Incêndios: vive e deixa morrer

17-10-2017
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Leia o relatório. Leia pelo menos as primeiras páginas: chamam-lhe sumário executivo, podiam chamar-lhe execução sumária. A execução sumária da competência das instituições que têm a função, a obrigação, o dever de garantir a segurança dos cidadãos. Se vamos esquecer os incêndios e as mortes de Pedrógão, então o Governo merece uma estátua pela capacidade de gerir uma crise, mas o lioz dessa estátua será a nossa indiferença coletiva.

O truque foi fácil: adiar as conclusões para quando a trituradora da atualidade já tivesse sobreposto assuntos e até lá acusar quem tocasse no tema de aproveitamento da catástrofe. O estômago sobe à traqueia com vontade de sair pela boca, mas é mesmo assim.

O relatório da comissão independente saiu entalado depois das autárquicas e antes do Orçamento (o que foi bastante conveniente), calhando ainda por cima nos dias da acusação da ‘Operação Marquês’ e de uma crise política no PSD (o que foi uma coincidência). Quem hoje quer saber de Pedrógão? O PSD agiu sempre mal no ataque político e o Governo reagiu sempre bem no desarmar desse ataque, mas ambos fizeram gestão política do processo. O Governo fê-la melhor. Melhor era impossível.

Pior era impossível. O relatório é sério e é bom, na análise ao acontecimento e nas propostas para reformar políticas. E confirma o que os jornais foram investigando e noticiando. É uma galeria de horrores, encimada pela Autoridade Nacional de Proteção Civil. Uma República que quatro meses depois consente que a Proteção Civil permaneça incólume não precisa de eleições, precisa de psicanálise. A segurança das populações está entregue a incompetentes, numa Proteção Civil liderada por boys partidários que anulam o voluntarismo de muitas pessoas e a qualidade do serviço público com a sua insuportável mas tolerada mediocridade.

O relatório confirma o descontrolo, o amadorismo, o caos de comando, a barata-tontice, a incompetência naquela dia; subentende que, se a ação tivesse sido lesta entre as três e as cinco da tarde, vidas teriam sido salvas. E relata situações que seriam insólitas se esta mediocridade não fosse perigosa: um circo de VIP no local; um secretário de Estado que por lá andava a atrapalhar; postos de comando a mudar de poiso; um helicóptero a 41,7 quilómetros que não levantou voo porque as regras preveem que só deve acorrer se estiver a 40 quilómetros — sim, a sério!, alguma cabeça decidiu não enviar um helicóptero em tempo útil por causa de 1,7 quilómetros; a ‘caixa negra’ da linha do tempo foi alterada, porque alguém tem poder para decidir o que ela regista e não regista. Isto, que ninguém sabia, aconteceu em Pedrógão. Aconteceu em quantos incêndios anteriores? É admissível que alguém possa decidir o que entra e o que não entra num registo oficial de um incêndio? Quem fez ou quem deixa fazer devia ser julgado. Pelo menos politicamente.

Sim, há responsabilidades políticas e não são só da ministra. São do Presidente da República, que devia pedir desculpa por na própria noite ter dito que nada mais podia ter sido feito. E são do primeiro-ministro, que antes de o ser contratou o SIRESP e modelou a Proteção Civil, e que depois de o ser mudou as chefias da entidade. António Costa não ficou em choque mas fica em xeque, e se não existe responsabilização política então não existe responsabilidade política.

Responsabilização não quer dizer demissão, quer dizer admissão: admitir-se à função de, perante o pano encharcado na cara do Estado que este relatório é, não o engavetar com um par de mudanças na proteção civil.

Não precisamos da cabeça de Constança Urbano de Sousa numa bandeja, mas das cabeças de Marcelo Rebelo de Sousa e de António Costa em cima dos ombros, para em nome do Estado pedir desculpa às famílias das vítimas, para investir também em quem não tem sindicatos de protesto e para abrir concursos para escolher a competência para o lugar dos medíocres. Se isso não acontecer, e ficarmos tranquilos, então faça-se-lhes uma estátua com a nossa própria pele.

PS: este artigo foi publicado no semanário Expresso este sábado, 14 de outubro, na véspera de um novo dia de incêndios que provocaram vítimas mortais, em Penacova e Sertã. No final do dia ainda não se conheciam nem as causas, nem a forma como as forças de segurança intervieram ou que dispositivo foi possível montar.

Do relatório: "A questão que se coloca é a seguinte: no século XXI, com o avanço do conhecimento nos domínios da gestão da floresta, da meteorologia preventiva, da gestão do fogo florestal, das características físicas e da ocupação humana do território, como é possível que continuem a existir acontecimentos como os dramáticos incêndios da zona do Pinhal Interior que tiveram lugar no verão de 2017?"

Leia o relatório. Leia pelo menos as primeiras páginas: chamam-lhe sumário executivo, podiam chamar-lhe execução sumária. A execução sumária da competência das instituições que têm a função, a obrigação, o dever de garantir a segurança dos cidadãos. Se vamos esquecer os incêndios e as mortes de Pedrógão, então o Governo merece uma estátua pela capacidade de gerir uma crise, mas o lioz dessa estátua será a nossa indiferença coletiva.

O truque foi fácil: adiar as conclusões para quando a trituradora da atualidade já tivesse sobreposto assuntos e até lá acusar quem tocasse no tema de aproveitamento da catástrofe. O estômago sobe à traqueia com vontade de sair pela boca, mas é mesmo assim.

O relatório da comissão independente saiu entalado depois das autárquicas e antes do Orçamento (o que foi bastante conveniente), calhando ainda por cima nos dias da acusação da ‘Operação Marquês’ e de uma crise política no PSD (o que foi uma coincidência). Quem hoje quer saber de Pedrógão? O PSD agiu sempre mal no ataque político e o Governo reagiu sempre bem no desarmar desse ataque, mas ambos fizeram gestão política do processo. O Governo fê-la melhor. Melhor era impossível.

Pior era impossível. O relatório é sério e é bom, na análise ao acontecimento e nas propostas para reformar políticas. E confirma o que os jornais foram investigando e noticiando. É uma galeria de horrores, encimada pela Autoridade Nacional de Proteção Civil. Uma República que quatro meses depois consente que a Proteção Civil permaneça incólume não precisa de eleições, precisa de psicanálise. A segurança das populações está entregue a incompetentes, numa Proteção Civil liderada por boys partidários que anulam o voluntarismo de muitas pessoas e a qualidade do serviço público com a sua insuportável mas tolerada mediocridade.

O relatório confirma o descontrolo, o amadorismo, o caos de comando, a barata-tontice, a incompetência naquela dia; subentende que, se a ação tivesse sido lesta entre as três e as cinco da tarde, vidas teriam sido salvas. E relata situações que seriam insólitas se esta mediocridade não fosse perigosa: um circo de VIP no local; um secretário de Estado que por lá andava a atrapalhar; postos de comando a mudar de poiso; um helicóptero a 41,7 quilómetros que não levantou voo porque as regras preveem que só deve acorrer se estiver a 40 quilómetros — sim, a sério!, alguma cabeça decidiu não enviar um helicóptero em tempo útil por causa de 1,7 quilómetros; a ‘caixa negra’ da linha do tempo foi alterada, porque alguém tem poder para decidir o que ela regista e não regista. Isto, que ninguém sabia, aconteceu em Pedrógão. Aconteceu em quantos incêndios anteriores? É admissível que alguém possa decidir o que entra e o que não entra num registo oficial de um incêndio? Quem fez ou quem deixa fazer devia ser julgado. Pelo menos politicamente.

Sim, há responsabilidades políticas e não são só da ministra. São do Presidente da República, que devia pedir desculpa por na própria noite ter dito que nada mais podia ter sido feito. E são do primeiro-ministro, que antes de o ser contratou o SIRESP e modelou a Proteção Civil, e que depois de o ser mudou as chefias da entidade. António Costa não ficou em choque mas fica em xeque, e se não existe responsabilização política então não existe responsabilidade política.

Responsabilização não quer dizer demissão, quer dizer admissão: admitir-se à função de, perante o pano encharcado na cara do Estado que este relatório é, não o engavetar com um par de mudanças na proteção civil.

Não precisamos da cabeça de Constança Urbano de Sousa numa bandeja, mas das cabeças de Marcelo Rebelo de Sousa e de António Costa em cima dos ombros, para em nome do Estado pedir desculpa às famílias das vítimas, para investir também em quem não tem sindicatos de protesto e para abrir concursos para escolher a competência para o lugar dos medíocres. Se isso não acontecer, e ficarmos tranquilos, então faça-se-lhes uma estátua com a nossa própria pele.

PS: este artigo foi publicado no semanário Expresso este sábado, 14 de outubro, na véspera de um novo dia de incêndios que provocaram vítimas mortais, em Penacova e Sertã. No final do dia ainda não se conheciam nem as causas, nem a forma como as forças de segurança intervieram ou que dispositivo foi possível montar.

Do relatório: "A questão que se coloca é a seguinte: no século XXI, com o avanço do conhecimento nos domínios da gestão da floresta, da meteorologia preventiva, da gestão do fogo florestal, das características físicas e da ocupação humana do território, como é possível que continuem a existir acontecimentos como os dramáticos incêndios da zona do Pinhal Interior que tiveram lugar no verão de 2017?"

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