Governo namora a esquerda para afinar Lei de Bases da Saúde

29-01-2019
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Críticas do Governo e do PS à direita - e promessas de abertura à esquerda - deixaram claro o caminho que o Executivo pretende seguir. Desafio será encontrar entendimentos com a BE e PCP em dossiês difíceis, como a extinção, ou não, das parcerias público-privadas e das taxas moderadoras

Texto Mariana Lima Cunha

Se dúvidas houvesse sobre o caminho que o Governo pretendia seguir relativamente à lei de bases da Saúde, o namoro que fez à esquerda durante cerca de uma hora de debate no Parlamento dissipou-as. Como o Expresso noticiou, as propostas de Governo, BE e PCP deverão baixar à especialidade para serem afinadas - e, tanto do Executivo como dos partidos de esquerda, o que se ouviu esta quarta-feira foram juras de consenso e de abertura, fechando a porta a acordos com a direita nesta matéria.

A intervenção inicial da ministra da Saúde, Marta Temido, foi esclarecedora. Se já se sabia que Temido terá uma posição mais parecida com a dos partidos de esquerda, até porque António Costa obrigou a ministra suavizar a sua primeira proposta de lei, que fazia uma avaliação dura do papel dos privados. A ministra aproveitou para frisar que, em 1990, PSD e CDS foram os responsáveis pela aprovação da atual Lei de Bases, que “descaracterizou” o papel do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Sublinhou que, na atual proposta do Governo, os setores privado e social se articulam com o Estado “no princípio da coordenação”, mas há uma “preferência” pela gestão pública no SNS - por oposição às propostas da direita, que apoiam “o desenvolvimento do setor privado em concorrência com o setor público”. E rematou: “Não esperem que alinhemos na falácia de que o mercado da Saúde é como qualquer outro”.

A definição dos papéis que os setores público, privado e social devem desempenhar na Saúde foi, como seria de esperar, o foco principal de toda a discussão - e a linha que separou esquerda e direita, deixando o PS num meio-termo que, como classificou a deputada Jamila Madeira, é o “caminho virtuoso para o equilíbrio”, mas que deverá ser trabalhado com a esquerda a partir de agora. No PCP, a deputada Paula Santos criticou a “ideologia do negócio” que associou a PSD e CDS, defendendo que não se aprofunde “o favorecimento dos grandes grupos privados”. No BE, Moisés Ferreira pediu “clareza” na separação entre público e privados e disse preocupar-se com as “frinchas” abertas por este Governo para a gestão de serviços por parcerias público-privadas (PPP), argumentando que o papel dos privados deve ser “meramente complementar” em relação ao setor público.

Apesar das divergências - e não são poucas, uma vez que a esquerda quer, entre outras coisas, o fim das PPP ou a extinção das taxas moderadoras como financiadoras do SNS - os sinais de entendimento seriam dados: o Bloco prometeu “não faltar à chamada” e ajudar a garantir “um futuro longo e muito melhor” para o SNS, o PCP garantiu que há aspetos coincidentes entre o seu projeto e a proposta do Governo embora seja preciso “melhorar” para encontrar uma maioria que aprove a lei. E a ministra pareceu descansar os dois parceiros: o que se vê na proposta do Governo, garantiu, é precisamente “a complementaridade” entre o público e os privados. Quanto a estes últimos: “Não os hostilizamos, reconhecemos que estão lá, aceitamo-los (...), mas com total transparência”.

Governo entre Deus e o diabo

Um discurso muito diferente do que foi feito à direita, a quem a descrição das relações entre público e privado soou a uma proposta “estatizante” baseada na “obsessão ideológica” da esquerda em manter os privados de fora. “Parece nem ter força para ser levada a votação”, ironizou Ana Rita Bessa, do CDS, que na sua proposta prevê a concorrência entre público e privados, sem preferências. O PSD, que além da concorrência prevê incentivos à criação de unidades privadas, carregou nas críticas: a proposta do Governo “assenta no equívoco” de “tentar agradar à extrema-esquerda mas reconhecer a importância da cooperação” entre público e privados. Resumido num soundbite do deputado Ricardo Batista Leite, “o Governo tentou agradar a deus e ao diabo e foi assim que cometeu o pecado original”, ou seja, “encostar-se à extrema esquerda” em vez de “escolher a via do consenso, ao centro”. E voltou a desafiar o Governo, como faz no seu projeto de lei, quase palavra por palavra: “É possível congregar todos os partidos pluralistas” para alcançar o “máximo denominador comum”.

No PS, no entanto, a tendência foi sempre lançar críticas à direita e disponibilizar-se para consensos com a esquerda. António Sales resumiu assim as diferenças que separam socialistas de PSD e CDS: “[Os partidos da direita] equiparam o SNS ao setor privado e social. Advogam concorrência. Preveem incentivos à criação das unidades privadas. Esse caminho não serve a orientação constitucional. É despropositado insistir na mercantilização do sistema de saúde”. Quanto às diferenças com a esquerda… parece haver espaço para que sejam afinadas na especialidade, “com os reais defensores do SNS”, como declarou a deputada socialista Jamila Madeira. Para isso, a votação da lei, marcada para sexta-feira, terá de ser adiada.

Críticas do Governo e do PS à direita - e promessas de abertura à esquerda - deixaram claro o caminho que o Executivo pretende seguir. Desafio será encontrar entendimentos com a BE e PCP em dossiês difíceis, como a extinção, ou não, das parcerias público-privadas e das taxas moderadoras

Texto Mariana Lima Cunha

Se dúvidas houvesse sobre o caminho que o Governo pretendia seguir relativamente à lei de bases da Saúde, o namoro que fez à esquerda durante cerca de uma hora de debate no Parlamento dissipou-as. Como o Expresso noticiou, as propostas de Governo, BE e PCP deverão baixar à especialidade para serem afinadas - e, tanto do Executivo como dos partidos de esquerda, o que se ouviu esta quarta-feira foram juras de consenso e de abertura, fechando a porta a acordos com a direita nesta matéria.

A intervenção inicial da ministra da Saúde, Marta Temido, foi esclarecedora. Se já se sabia que Temido terá uma posição mais parecida com a dos partidos de esquerda, até porque António Costa obrigou a ministra suavizar a sua primeira proposta de lei, que fazia uma avaliação dura do papel dos privados. A ministra aproveitou para frisar que, em 1990, PSD e CDS foram os responsáveis pela aprovação da atual Lei de Bases, que “descaracterizou” o papel do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Sublinhou que, na atual proposta do Governo, os setores privado e social se articulam com o Estado “no princípio da coordenação”, mas há uma “preferência” pela gestão pública no SNS - por oposição às propostas da direita, que apoiam “o desenvolvimento do setor privado em concorrência com o setor público”. E rematou: “Não esperem que alinhemos na falácia de que o mercado da Saúde é como qualquer outro”.

A definição dos papéis que os setores público, privado e social devem desempenhar na Saúde foi, como seria de esperar, o foco principal de toda a discussão - e a linha que separou esquerda e direita, deixando o PS num meio-termo que, como classificou a deputada Jamila Madeira, é o “caminho virtuoso para o equilíbrio”, mas que deverá ser trabalhado com a esquerda a partir de agora. No PCP, a deputada Paula Santos criticou a “ideologia do negócio” que associou a PSD e CDS, defendendo que não se aprofunde “o favorecimento dos grandes grupos privados”. No BE, Moisés Ferreira pediu “clareza” na separação entre público e privados e disse preocupar-se com as “frinchas” abertas por este Governo para a gestão de serviços por parcerias público-privadas (PPP), argumentando que o papel dos privados deve ser “meramente complementar” em relação ao setor público.

Apesar das divergências - e não são poucas, uma vez que a esquerda quer, entre outras coisas, o fim das PPP ou a extinção das taxas moderadoras como financiadoras do SNS - os sinais de entendimento seriam dados: o Bloco prometeu “não faltar à chamada” e ajudar a garantir “um futuro longo e muito melhor” para o SNS, o PCP garantiu que há aspetos coincidentes entre o seu projeto e a proposta do Governo embora seja preciso “melhorar” para encontrar uma maioria que aprove a lei. E a ministra pareceu descansar os dois parceiros: o que se vê na proposta do Governo, garantiu, é precisamente “a complementaridade” entre o público e os privados. Quanto a estes últimos: “Não os hostilizamos, reconhecemos que estão lá, aceitamo-los (...), mas com total transparência”.

Governo entre Deus e o diabo

Um discurso muito diferente do que foi feito à direita, a quem a descrição das relações entre público e privado soou a uma proposta “estatizante” baseada na “obsessão ideológica” da esquerda em manter os privados de fora. “Parece nem ter força para ser levada a votação”, ironizou Ana Rita Bessa, do CDS, que na sua proposta prevê a concorrência entre público e privados, sem preferências. O PSD, que além da concorrência prevê incentivos à criação de unidades privadas, carregou nas críticas: a proposta do Governo “assenta no equívoco” de “tentar agradar à extrema-esquerda mas reconhecer a importância da cooperação” entre público e privados. Resumido num soundbite do deputado Ricardo Batista Leite, “o Governo tentou agradar a deus e ao diabo e foi assim que cometeu o pecado original”, ou seja, “encostar-se à extrema esquerda” em vez de “escolher a via do consenso, ao centro”. E voltou a desafiar o Governo, como faz no seu projeto de lei, quase palavra por palavra: “É possível congregar todos os partidos pluralistas” para alcançar o “máximo denominador comum”.

No PS, no entanto, a tendência foi sempre lançar críticas à direita e disponibilizar-se para consensos com a esquerda. António Sales resumiu assim as diferenças que separam socialistas de PSD e CDS: “[Os partidos da direita] equiparam o SNS ao setor privado e social. Advogam concorrência. Preveem incentivos à criação das unidades privadas. Esse caminho não serve a orientação constitucional. É despropositado insistir na mercantilização do sistema de saúde”. Quanto às diferenças com a esquerda… parece haver espaço para que sejam afinadas na especialidade, “com os reais defensores do SNS”, como declarou a deputada socialista Jamila Madeira. Para isso, a votação da lei, marcada para sexta-feira, terá de ser adiada.

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