonimato.

De lá para cá, a sua gaguez tornou-se tema constante. Ao DN, por exemplo, contou o episódio em que decidiu assumir a gaguez, depois de quase ter mudado um pedido num café por ter dificuldade em fazê-lo: “As pessoas na fila atrás de mim estavam à espera, a empregada do café começou a perder a paciência e eu acabei por pedir uma água. Mas, depois, pensei melhor: eu não quero uma água, quero uma Coca-Cola e é isso que vou pedir, não me interessa o que os outros pensam”. Depois admitiu ao Expresso que foi adiando a chegada ao espaço público por gaguejar. “Evitei durante muito tempo a televisão. Achava que as pessoas iam prestar mais atenção à forma como eu falava do que àquilo que eu dizia.” E não se enganou.

Depois do debate dos pequenos partidos, na RTP, a questão tornou-se polémica, com alguns a duvidarem da veracidade do problema, por causa da forma severa como Joacine Katar Moreira gaguejava. Houve quem afirmasse nas redes sociais que se tratava de um “exagero” e uma “fraude”, numa “tentativa de manipular os portugueses”, levando a candidata a defender-se no Twitter.

Nunca na minha vida pensei que viveria para provar que a minha gaguez, que já me fez passar por tanto, é uma realidade; que a minha cor de pele não me beneficia; que ser mulher não me trouxe segurança; que não ser rica não me ajudou; que estudar não me enriqueceu. — Joacine Katar-Moreira (@KatarMoreira) October 2, 2019

Nesse mesmo debate, Carlos Guimarães Pinto, líder da Iniciativa Liberal, também falou sobre o facto de ser gago. E logo ao seu lado estava sentado Fernando Loureiro, candidato do Partido Unido dos Reformados e Pensionistas, que também se juntou: “Já somos três aqui”. Na verdade, estima-se que sejam 100 mil em todo o país e há até uma associação que promove encontros, atividades e colóquios, nacionais e internacionais.

A gaguez é um problema maioritariamente masculino e continua a ser tabu — mesmo dentro de algumas famílias. Pode ter múltiplas origens — nomeadamente a hereditariedade — e melhorar ao longo do tempo, mas há ainda muitos estereótipos e mitos à sua volta. Os gagos falam em limitações sociais e profissionais — e nem todos concordam que a visibilidade do caso de Joacine Katar Moreira e a leveza com que a deputada fala do assunto possam ajudar.

Da queda no mar ao susto com um cão

Áurea Mendonça tem 55 anos e começa por dizer, em entrevista ao Observador, que não é “gaga a tempo inteiro”. Isto porque a sua gaguez apenas se manifesta quando está mais nervosa, algo que, garante, já aprendeu a controlar. Ao contrário da maioria dos gagos, Áurea não nasceu assim. Aos cinco anos, estava a aprender a nadar e foi na praia da Barreirinha, no Funchal, de onde é natural, que fez a primeira tentativa de mergulho. Sozinha, sem braçadeiras, colocou-se num pontão e foi empurrada por um grupo de jovens. Caiu à água e acabou por desmaiar. Foi imediatamente socorrida pela mãe e por outras pessoas que estavam no local, demorou a assimilar o que lhe tinha acontecido e, com o susto, tornou-se gaga. “Nunca mais falei como antes”, conta.

Inicialmente tinha reações musculares que acompanhavam a sua dificuldade em comunicar, como fechar os olhos ou abrir muito as mãos e a boca, tiques ultrapassados com ajuda médica. “Nunca fiz terapia da fala, naquela altura era uma prática pouco comum e numa ilha ainda menos”, recorda. No colégio de freiras que frequentou, na Madeira, era caso único de gaguez e, por isso, era “vista como uma menina diferente”.

Aos seis anos, mudou-se para o continente, mas as suas palavras “continuavam a enrolar-se”. Na nova escola, “sofria horrores” quando os professores a chamavam para ir ao quadro ou lhe pediam para ler algo em voz alta. “Era difícil ter amigos, só nas aulas de ginástica é que sentia que éramos todos iguais.” Nas brincadeiras físicas, como saltar à corda ou ao elástico, podiam contar com ela, mas para dizer piadas ou contar anedotas já não. Ao longo da adolescência, protegeu-se, “não falando muito”, mas, “como corava facilmente”, denunciava rapidamente o desconforto.

A madeirense, já quase sem pronúncia, é agora secretária administrativa e lida com a sua gaguez “de forma mais leve” e sem complexos. “Por vezes, sorrio e digo mesmo que preciso de meter a primeira. Em reuniões acontece muito.” Quando sabe que tem de falar em público, treina o discurso em voz alta, trabalha o raciocínio e aprende a relaxar para conseguir falar pausadamente. “Nas palavras grandes é onde sinto mais dificuldade.”

Áurea enche-se de orgulho quando ouve um político ou um locutor de rádio a gaguejar, sente-se de alguma forma representada, como é o caso da recente eleita Joacine Katar Moreira. “Ela tem uma coragem enorme. A gaguez não é uma doença, é apenas um desafio diário”, afirma, dando o exemplo dos canhotos. Espera que, no Parlamento, Joacine “ganhe o respeito de todos, tenha mais tempo para falar do que os restantes e não seja olhada com pena”. “Tivemos uma secretária de Estado cega, a Ana Sofia Antunes, e não foi por isso que deixou de cumprir as suas funções, pois não?”

Leonel Mendes também não nasceu gago. Este mecânico de 48 anos, da Figueira da Foz, conta ao Observador que foi graças a um susto com um cão solto na rua que regressou a casa a gaguejar pela primeira vez. Tinha quatro anos. “Como era muito falador, os meus pais achavam que aquilo passava naturalmente.” A gaguez continuou, mas nunca teve terapia nem vergonha da forma como se exprimia.

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