O melhor é não adoecer (sobretudo esta semana)

10-07-2019
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Bom dia.

Começou à meia-noite a greve dos médicos, que se prolonga até as 00h00 de quinta-feira; arrancou às oito da manhã a greve dos enfermeiros, que só termina ao final do dia de sexta-feira. O DN dá conta de que por cada dia de greve ficam em causa cerca de 1500 cirurgias. Se precisar de recorrer ao Serviço Nacional de Saúde, já sabe que terá uma semana ainda mais difícil do que é normal, apesar dos serviços mínimos. Parafraseando a ideia de uma certa secretária de Estado, o melhor mesmo é não adoecer, para não pressionar serviços públicos que já estão a rebentar pelas costuras(*).

Pode ficar a conhecer aqui as reivindicações de médicos e enfermeiros e um retrato do Estado da arte no SNS. Ou rever o "fact checking" de ontem do Polígrafo, da SIC, sobre as garantias do Governo de que há cada vez mais dinheiro para a saúde, nunca houve tantos médicos no SNS e não há cativações no setor - formalmente é assim, mas a realidade é um bocadinho mais complexa do que os discursos de Mário Centeno.

O Público comparou as greves no setor da Saúde no tempo de Passos e atualmente, para concluir que o Governo de António Costa está a ser mais castigado em ano de eleições do que o anterior Executivo. Até maio, as ausências por greve equivaleram a 72 mil dias de trabalho perdidos; no mesmo período de 2015 a contabilidade ficava pelos 38 mil dias.

Outra conta também apresentada pelo Público: as quatro maternidades de Lisboa que estão em risco (e que terão de fechar rotativamente durante o verão, por falta de médicos) fazem um quinto das urgências do país e representam 13% dos partos realizados em Portugal.

Continua, entretanto, o folhetim da Lei de Bases da Saúde, ainda sem maioria que garanta a sua aprovação. Ontem, na TVI, Catarina Martins reiterou que só não haverá nova lei de bases “se o PS não quiser”, e garantiu que as objecções do BE não decorrem de “uma questão de dogma ideológico, [mas de] uma questão de proteção do direito à saúde.

Questionada sobre uma reedição da geringonça para a próxima legislatura, assegurou que “não há renovação do que já foi feito”, mas deixou tudo em aberto - “O que acontecer no futuro vai depender da relação de forças” que sair das legislativas.

(*) Lembra-se da secretária de Estado da Justiça que, entre as razões para o caos nas lojas do cidadão - e sobretudo na emissão dos cartões do cidadão - apontava o dedo aos utentes que decidem ir para a porta dos serviços quando estes ainda estão fechados? Pois, parece que esse é um comportamento ditado não apenas pelo desespero de quem precisa de algo tão básico como um cartão de identificação como cidadão da República, mas também estimulado por funcionários públicos. Uma cidadã de Oeiras entrevistada pela SIC conta que na conservatória local a mandaram ir para a fila às 4h da manhã para conseguir uma senha para os serviços...

OUTRAS NOTÍCIAS

Hoje há novo round em Bruxelas para a escolha dos “top jobs” na estrutura europeia. É a guerra dos tronos a que temos direito. A maratona de domingo e segunda-feira culminou sem acordo e com António Costa a declarar que “tudo correu mal”. Algo vai mesmo muito errado quando até o otimista irritante considera este processo “muito frustrante”. A Susana Frexes, correspondente do Expresso, explica aqui o que está em causa e qual o ponto de partida para as reuniões desta terça-feira. Perante a impotência de Merkel e um Conselho bloqueado, o El País escreve sobre “O fim de uma era em Bruxelas”. e Teresa de Sousa pergunta se “a Europa ainda existe”.

Joe Berardo, o homem que se riu (literalmente) na cara dos deputados, considera que está a ser injustiçado. Depois do desempenho que todo o país pôde ver na comissão parlamentar de inquérito (CPI) sobre a Caixa Geral de Depósitos, Berardo escreveu a Ferro Rodrigues queixando-se de que está a ser vítima de um “julgamento popular”. É ler para crer.

Esta relação curta, mas intensa, de Joe Berardo com a CPI da Caixa não vai ficar por aqui. De acordo com a TSF, os deputados vão apresentar uma queixa por desobediência contra a Associação Coleção Berardo. A Associação recusa-se a enviar documentação pedida pelos deputados sobre a blindagem das obras de arte, que as colocou a salvo de execuções bancárias, num "processo tudo menos transparente", nas palavras do presidente da CPI.

Há sete arguidos no caso da avioneta que aterrou de emergência numa praia da Costa de Caparica, matando duas pessoas. Foi ontem conhecida a acusação do Ministério Público, contra o piloto instrutor, três responsáveis da escola de aviação e três dirigentes da Autoridade Nacional de Aviação Civil.

Hugo Carvalho, até agora presidente do Conselho Nacional de Juventude, e trunfo-surpresa de Rui Rio para as legislativas de outubro, fez as primeiras declarações na qualidade de cabeça-de-lista do PSD pelo círculo do Porto. E prometeu o que prometem todos os que se estreiam na vida política: “fazer diferente”. Nisto, não fez diferença.

Filipa Roseta, a outra grande surpresa de Rio para as eleições de outubro (vai liderar a lista de Lisboa) também se estreou a falar nessa qualidade. Ao i, a vereadora de Cascais, que é filha de Pedro Roseta e Helena Roseta, contraria a ideia de que tenha chegado onde chegou na política por ser “filha de” (surpreendente seria se admitisse tal). Criticou o nepotismo “escandaloso” no Governo e deixou uma garantia: “Eu nunca me sentaria no Conselho de Ministros ao lado do meu pai. Como a minha mãe nunca se sentaria no Conselho de Ministros ao lado do meu pai.” (Não se imagina em que circunstância tal poderia vir a acontecer… mas fica feita a jura.)

O Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga aceitou uma providência cautelar apresentada pelos últimos moradores do Prédio Coutinho, em Viana do Castelo, suspendendo os despejos e a demolição. Pela primeira vez numa semana, os moradores puderam sair das suas casas, depois de dias de “sequestro” e isolamento, sem água nem luz. "Isto não se aceita num estado de direito. Não somos ladrões. Até os presos têm direito a água e alimentos. Foi uma barbárie aos direitos humanos e constitucionais. Para mim, foi um sequestro na minha própria casa, uma coisa incompreensível", disse uma moradora. A Viana Polis vai recorrer da decisão.

Se já perdeu o fio à meada deste imbróglio, que vem dos tempos do Programa Polis de José Sócrates, o Observador faz aqui um bom resumo da matéria (exclusivo para assinantes).

Por muito que algumas coisas mudem (e têm mudado), o mundo continua a ser um lugar perigoso, em particular para as mulheres. Como escreve o Luís M. Faria, “não é só em Espanha ou em Portugal que surge um certo tipo de sentença judicial que a muita gente parece vinda de outro tempo”. No Canadá, um juiz absolveu um homem acusado de violação considerando que uma das alegadas vítimas se mostrou bastante combativa no tribunal - portanto, também o teria sido se estivesse a ser sexualmente atacada… Logo… não houve violação.

No Alabama, uma mulher grávida foi acusada do homicídio do seu filho… por ter levado um tiro no estômago que resultou na morte do feto. A notícia já tem uns dias, mas é tão absurda que o New York Times foi tentar perceber o que pensam os locais sobre este caso. E percebeu: as boas gentes do Alabama - que lutam mais pelo direito à posse de armas do que pelos direitos das mulheres - acham bem que uma mulher grávida que leva um tiro, daí resultando a morte do feto, seja acusada de homicídio. “Muitas conversas focam-se na questão de quão severa deve ser a pena, não na culpabilidade" de Marshae Jones, a mulher em causa, que foi baleada depois de ter iniciado uma discussão (ah!, pormenor importante: o homem que a baleou foi libertado, pois atuou em legítima defesa durante a discussão).

Em Hong Kong aconteceu o impensável: a tomada do Conselho Legislativo pela multidão em fúria, no 22º aniversário da passagem de soberania do território para a China. “Partiram-se vidros, pintaram-se as paredes. Mas o alvo final, a coroa do dia, seria entrar na sala do hemiciclo. É conseguido. Os manifestantes sentam-se nas cadeiras dos deputados. O assento do presidente do LegCo é vandalizado. Durante quase três horas, os manifestantes percorrem todos os recantos do edifício e fazem o que querem, sem que nenhuma oposição se lhes depare. Era já quase meia-noite, quando centenas de polícias se deslocaram de novo para o local dos incidentes, e depois de várias rondas de lançamentos de gás lacrimogéneo, conseguiram ‘limpar’ o local.” Cito as palavras de João Carlos Malta, na reportagem do jornal macaense Ponto Final, com excelentes fotografias de Eduardo Martins. Não deixe de ler.

É oficial: o Irão ultrapassou os limites de urânio que pode armazenar, imposto pelo acordo nuclear - o acordo que Donald Trump rasgou e, por isso, Teerão entende que já não tem de respeitar. A informação foi confirmada pela Agência Internacional de Energia Atómica. Trump reagiu, comentando que o Irão está a “brincar com o fogo”; Teerão diz que só voltará a negociar quando Washington regressar ao acordo nuclear de 2015.

Tem 15 anos, chama-se Coco Gauff e chorou após a vitória que a revelou ao mundo. E que vitória: em Wimbledom, perante Venus Williams, uma das suas heroínas. Gauff já tinha sido notícia como a mais jovem tenista a ultrapassar o qualifying do torneio inglês de Wimbledon; desde ontem, é uma estrela.

Morreu o historiador António Hespanha. “Historiador, jurista, teórico e investigador, cidadão empenhado, cumpridor de importantes funções públicas sempre que o país precisou dele, para logo voltar ao que adorava fazer: estudar, ensinar e escrever história. Também o mestre e orientador de tantas e tantos historiadoras e historiadores, incluindo eu”, escreve Rui Tavares num obituário, que é uma homenagem e que é um conjunto de memórias pessoais sobre alguém que lhe mudou a vida. E que vale a pena ler.

O QUE ANDO A LER

“Num campo de detenção familiar no Novo México, conheci uma criança de quatro anos, com impulsos suicidas, cujo rosto estava coberto de arranhões sangrentos, auto-infligidos. Sempre que ela e a mãe passavam pelo canal de drenagem - que corria ao longo da cerca de arame farpado que as cercava -, a menina implorava à mãe que entrasse na água. Ela não queria nadar. Ela queria que os "crocodillos" as comessem, para poderem ir para o céu e escapar daquele lugar. Outra criança pequena teve que ser agarrada pela mãe, porque insistia em correr a alta velocidade contra armários de metal. O menino estava coberto de hematomas.”

A tradução é minha, o texto é de Taylor Levi, uma advogada de imigração que trabalha vai para uma década com refugiados em El Paso, Novo México, e relatou no Washington Post aquilo que tem testemunhado.

Sim, eu podia ter avisado que ia citar um parágrafo com factos chocantes (a mim, chocaram-me), mas aposto que se quisesse mesmo viver num mundo almofadado e cor de rosa provavelmente não estaria a ler isto, não é?

Como li há dias num texto da Ana França, a propósito da foto que correu mundo de pai e filha de um ano afogados no Rio Grande, “quando a realidade é chocante, dificilmente a fotografia não será”. O mesmo se aplica às palavras que descrevem essa realidade.

Cheguei ao relato de Taylor Levi através deste texto da New York Review of Books. É uma espécie de história da infâmia - neste caso, a história dos campos de concentração, como aqueles onde as autoridades norte-americanas têm detido números cada vez maiores de migrantes que tentam entrar ilegalmente no país.

Uso as palavras “campo de concentração” com o mesmo rigor que a congressista democrata Alexandria Ocasio-Cortez usou há duas semanas para descrever esta realidade, levantando uma enorme polémica, em boa medida desinformada, alimentada por gente que conscientemente confunde os conceitos de “campo de concentração”, “campos de extermínio” e “Holocausto”. Não, não são sinónimos, e cada conceito descreve realidades diferentes, embora as suas histórias se cruzem.

Como bem explica a autora, a história dos campos de concentração tem mais de um século (começa com os espanhóis, em Cuba), ou seja, precede o Holocausto e os campos de morte do século XX, embora a forma como o mundo olha para as vítimas deste período tenha mudado a forma como hoje encara a detenção em massa de civis e responde a uma pergunta: como deve um país lidar com pessoas desesperadas que não são seus cidadãos? Antes do Holocausto, a resposta era o silêncio e o dito “respeito pela soberania nacional”. “After the harrowing toll of the Holocaust with the murder of millions, the world revisited its answer, deciding that perhaps something was owed to those in mortal danger”, escreve Andrea Pitzer, jornalista que editou em 2017 o livro “One Long Night: A Global History of Concentration Camps”. Dessa resposta resultam a Convenção de Genebra e a Convenção dos Direitos da Criança.

Porém, como a história não acaba, o capítulo que está a ser escrito no século XXI é sobre retrocesso. “Os países estão a rejeitar as obrigações existentes e a receber quem procura asilo com muros e vedações”. E com prisões onde migrantes e refugiados são detidos sem acusação formal, sem julgamento, sem prazos, sem possibilidade de defesa, e sem condições mínimas de humanismo, de segurança e salubridade (como se confirma neste depoimento de uma representante do Departamento de Justiça, tentando justificar o injustificável). Essas prisões têm um nome: campos de concentração, como confirmam os especialistas consultados pela Newsweek.

Se se interessar pela história dos campos de concentração, pode ver este vídeo de uma palestra de Andrea Pitzer.

Fico por aqui.

Não se esqueça que hoje é dia de Comissão Política, o podcast semanal de política do Expresso.

Tenha uma boa terça-feira.

Bom dia.

Começou à meia-noite a greve dos médicos, que se prolonga até as 00h00 de quinta-feira; arrancou às oito da manhã a greve dos enfermeiros, que só termina ao final do dia de sexta-feira. O DN dá conta de que por cada dia de greve ficam em causa cerca de 1500 cirurgias. Se precisar de recorrer ao Serviço Nacional de Saúde, já sabe que terá uma semana ainda mais difícil do que é normal, apesar dos serviços mínimos. Parafraseando a ideia de uma certa secretária de Estado, o melhor mesmo é não adoecer, para não pressionar serviços públicos que já estão a rebentar pelas costuras(*).

Pode ficar a conhecer aqui as reivindicações de médicos e enfermeiros e um retrato do Estado da arte no SNS. Ou rever o "fact checking" de ontem do Polígrafo, da SIC, sobre as garantias do Governo de que há cada vez mais dinheiro para a saúde, nunca houve tantos médicos no SNS e não há cativações no setor - formalmente é assim, mas a realidade é um bocadinho mais complexa do que os discursos de Mário Centeno.

O Público comparou as greves no setor da Saúde no tempo de Passos e atualmente, para concluir que o Governo de António Costa está a ser mais castigado em ano de eleições do que o anterior Executivo. Até maio, as ausências por greve equivaleram a 72 mil dias de trabalho perdidos; no mesmo período de 2015 a contabilidade ficava pelos 38 mil dias.

Outra conta também apresentada pelo Público: as quatro maternidades de Lisboa que estão em risco (e que terão de fechar rotativamente durante o verão, por falta de médicos) fazem um quinto das urgências do país e representam 13% dos partos realizados em Portugal.

Continua, entretanto, o folhetim da Lei de Bases da Saúde, ainda sem maioria que garanta a sua aprovação. Ontem, na TVI, Catarina Martins reiterou que só não haverá nova lei de bases “se o PS não quiser”, e garantiu que as objecções do BE não decorrem de “uma questão de dogma ideológico, [mas de] uma questão de proteção do direito à saúde.

Questionada sobre uma reedição da geringonça para a próxima legislatura, assegurou que “não há renovação do que já foi feito”, mas deixou tudo em aberto - “O que acontecer no futuro vai depender da relação de forças” que sair das legislativas.

(*) Lembra-se da secretária de Estado da Justiça que, entre as razões para o caos nas lojas do cidadão - e sobretudo na emissão dos cartões do cidadão - apontava o dedo aos utentes que decidem ir para a porta dos serviços quando estes ainda estão fechados? Pois, parece que esse é um comportamento ditado não apenas pelo desespero de quem precisa de algo tão básico como um cartão de identificação como cidadão da República, mas também estimulado por funcionários públicos. Uma cidadã de Oeiras entrevistada pela SIC conta que na conservatória local a mandaram ir para a fila às 4h da manhã para conseguir uma senha para os serviços...

OUTRAS NOTÍCIAS

Hoje há novo round em Bruxelas para a escolha dos “top jobs” na estrutura europeia. É a guerra dos tronos a que temos direito. A maratona de domingo e segunda-feira culminou sem acordo e com António Costa a declarar que “tudo correu mal”. Algo vai mesmo muito errado quando até o otimista irritante considera este processo “muito frustrante”. A Susana Frexes, correspondente do Expresso, explica aqui o que está em causa e qual o ponto de partida para as reuniões desta terça-feira. Perante a impotência de Merkel e um Conselho bloqueado, o El País escreve sobre “O fim de uma era em Bruxelas”. e Teresa de Sousa pergunta se “a Europa ainda existe”.

Joe Berardo, o homem que se riu (literalmente) na cara dos deputados, considera que está a ser injustiçado. Depois do desempenho que todo o país pôde ver na comissão parlamentar de inquérito (CPI) sobre a Caixa Geral de Depósitos, Berardo escreveu a Ferro Rodrigues queixando-se de que está a ser vítima de um “julgamento popular”. É ler para crer.

Esta relação curta, mas intensa, de Joe Berardo com a CPI da Caixa não vai ficar por aqui. De acordo com a TSF, os deputados vão apresentar uma queixa por desobediência contra a Associação Coleção Berardo. A Associação recusa-se a enviar documentação pedida pelos deputados sobre a blindagem das obras de arte, que as colocou a salvo de execuções bancárias, num "processo tudo menos transparente", nas palavras do presidente da CPI.

Há sete arguidos no caso da avioneta que aterrou de emergência numa praia da Costa de Caparica, matando duas pessoas. Foi ontem conhecida a acusação do Ministério Público, contra o piloto instrutor, três responsáveis da escola de aviação e três dirigentes da Autoridade Nacional de Aviação Civil.

Hugo Carvalho, até agora presidente do Conselho Nacional de Juventude, e trunfo-surpresa de Rui Rio para as legislativas de outubro, fez as primeiras declarações na qualidade de cabeça-de-lista do PSD pelo círculo do Porto. E prometeu o que prometem todos os que se estreiam na vida política: “fazer diferente”. Nisto, não fez diferença.

Filipa Roseta, a outra grande surpresa de Rio para as eleições de outubro (vai liderar a lista de Lisboa) também se estreou a falar nessa qualidade. Ao i, a vereadora de Cascais, que é filha de Pedro Roseta e Helena Roseta, contraria a ideia de que tenha chegado onde chegou na política por ser “filha de” (surpreendente seria se admitisse tal). Criticou o nepotismo “escandaloso” no Governo e deixou uma garantia: “Eu nunca me sentaria no Conselho de Ministros ao lado do meu pai. Como a minha mãe nunca se sentaria no Conselho de Ministros ao lado do meu pai.” (Não se imagina em que circunstância tal poderia vir a acontecer… mas fica feita a jura.)

O Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga aceitou uma providência cautelar apresentada pelos últimos moradores do Prédio Coutinho, em Viana do Castelo, suspendendo os despejos e a demolição. Pela primeira vez numa semana, os moradores puderam sair das suas casas, depois de dias de “sequestro” e isolamento, sem água nem luz. "Isto não se aceita num estado de direito. Não somos ladrões. Até os presos têm direito a água e alimentos. Foi uma barbárie aos direitos humanos e constitucionais. Para mim, foi um sequestro na minha própria casa, uma coisa incompreensível", disse uma moradora. A Viana Polis vai recorrer da decisão.

Se já perdeu o fio à meada deste imbróglio, que vem dos tempos do Programa Polis de José Sócrates, o Observador faz aqui um bom resumo da matéria (exclusivo para assinantes).

Por muito que algumas coisas mudem (e têm mudado), o mundo continua a ser um lugar perigoso, em particular para as mulheres. Como escreve o Luís M. Faria, “não é só em Espanha ou em Portugal que surge um certo tipo de sentença judicial que a muita gente parece vinda de outro tempo”. No Canadá, um juiz absolveu um homem acusado de violação considerando que uma das alegadas vítimas se mostrou bastante combativa no tribunal - portanto, também o teria sido se estivesse a ser sexualmente atacada… Logo… não houve violação.

No Alabama, uma mulher grávida foi acusada do homicídio do seu filho… por ter levado um tiro no estômago que resultou na morte do feto. A notícia já tem uns dias, mas é tão absurda que o New York Times foi tentar perceber o que pensam os locais sobre este caso. E percebeu: as boas gentes do Alabama - que lutam mais pelo direito à posse de armas do que pelos direitos das mulheres - acham bem que uma mulher grávida que leva um tiro, daí resultando a morte do feto, seja acusada de homicídio. “Muitas conversas focam-se na questão de quão severa deve ser a pena, não na culpabilidade" de Marshae Jones, a mulher em causa, que foi baleada depois de ter iniciado uma discussão (ah!, pormenor importante: o homem que a baleou foi libertado, pois atuou em legítima defesa durante a discussão).

Em Hong Kong aconteceu o impensável: a tomada do Conselho Legislativo pela multidão em fúria, no 22º aniversário da passagem de soberania do território para a China. “Partiram-se vidros, pintaram-se as paredes. Mas o alvo final, a coroa do dia, seria entrar na sala do hemiciclo. É conseguido. Os manifestantes sentam-se nas cadeiras dos deputados. O assento do presidente do LegCo é vandalizado. Durante quase três horas, os manifestantes percorrem todos os recantos do edifício e fazem o que querem, sem que nenhuma oposição se lhes depare. Era já quase meia-noite, quando centenas de polícias se deslocaram de novo para o local dos incidentes, e depois de várias rondas de lançamentos de gás lacrimogéneo, conseguiram ‘limpar’ o local.” Cito as palavras de João Carlos Malta, na reportagem do jornal macaense Ponto Final, com excelentes fotografias de Eduardo Martins. Não deixe de ler.

É oficial: o Irão ultrapassou os limites de urânio que pode armazenar, imposto pelo acordo nuclear - o acordo que Donald Trump rasgou e, por isso, Teerão entende que já não tem de respeitar. A informação foi confirmada pela Agência Internacional de Energia Atómica. Trump reagiu, comentando que o Irão está a “brincar com o fogo”; Teerão diz que só voltará a negociar quando Washington regressar ao acordo nuclear de 2015.

Tem 15 anos, chama-se Coco Gauff e chorou após a vitória que a revelou ao mundo. E que vitória: em Wimbledom, perante Venus Williams, uma das suas heroínas. Gauff já tinha sido notícia como a mais jovem tenista a ultrapassar o qualifying do torneio inglês de Wimbledon; desde ontem, é uma estrela.

Morreu o historiador António Hespanha. “Historiador, jurista, teórico e investigador, cidadão empenhado, cumpridor de importantes funções públicas sempre que o país precisou dele, para logo voltar ao que adorava fazer: estudar, ensinar e escrever história. Também o mestre e orientador de tantas e tantos historiadoras e historiadores, incluindo eu”, escreve Rui Tavares num obituário, que é uma homenagem e que é um conjunto de memórias pessoais sobre alguém que lhe mudou a vida. E que vale a pena ler.

O QUE ANDO A LER

“Num campo de detenção familiar no Novo México, conheci uma criança de quatro anos, com impulsos suicidas, cujo rosto estava coberto de arranhões sangrentos, auto-infligidos. Sempre que ela e a mãe passavam pelo canal de drenagem - que corria ao longo da cerca de arame farpado que as cercava -, a menina implorava à mãe que entrasse na água. Ela não queria nadar. Ela queria que os "crocodillos" as comessem, para poderem ir para o céu e escapar daquele lugar. Outra criança pequena teve que ser agarrada pela mãe, porque insistia em correr a alta velocidade contra armários de metal. O menino estava coberto de hematomas.”

A tradução é minha, o texto é de Taylor Levi, uma advogada de imigração que trabalha vai para uma década com refugiados em El Paso, Novo México, e relatou no Washington Post aquilo que tem testemunhado.

Sim, eu podia ter avisado que ia citar um parágrafo com factos chocantes (a mim, chocaram-me), mas aposto que se quisesse mesmo viver num mundo almofadado e cor de rosa provavelmente não estaria a ler isto, não é?

Como li há dias num texto da Ana França, a propósito da foto que correu mundo de pai e filha de um ano afogados no Rio Grande, “quando a realidade é chocante, dificilmente a fotografia não será”. O mesmo se aplica às palavras que descrevem essa realidade.

Cheguei ao relato de Taylor Levi através deste texto da New York Review of Books. É uma espécie de história da infâmia - neste caso, a história dos campos de concentração, como aqueles onde as autoridades norte-americanas têm detido números cada vez maiores de migrantes que tentam entrar ilegalmente no país.

Uso as palavras “campo de concentração” com o mesmo rigor que a congressista democrata Alexandria Ocasio-Cortez usou há duas semanas para descrever esta realidade, levantando uma enorme polémica, em boa medida desinformada, alimentada por gente que conscientemente confunde os conceitos de “campo de concentração”, “campos de extermínio” e “Holocausto”. Não, não são sinónimos, e cada conceito descreve realidades diferentes, embora as suas histórias se cruzem.

Como bem explica a autora, a história dos campos de concentração tem mais de um século (começa com os espanhóis, em Cuba), ou seja, precede o Holocausto e os campos de morte do século XX, embora a forma como o mundo olha para as vítimas deste período tenha mudado a forma como hoje encara a detenção em massa de civis e responde a uma pergunta: como deve um país lidar com pessoas desesperadas que não são seus cidadãos? Antes do Holocausto, a resposta era o silêncio e o dito “respeito pela soberania nacional”. “After the harrowing toll of the Holocaust with the murder of millions, the world revisited its answer, deciding that perhaps something was owed to those in mortal danger”, escreve Andrea Pitzer, jornalista que editou em 2017 o livro “One Long Night: A Global History of Concentration Camps”. Dessa resposta resultam a Convenção de Genebra e a Convenção dos Direitos da Criança.

Porém, como a história não acaba, o capítulo que está a ser escrito no século XXI é sobre retrocesso. “Os países estão a rejeitar as obrigações existentes e a receber quem procura asilo com muros e vedações”. E com prisões onde migrantes e refugiados são detidos sem acusação formal, sem julgamento, sem prazos, sem possibilidade de defesa, e sem condições mínimas de humanismo, de segurança e salubridade (como se confirma neste depoimento de uma representante do Departamento de Justiça, tentando justificar o injustificável). Essas prisões têm um nome: campos de concentração, como confirmam os especialistas consultados pela Newsweek.

Se se interessar pela história dos campos de concentração, pode ver este vídeo de uma palestra de Andrea Pitzer.

Fico por aqui.

Não se esqueça que hoje é dia de Comissão Política, o podcast semanal de política do Expresso.

Tenha uma boa terça-feira.

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