Sofia Fava, Sandra Santos e Fernanda Câncio: as três mulheres de José Sócrates que o Ministério Público interrogou

25-02-2019
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SOFIA FAVA, A EX-MULHER QUE FOI COM SÓCRATES PARA PARIS

Quando, em 2011, Sócrates perdeu as eleições contra Pedro Passos Coelho, encontrou-se numa encruzilhada. Tinha 54 anos, mais de 30 dedicados à política. Estava na hora de desaparecer, de fazer a sua travessia no deserto.

Em Portugal ser-lhe-ia complicado passar despercebido. Solução encontrada: a elitista Paris. Seria lá que sublimaria as frustrações da política caseira – e seria também na cidade-luz que cumpriria uma ambição antiga: estudar filosofia política. Faltava apenas escolher a universidade e o local onde viveria. Matriculou-se na Sciences Po e mudou-se para um 4º andar luxuoso situado no número 17 de um dos bairros mais caros de Paris.

O 16 é o bairro onde o realizador português Rúben Alves gravou o sucesso de bilheteira A Gaiola Dourada. Lá, uma moradia pode custar entre 30 a 40 milhões de euros. Construído em 1860, ganhou estatuto não só pelas suasgrandes avenidas e edifícios com fachadas em blocos de pedra, mas também porque se concentraram ali quase todas as grandes embaixadas.

A praça de Trocadéro é um dos pontos mais conhecidos do bairro, onde também há um monumento à princesa Diana, que morreu junto ao rio Sena, um hipódromo e a avenida mais larga de Paris: a Foch. Habitados por embaixadores, príncipes árabes e políticos de topo, como o ex-Presidente Nicolas Sarkozy, a maioria dos apartamentos tem vista para o Sena ou para a Torre Eiffel.

A porteira do seu prédio era portuguesa, algo bastante comum. Em pouco tempo, Sócrates mergulhou na cidade e criou rotinas. Bebia diariamente café no Le Diplomatique, um bistrô perto de casa. Sentava-se ao balcão e era servido por um empregado também português. Os vizinhos viam-no muitas vezes a fazer exercício. Aos domingos de manhã saía de calções e ténis para correr. Quando estava muito frio, vestia um fato de treino. Por vezes ia acompanhado pelo filho mais velho.

Em Agosto de 2012 Carlos Santos Silva adquiriu um apartamento situado na Avenue President Wilson, nº 15. Por ser uma casa de luxo, o preço foi alto, pago em duas tranches: 257.624 euros em 30/07/2012 e 2.609.924 euros um mês depois. Sócrates deixou a sua casa no bairro 16 e mudou-se para o imóvel, que habitou entre Setembro de 2012 e Julho de 2013.

Quer Carlos Alexandre, quer o Ministério Público, estão convencidos de que Sofia Fava, que está acusada no processo por um crime de branqueamento de capitais e outro de falsificação de documento, tinha a noção de que o apartamento de luxo em que morou em Paris era, na verdade, propriedade de José Sócrates.

Dois meses depois, em Setembro de 2013, já o ex-Primeiro-Ministro não morava em Paris, a casa entrou em obras – e a sua intervenção neste processo é alvo de suspeita por parte da investigação, que está convicta de que o facto de ter sido Carlos Santos Silva quem formalmente pagou os 480.240 euros investidos na remodelação da propriedade, nada quer dizer sobre quem era, na realidade, o titular do dinheiro. São vários os indícios que, no entender do MP, apontam nesse sentido: Sócrates assistiu à assinatura do contrato entre Santos Silva e o gabinete de arquitetura responsável pela empreitada e, além disso, manteve contactos diretos com o arquiteto responsável e escolheu os materiais, tomando decisões sobre as alterações a realizar. Sócrates terá pedido mesmo a Sofia Fava, sua ex-mulher também então residente em Paris, para acompanhar o projeto. Conclusão de Carlos Alexandre, juiz de instrução: “Apesar de estar registado em nome de Carlos Silva, o referido apartamento sempre foi, na realidade, apenas ocupado por José Pinto de Sousa, que ocasionalmente o decidia emprestar a terceiros, que decidiu a realização das obras no mesmo e escolheu as alterações a serem feitas e que decidiu ainda colocar o mesmo em venda, quando a imprensa portuguesa começou a suscitar suspeitas sobre as suas relações com o Carlos Silva.”

Quer Carlos Alexandre, quer o Ministério Público, estão convencidos de que Sofia Fava, que está acusada no processo por um crime de branqueamento de capitais e outro de falsificação de documento, tinha a noção de que o apartamento de luxo em que morou em Paris era, na verdade, propriedade de José Sócrates.

O Ministério Público vai mais longe na acusação a Sofia Fava, identificando, pelo menos, mais duas situações que, em seu entender, provam que Sócrates, através de Santos Silva, financiava a ex-mulher – e que esta tinha noção das movimentações de capital feitas tendo-a como beneficiária ou intermediária:

Sofia Fava vendeu um apartamento situado em Lisboa a uma sociedade chamada Gigabeira por 400 mil euros. A Gigabeira tem como sócia a empresa Constrope, que, por sua vez, é participada pela sociedade Taggia XIV, que tem como acionista Santos Silva. O juiz Carlos Alexandre diagnostica: “Verifica-se ainda que o preço pago pela Gigabeira foi muito superior ao preço praticado em outras fracções do mesmo imóvel.”

a uma sociedade chamada Gigabeira por 400 mil euros. A Gigabeira tem como sócia a empresa Constrope, que, por sua vez, é participada pela sociedade Taggia XIV, que tem como acionista Santos Silva. O juiz Carlos Alexandre diagnostica: “Verifica-se ainda que o preço pago pela Gigabeira foi muito superior ao preço praticado em outras fracções do mesmo imóvel.” Outra situação em que Sofia Fava surge como protagonista diz respeito à aquisição do Monte das Margaridas, em Montemor-o-Novo. Escriturada a 3 de Fevereiro de 2012, a propriedade custou 760 mil euros, resultantes de um financiamento do BES que teve como fiador Carlos Santos Silva – o mesmo que posteriormente se responsabilizou até Junho de 2014, através da sua empresa XLM, a pagar uma avença mensal a Sofia Fava com um valor pouco superior ao crédito em questão: 4.650 euros. Depois dessa data tudo mudou – ou melhor, quase tudo. Diz o despacho de Carlos Alexandre: “Tais pagamentos de favor pela XLM prolongaram-se até final de Junho de 2014, data em que, face a notícias vindas a público sobre as investigações pendentes e face a novas formas de transferir fundos para a esfera de José Pinto de Sousa, os mesmos procedimentos se alteraram, chegando a verificar-se algum atraso no pagamento.”

Desde Julho de 2014, o provisionamento da conta de Sofia Fava passou a ser feito a partir da conta de Manuel Falcão Reis, o seu companheiro. Mas, segundo o MP, quem financiava Manuel Reis era Santos Silva, que continuaria assim a “alimentar” indiretamente a ex--mulher de Sócrates. Conclusão: “Mais uma vez, verifica-se que a aquisição do imóvel Monte das Margaridas é feito à custa de fundos que vêm diretamente da esfera de José Pinto de Sousa ou que estão sob o controlo formal de Carlos Silva, mas que na realidade pertencem ao primeiro.”

Em declarações ao Ministério Público, Sofia Fava, afirmou não ter dúvidas de que o dinheiro de Carlos Santos Silva efetivamente pertence ao empresário e não a José Sócrates. O Ministério Público, por seu lado, concluiu exatamente o contrário: que o dinheiro e o património de que Sofia Fava usufruiu eram, na verdade, do ex-Primeiro-Ministro.

SANDRA SANTOS, A MULHER-MISTÉRIO

Um dos diálogos mais tensos entre Sócrates e o Ministério Público ocorreu numa quinta-feira, a 27 de Maio de 2015. O ex-Primeiro-Ministro estava preso preventivamente há seis meses. Antes de sair da cadeia de Évora para enfrentar, num interrogatório explosivo, o procurador Rosário Teixeira e o inspetor tributário Paulo Silva, disse a João de Sousa, um dos detidos com quem se dava melhor na prisão, que seria especialmente duro com os que lhe retiraram a liberdade.

A dada altura do interrogatório no campus da justiça, Sócrates antecipou-se a Rosário Teixeira e a Paulo Silva, e abordou um tema até então tabú: Sandra Santos, uma cabo-verdiana de 40 anos que aparecia profusamente em escutas com o socialista e com Carlos Santos Silva, combinando encontros em Lisboa e em Paris, e com quem, no entender do Ministério Público, Sócrates mantinha uma relação que ia para lá da mera amizade, tendo-lhe transferido, através de Santos Silva, mais de uma centena de milhar de euros ao longo de vários anos, para financiar as suas viagens e o seu estilo de vida na Suíça, onde vivia com o seu filho.

– Não querem falar sobre a senhora Sandra Santos? Deve ser mais excitante...

Impávido, Paulo Silva devolveu a José Sócrates a questão da alegada excitação que o tema lhe provocaria...

– Não sei, o senhor engenheiro dirá.

Sócrates impacientou-se.

– Não sabe? Sabe, sabe! Sabe, sabe!!! (...) A Sandra Santos é amiga do Carlos Santos Silva. Amiga do Carlos Santos Silva!

Paulo Silva manteve a calma.

– Sim, e então?

Sócrates passou de novo ao ataque.

– Mas isto entra‐vos por um ouvido a sai‐lhes por outro, não interessa nada! (...) Sabe porquê? Sabe porquê? Porque vocês em todos os vossos escri‐tos o que vocês insinuam é que eu, é que o Carlos pagava deslocações para favores sexuais. Isso, pá, oh, por amor de Deus, pá! Por amor de Deus!

O ex-primeiro-ministro estava imparável. Continuou.

– Não é o que está aí insinuado? Insinuado e de que forma, pá, escandalosa! Não é verdade! A Sandra é amiga do Carlos Santos Silva, eu acho aliás que a conheci através do Carlos Santos Silva há mais de, sei lá, vinte anos! A Sandra, há uns anos atrás, teve vários desgostos na vida dela, ficou sem emprego, teve um filho, tentou suicidar‐se e pediu‐nos ajuda, muita vez pedia‐me a mim como pedia ao Carlos, vocês têm esses relatos todos na devassidão que fizeram da minha vida, têm esses relatos! Claro que eu não lhe podia pagar porque não tenho dinheiro. O Carlos é que pagava sempre porque tem dinheiro, mas pagava porque queria pagar.

Paulo Silva não confirmou nem desmentiu.

– Certo...

– Não, não, não é isso que vocês dizem! Vocês dizem é que não, não, ela vinha para se encontrar consigo, favores sexuais, não é, e o Carlos pagava!

O desmentido finalmente surgiu através do inspetor tributário.

– O senhor engenheiro é que está a dizer isso...

Sócrates não recuou...

– Desculpe, isso é o que vocês afirmam! Quando eu digo vocês...

A conversa tornou-se então confusa, desconexa, com diálogos cruzados. A tensão era notória. Rosário Teixeira:

– O que está aqui em causa é...

Sócrates:

– É, senhor procurador, não sei se o senhor afirma...

Paulo Silva:

– Eu não afirmo isso.

Sócrates de novo:

– Que é utilizado aquele dinheiro segundo eu percebi, se eu não percebi bem...

Rosário:

– Percebeu bem, que lhe pagavam as viagens...

Sócrates:

– Ah pois, pois. E ela vinha‐se encontrar consigo. Não senhor procurador, não vinha. Ela vinha para visitar a família, para estar com os amigos, e pediu‐nos ajuda – a mim e ao Carlos.

Rosário tentou detalhar...

– E é por isso que ela...

... mas Sócrates não estava para isso, decretando o fim da conversa.

- Eh pá, a mesquinhez a que vocês chegam nas imputações! Bom, mas enfim, eu prometo agora calar‐me. Mais alguma pergunta?

O MP acredita que todo o dinheiro – cerca de 101 mil euros - transferido por Carlos Santos Silva para Sandra Santos é, na realidade, propriedade de José Sócrates. E sustenta a sua convicção fundamentalmente em escutas telefónicas efetuadas.

Uma delas, datada de 29 de outubro de 2014, é considerada fundamental: durante uma conversa com José Sócrates com o objetivo de organizar mais uma visita de Sandra Santos a Lisboa, Lígia Correia, amiga de José Sócrates (com quem viria posteriormente a viver) que tratava frequentemente da logística das deslocações, agastada com os elevados montantes que Sandra Santos exigia, disse a Sócrates: “O dinheiro é teu, tu fazes como entenderes (...) tu mandaste-lhe o dinheiro, já no mês passado mandaste aquele dinheiro todo e ela já não tem.” Inquieto com as liberdades orais de Lígia ao telefone, Sócrates, que sempre preferiu tratar Sandra Santos durante as conversas telefónicas por “senhor S”, repreendeu-a, dizendo-lhe que não precisava de falar com tantos detalhes. A preocupação do ex-primeiro-ministro é encarada pelo Ministério Público como um sinal de que o que Sócrates verdadeiramente queria esconder era o facto de, alegadamente, ser o verdadeiro proprietário do dinheiro utilizado para, durante sete anos, sustentar Sandra Santos.

FERNANDA CÂNCIO, A TESTEMUNHA DOS GASTOS MILIONÁRIOS

A jornalista do Diário de Notícias nunca foi suspeita da prática de qualquer crime na Operação Marquês, em que depôs unicamente como testemunha por, na qualidade de namorada do ex-primeiro-ministro, ter testemunhado várias situações em que José Sócrates gastou montantes pecuniários significativos. Aconteceu em férias que ambos passaram juntos, por exemplo. Mas não só.

Uma conversa telefónica que a repórter manteve em fevereiro de 2014 com José Sócrates sobre a eventual compra de uma casa de 2,2 milhões de euros no centro de Lisboa foi considerada por Rosário Teixeira como um indício claro de que José Sócrates possuía uma fortuna. Nela, Câncio tenta convencer o então namorado a visitor uma casa de luxo.

Disse Câncio:

– Aquela merda é cara como o raio. E diz que se pode visitar. Não queres ir lá?

Sócrates resistiu.

- Não.

Fernanda insistiu.

- Porquê?

– Porque não. Isso é o primeiro passo para aparecer no Correio da Manhã. Aquilo é um buraco. Para um gajo ir para lá, é o cu do mundo.

Fernanda reagiu intempestivamente...

– Buraco és tu! Tu é que és um buraco!!!

A dada altura, estava o processo em investigação, quando dois jornalistas do Correio da Manhã (Sónia Trigueirão e Sérgio Azenha), solicitaram formalmente a Rosário Teixeira que Câncio fosse constituída arguida no processo. E apresentavam aqueles que, em seu entender, configuravam indícios de cumplicidade da jornanista com as práticas alegadamente criminosas de José Sócrates:

Uma SMS enviada por Fernanda Câncio a Sócrates no dia 22 de setembro de 2013, onde a jornalista diz: «Mas vais ver q ela volta para ti, não há assim tantos ex-PM com massa e casa em Paris disponíveis»;

Um diálogo ocorrido a 2 de fevereiro de 2014, onde Fernanda solicita a Sócrates o pagamento de um computador no valor de 1349 €, pedindo também os dados do seu cartão de crédito;

O facto de, a 24 de junho de 2014, Fernanda Câncio ter dito a Sócrates que Dina lhe enviou um e-mail com a descrição de uma casa, tendo ambos discutido a possibilidade de adquirir uma quinta que Fernanda e Dina julgam ser um bom investimento;

Uma conversa telefónica, verificada a 1 de julho de 2014, em que a jornalista diz a José Sócrates que este perdeu a compra de uma casa no Algarve, ao que ele pergunta se o proprietário não a quer vender a si e a Carlos Santos Silva;

O facto de, a 22 de fevereiro de 2014, Câncio ter enviado uma SMS a José Sócrates sugerindo uma visita de ambos a um aparta- mento de luxo próximo do Largo do Caldas. Segundo o requeri- mento, Fernanda «só poderia sugerir a aquisição do referido imóvel se tivesse conhecimento direto de que José Sócrates dispunha de uma elevada capacidade financeira para o adquirir». Nesse mesmo dia, continua o requerimento que remeteram ao processo, José Sócrates recusou visitar a casa com medo de que a informação chegasse ao CM. Não tendo Câncio questionado o sentido ou alcance desta afirmação, “tudo leva a crer que está ao corrente da proveniência (ilícita) dos fundos que iria utilizar para aquisição daquele imóvel”, conclui o requerimento;

A circunstância de José Sócrates ter manifestado a Fernanda Câncio o interesse em adquirir um imóvel em Tavira por 900 000 €;

O facto de Fernanda Câncio ter acompanhado Sócrates em várias viagens ao estrangeiro: Veneza em 2008/2009, Menorca no verão de 2009 e Formentera no verão de 2014. Afirmam os jornalistas do CM: “Na viagem a Formentera, foi intercetada uma conversa de Fernanda Câncio de onde resulta que esta tratou e programou os detalhes da viagem em conjunto e que essa estada custou mais de 18 000 € tendo a fatura sido paga por Carlos Santos Silva”;

Finalmente, numa conversa escutada entre a mulher de Santos Silva, Inês do Rosário, e Fernanda Câncio, a primeira insulta Sócrates, apontando-o como «a cruz» da sua família «até ao fim», ao que Fernanda Câncio responde que «não precisava de ser tão pesada». Noutra conversa com Câncio, Inês do Rosário afirmou que tinha avisado o marido de que «era um erro ir de férias com José Sócra- tes», que este «deu cabo da vida de todos».

O Ministério Público não foi sensível aos argumentos dos jornalistas. Quanto a Câncio, respondeu a todas as imputações num longo artigo que fez a capa da revista Visão no dia 11 de maior de 2016.

Sobre a SMS em que afirma não existirem assim tantos ex‐PM com massa e casa em Paris:

– «Que diz esta SMS? Segundo o CM indicia que eu sabia que JS é ex‐primeiro‐ministro, que tem uma casa de propriedade sua em Paris e que tem (muito) dinheiro. É interessante, por este exemplo, aferir do critério usado para classificar as comunicações escutadas como tendo ou não relevo para o processo. Sucede que o que está na SMS é que JS tinha uma casa em Paris, tanto quanto eu sabia, arrendada. Sabem o MP e o juiz e por conseguinte o CM que nunca houve qualquer con‐versa sobre esse apartamento em que eu tivesse tomado parte (à exceção da já citada), sabem o MP e o juiz, e por conseguinte o CM, que nunca o vi.» (...)

– «Conheço pessoalmente JS desde 1998 e conheci a partir de 2000 a família alargada, verificando que todos viviam com desafogo. Além disso, pelo menos desde que JS ascendeu a secretário‐geral do PS, em 2004, saíram regularmente notícias nas quais se falava da fortuna da família, se dizia que a mãe é rica, que o avô era rico, que os tios são ricos, que o próprio possuía um apartamento “de luxo” no centro de Lisboa, que passava férias “de luxo”, que se vestia em boas lojas, etc. Enfim, que tem “massa”. Mas uma SMS minha na qual, com ironia, refiro essa “massa” tem “relevância criminal”. E pode mesmo “provar” que eu “sabia”. Num processo com pelo menos ano e meio de escutas, para “provar” que eu “sabia”, desencantaram isto.»

Sobre a alegada intenção de compra de um apartamento no Largo do Caldas:

– "(...) nada há nessa escuta – ou em qualquer outra – que comprove a teoria de que eu queria comprar um apartamento, ou outro imóvel qualquer, com JS. Infere‐se, pelos vistos, que falar de um apartamento a alguém como sendo interessante implica que o quero comprar com essa pessoa. Mas há mais: infere‐se igualmente que se eu punha a hipótese de JS comprar um apartamento de 2,2 milhões tinha de saber 'a origem do dinheiro´. Ora, além de crer que JS tinha acesso a dinheiro de família, e de este me ter dito que auferia um alto salário como consultor, ele era proprietário de um apartamento que valia perto de um milhão de euros (de acordo com o noticiado, foi vendido em 2015 por 750 mil euros). E ele informara‐me de que a mãe, ao mudar‐se, lhe dera o apartamento dela, ou o correspondente em dinheiro. Não era, pois, extraordinário que pudesse pagar o que estava a ser pedido pelo apartamento do Caldas. Acresce um detalhe que tanto MP como CM conhecem mas que o CM nunca revelou (pelo contrário, já que o apartamento “se mudou” para o Chiado): o imóvel fica em frente à minha casa. É por assim ser que eu sabia o preço: liguei a perguntar, por curiosidade, quando o edifício foi reabilitado e os andares ficaram à venda; mas, ao contrário do que se quer fazer crer, nunca sequer o visitei.

Por outro lado se, como o CM afirma, eu queria comprar um apartamento com JS, e se este, na escuta citada, diz não estar interessado no do Caldas, onde estão os outros imóveis que propus para essa compra em conjunto?"

Sobre a intenção de compra de uma casa em Tavira:

– "A propriedade de Tavira que visitei com JS, e cujo arrendamento e venda está a cargo de uma amiga minha, agente imobiliária (Dina). Tendo passado lá um fim de semana, ele achou‐a interessante e falou dela a Carlos Santos Silva. Como havia duas casas, uma grande e uma pequena, foi‐me dito que podiam comprar e dividi‐la. A casa pequena custava, se bem me lembro, 360 mil euros. Não me pareceu fora do alcance de José Sócrates."

Sobre as férias que passou com o ex‐PM:

– "Quando alguém próximo faz um convite para passar férias não é costume perguntar se é a pessoa que nos convida que paga ou se é outra, como quando nos convidam para jantar ou almoçar não perguntamos de onde vem o dinheiro. Quem aufere uma avença de 25 mil euros/mês (que JS me disse receber) pode decerto pagar a meias um aluguer como o da casa em Formentera, e cujo valor eu conhecia. Não me passou pela cabeça outro raciocínio."

Sobre o computador que José Sócrates lhe ofereceu:

– "Ofereceu‐mo pelo meu aniversário. Encomendei‐o no site da Apple, daí a necessidade dos elementos do cartão de crédito. Sublinhe‐se: de acordo com a teoria do CM e CMTV, eu saberia 'da origem ilícita dos fundos a que JS tinha acesso' e da circulação de dinheiro vivo entre CSS e JS, mas pedi a JS o número do cartão de crédito para fazer uma compra online e portanto completamente exposta. Faz sentido?"

Finalmente, sobre o facto de o seu desconhecimento do que se passava à sua volta provocar dúvidas:

– "(...) É natural que haja gente bem‐intencionada e séria que se questiona sobre como podia eu 'não saber'. Aquilo que tem sido publicado e que o próprio José Sócrates (assim como Carlos Santos Silva) já assumiu faz difícil perceber que alguém tido como próximo não tivesse pelo menos estranhado o que se revelou ser a disponibilidade financeira deste graças ao 'dinheiro vivo' proveniente de Carlos Santos Silva. Mas, como já disse, não só nunca me foi mostrada essa circulação de dinheiro como durante os períodos em que convivi com José Sócrates nunca o vi efetuar compras de valores incompatíveis com aquilo que eu acreditava – já expliquei porquê – ser a sua capacidade económica. Nunca assisti a gastos que me parecessem ir além das possibilidades de alguém com acesso a um confortável pecúlio familiar e um bom ordenado. Almoçar e jantar em bons restaurantes, vestir‐se em boas lojas, sim; mas conheço imensas pessoas que frequentam os mesmos restaurantes e compram nas mesmas lojas. Não sou aliás a única pessoa do círculo de José Sócrates a ter ficado surpresa com aquilo que se publica como sendo os seus gastos (...) Se fizesse ideia da relação pecuniária entre CSS e JS teria feito perguntas por considerar a situação, no mínimo, eticamente reprovável."

SOFIA FAVA, A EX-MULHER QUE FOI COM SÓCRATES PARA PARIS

Quando, em 2011, Sócrates perdeu as eleições contra Pedro Passos Coelho, encontrou-se numa encruzilhada. Tinha 54 anos, mais de 30 dedicados à política. Estava na hora de desaparecer, de fazer a sua travessia no deserto.

Em Portugal ser-lhe-ia complicado passar despercebido. Solução encontrada: a elitista Paris. Seria lá que sublimaria as frustrações da política caseira – e seria também na cidade-luz que cumpriria uma ambição antiga: estudar filosofia política. Faltava apenas escolher a universidade e o local onde viveria. Matriculou-se na Sciences Po e mudou-se para um 4º andar luxuoso situado no número 17 de um dos bairros mais caros de Paris.

O 16 é o bairro onde o realizador português Rúben Alves gravou o sucesso de bilheteira A Gaiola Dourada. Lá, uma moradia pode custar entre 30 a 40 milhões de euros. Construído em 1860, ganhou estatuto não só pelas suasgrandes avenidas e edifícios com fachadas em blocos de pedra, mas também porque se concentraram ali quase todas as grandes embaixadas.

A praça de Trocadéro é um dos pontos mais conhecidos do bairro, onde também há um monumento à princesa Diana, que morreu junto ao rio Sena, um hipódromo e a avenida mais larga de Paris: a Foch. Habitados por embaixadores, príncipes árabes e políticos de topo, como o ex-Presidente Nicolas Sarkozy, a maioria dos apartamentos tem vista para o Sena ou para a Torre Eiffel.

A porteira do seu prédio era portuguesa, algo bastante comum. Em pouco tempo, Sócrates mergulhou na cidade e criou rotinas. Bebia diariamente café no Le Diplomatique, um bistrô perto de casa. Sentava-se ao balcão e era servido por um empregado também português. Os vizinhos viam-no muitas vezes a fazer exercício. Aos domingos de manhã saía de calções e ténis para correr. Quando estava muito frio, vestia um fato de treino. Por vezes ia acompanhado pelo filho mais velho.

Em Agosto de 2012 Carlos Santos Silva adquiriu um apartamento situado na Avenue President Wilson, nº 15. Por ser uma casa de luxo, o preço foi alto, pago em duas tranches: 257.624 euros em 30/07/2012 e 2.609.924 euros um mês depois. Sócrates deixou a sua casa no bairro 16 e mudou-se para o imóvel, que habitou entre Setembro de 2012 e Julho de 2013.

Quer Carlos Alexandre, quer o Ministério Público, estão convencidos de que Sofia Fava, que está acusada no processo por um crime de branqueamento de capitais e outro de falsificação de documento, tinha a noção de que o apartamento de luxo em que morou em Paris era, na verdade, propriedade de José Sócrates.

Dois meses depois, em Setembro de 2013, já o ex-Primeiro-Ministro não morava em Paris, a casa entrou em obras – e a sua intervenção neste processo é alvo de suspeita por parte da investigação, que está convicta de que o facto de ter sido Carlos Santos Silva quem formalmente pagou os 480.240 euros investidos na remodelação da propriedade, nada quer dizer sobre quem era, na realidade, o titular do dinheiro. São vários os indícios que, no entender do MP, apontam nesse sentido: Sócrates assistiu à assinatura do contrato entre Santos Silva e o gabinete de arquitetura responsável pela empreitada e, além disso, manteve contactos diretos com o arquiteto responsável e escolheu os materiais, tomando decisões sobre as alterações a realizar. Sócrates terá pedido mesmo a Sofia Fava, sua ex-mulher também então residente em Paris, para acompanhar o projeto. Conclusão de Carlos Alexandre, juiz de instrução: “Apesar de estar registado em nome de Carlos Silva, o referido apartamento sempre foi, na realidade, apenas ocupado por José Pinto de Sousa, que ocasionalmente o decidia emprestar a terceiros, que decidiu a realização das obras no mesmo e escolheu as alterações a serem feitas e que decidiu ainda colocar o mesmo em venda, quando a imprensa portuguesa começou a suscitar suspeitas sobre as suas relações com o Carlos Silva.”

Quer Carlos Alexandre, quer o Ministério Público, estão convencidos de que Sofia Fava, que está acusada no processo por um crime de branqueamento de capitais e outro de falsificação de documento, tinha a noção de que o apartamento de luxo em que morou em Paris era, na verdade, propriedade de José Sócrates.

O Ministério Público vai mais longe na acusação a Sofia Fava, identificando, pelo menos, mais duas situações que, em seu entender, provam que Sócrates, através de Santos Silva, financiava a ex-mulher – e que esta tinha noção das movimentações de capital feitas tendo-a como beneficiária ou intermediária:

Sofia Fava vendeu um apartamento situado em Lisboa a uma sociedade chamada Gigabeira por 400 mil euros. A Gigabeira tem como sócia a empresa Constrope, que, por sua vez, é participada pela sociedade Taggia XIV, que tem como acionista Santos Silva. O juiz Carlos Alexandre diagnostica: “Verifica-se ainda que o preço pago pela Gigabeira foi muito superior ao preço praticado em outras fracções do mesmo imóvel.”

a uma sociedade chamada Gigabeira por 400 mil euros. A Gigabeira tem como sócia a empresa Constrope, que, por sua vez, é participada pela sociedade Taggia XIV, que tem como acionista Santos Silva. O juiz Carlos Alexandre diagnostica: “Verifica-se ainda que o preço pago pela Gigabeira foi muito superior ao preço praticado em outras fracções do mesmo imóvel.” Outra situação em que Sofia Fava surge como protagonista diz respeito à aquisição do Monte das Margaridas, em Montemor-o-Novo. Escriturada a 3 de Fevereiro de 2012, a propriedade custou 760 mil euros, resultantes de um financiamento do BES que teve como fiador Carlos Santos Silva – o mesmo que posteriormente se responsabilizou até Junho de 2014, através da sua empresa XLM, a pagar uma avença mensal a Sofia Fava com um valor pouco superior ao crédito em questão: 4.650 euros. Depois dessa data tudo mudou – ou melhor, quase tudo. Diz o despacho de Carlos Alexandre: “Tais pagamentos de favor pela XLM prolongaram-se até final de Junho de 2014, data em que, face a notícias vindas a público sobre as investigações pendentes e face a novas formas de transferir fundos para a esfera de José Pinto de Sousa, os mesmos procedimentos se alteraram, chegando a verificar-se algum atraso no pagamento.”

Desde Julho de 2014, o provisionamento da conta de Sofia Fava passou a ser feito a partir da conta de Manuel Falcão Reis, o seu companheiro. Mas, segundo o MP, quem financiava Manuel Reis era Santos Silva, que continuaria assim a “alimentar” indiretamente a ex--mulher de Sócrates. Conclusão: “Mais uma vez, verifica-se que a aquisição do imóvel Monte das Margaridas é feito à custa de fundos que vêm diretamente da esfera de José Pinto de Sousa ou que estão sob o controlo formal de Carlos Silva, mas que na realidade pertencem ao primeiro.”

Em declarações ao Ministério Público, Sofia Fava, afirmou não ter dúvidas de que o dinheiro de Carlos Santos Silva efetivamente pertence ao empresário e não a José Sócrates. O Ministério Público, por seu lado, concluiu exatamente o contrário: que o dinheiro e o património de que Sofia Fava usufruiu eram, na verdade, do ex-Primeiro-Ministro.

SANDRA SANTOS, A MULHER-MISTÉRIO

Um dos diálogos mais tensos entre Sócrates e o Ministério Público ocorreu numa quinta-feira, a 27 de Maio de 2015. O ex-Primeiro-Ministro estava preso preventivamente há seis meses. Antes de sair da cadeia de Évora para enfrentar, num interrogatório explosivo, o procurador Rosário Teixeira e o inspetor tributário Paulo Silva, disse a João de Sousa, um dos detidos com quem se dava melhor na prisão, que seria especialmente duro com os que lhe retiraram a liberdade.

A dada altura do interrogatório no campus da justiça, Sócrates antecipou-se a Rosário Teixeira e a Paulo Silva, e abordou um tema até então tabú: Sandra Santos, uma cabo-verdiana de 40 anos que aparecia profusamente em escutas com o socialista e com Carlos Santos Silva, combinando encontros em Lisboa e em Paris, e com quem, no entender do Ministério Público, Sócrates mantinha uma relação que ia para lá da mera amizade, tendo-lhe transferido, através de Santos Silva, mais de uma centena de milhar de euros ao longo de vários anos, para financiar as suas viagens e o seu estilo de vida na Suíça, onde vivia com o seu filho.

– Não querem falar sobre a senhora Sandra Santos? Deve ser mais excitante...

Impávido, Paulo Silva devolveu a José Sócrates a questão da alegada excitação que o tema lhe provocaria...

– Não sei, o senhor engenheiro dirá.

Sócrates impacientou-se.

– Não sabe? Sabe, sabe! Sabe, sabe!!! (...) A Sandra Santos é amiga do Carlos Santos Silva. Amiga do Carlos Santos Silva!

Paulo Silva manteve a calma.

– Sim, e então?

Sócrates passou de novo ao ataque.

– Mas isto entra‐vos por um ouvido a sai‐lhes por outro, não interessa nada! (...) Sabe porquê? Sabe porquê? Porque vocês em todos os vossos escri‐tos o que vocês insinuam é que eu, é que o Carlos pagava deslocações para favores sexuais. Isso, pá, oh, por amor de Deus, pá! Por amor de Deus!

O ex-primeiro-ministro estava imparável. Continuou.

– Não é o que está aí insinuado? Insinuado e de que forma, pá, escandalosa! Não é verdade! A Sandra é amiga do Carlos Santos Silva, eu acho aliás que a conheci através do Carlos Santos Silva há mais de, sei lá, vinte anos! A Sandra, há uns anos atrás, teve vários desgostos na vida dela, ficou sem emprego, teve um filho, tentou suicidar‐se e pediu‐nos ajuda, muita vez pedia‐me a mim como pedia ao Carlos, vocês têm esses relatos todos na devassidão que fizeram da minha vida, têm esses relatos! Claro que eu não lhe podia pagar porque não tenho dinheiro. O Carlos é que pagava sempre porque tem dinheiro, mas pagava porque queria pagar.

Paulo Silva não confirmou nem desmentiu.

– Certo...

– Não, não, não é isso que vocês dizem! Vocês dizem é que não, não, ela vinha para se encontrar consigo, favores sexuais, não é, e o Carlos pagava!

O desmentido finalmente surgiu através do inspetor tributário.

– O senhor engenheiro é que está a dizer isso...

Sócrates não recuou...

– Desculpe, isso é o que vocês afirmam! Quando eu digo vocês...

A conversa tornou-se então confusa, desconexa, com diálogos cruzados. A tensão era notória. Rosário Teixeira:

– O que está aqui em causa é...

Sócrates:

– É, senhor procurador, não sei se o senhor afirma...

Paulo Silva:

– Eu não afirmo isso.

Sócrates de novo:

– Que é utilizado aquele dinheiro segundo eu percebi, se eu não percebi bem...

Rosário:

– Percebeu bem, que lhe pagavam as viagens...

Sócrates:

– Ah pois, pois. E ela vinha‐se encontrar consigo. Não senhor procurador, não vinha. Ela vinha para visitar a família, para estar com os amigos, e pediu‐nos ajuda – a mim e ao Carlos.

Rosário tentou detalhar...

– E é por isso que ela...

... mas Sócrates não estava para isso, decretando o fim da conversa.

- Eh pá, a mesquinhez a que vocês chegam nas imputações! Bom, mas enfim, eu prometo agora calar‐me. Mais alguma pergunta?

O MP acredita que todo o dinheiro – cerca de 101 mil euros - transferido por Carlos Santos Silva para Sandra Santos é, na realidade, propriedade de José Sócrates. E sustenta a sua convicção fundamentalmente em escutas telefónicas efetuadas.

Uma delas, datada de 29 de outubro de 2014, é considerada fundamental: durante uma conversa com José Sócrates com o objetivo de organizar mais uma visita de Sandra Santos a Lisboa, Lígia Correia, amiga de José Sócrates (com quem viria posteriormente a viver) que tratava frequentemente da logística das deslocações, agastada com os elevados montantes que Sandra Santos exigia, disse a Sócrates: “O dinheiro é teu, tu fazes como entenderes (...) tu mandaste-lhe o dinheiro, já no mês passado mandaste aquele dinheiro todo e ela já não tem.” Inquieto com as liberdades orais de Lígia ao telefone, Sócrates, que sempre preferiu tratar Sandra Santos durante as conversas telefónicas por “senhor S”, repreendeu-a, dizendo-lhe que não precisava de falar com tantos detalhes. A preocupação do ex-primeiro-ministro é encarada pelo Ministério Público como um sinal de que o que Sócrates verdadeiramente queria esconder era o facto de, alegadamente, ser o verdadeiro proprietário do dinheiro utilizado para, durante sete anos, sustentar Sandra Santos.

FERNANDA CÂNCIO, A TESTEMUNHA DOS GASTOS MILIONÁRIOS

A jornalista do Diário de Notícias nunca foi suspeita da prática de qualquer crime na Operação Marquês, em que depôs unicamente como testemunha por, na qualidade de namorada do ex-primeiro-ministro, ter testemunhado várias situações em que José Sócrates gastou montantes pecuniários significativos. Aconteceu em férias que ambos passaram juntos, por exemplo. Mas não só.

Uma conversa telefónica que a repórter manteve em fevereiro de 2014 com José Sócrates sobre a eventual compra de uma casa de 2,2 milhões de euros no centro de Lisboa foi considerada por Rosário Teixeira como um indício claro de que José Sócrates possuía uma fortuna. Nela, Câncio tenta convencer o então namorado a visitor uma casa de luxo.

Disse Câncio:

– Aquela merda é cara como o raio. E diz que se pode visitar. Não queres ir lá?

Sócrates resistiu.

- Não.

Fernanda insistiu.

- Porquê?

– Porque não. Isso é o primeiro passo para aparecer no Correio da Manhã. Aquilo é um buraco. Para um gajo ir para lá, é o cu do mundo.

Fernanda reagiu intempestivamente...

– Buraco és tu! Tu é que és um buraco!!!

A dada altura, estava o processo em investigação, quando dois jornalistas do Correio da Manhã (Sónia Trigueirão e Sérgio Azenha), solicitaram formalmente a Rosário Teixeira que Câncio fosse constituída arguida no processo. E apresentavam aqueles que, em seu entender, configuravam indícios de cumplicidade da jornanista com as práticas alegadamente criminosas de José Sócrates:

Uma SMS enviada por Fernanda Câncio a Sócrates no dia 22 de setembro de 2013, onde a jornalista diz: «Mas vais ver q ela volta para ti, não há assim tantos ex-PM com massa e casa em Paris disponíveis»;

Um diálogo ocorrido a 2 de fevereiro de 2014, onde Fernanda solicita a Sócrates o pagamento de um computador no valor de 1349 €, pedindo também os dados do seu cartão de crédito;

O facto de, a 24 de junho de 2014, Fernanda Câncio ter dito a Sócrates que Dina lhe enviou um e-mail com a descrição de uma casa, tendo ambos discutido a possibilidade de adquirir uma quinta que Fernanda e Dina julgam ser um bom investimento;

Uma conversa telefónica, verificada a 1 de julho de 2014, em que a jornalista diz a José Sócrates que este perdeu a compra de uma casa no Algarve, ao que ele pergunta se o proprietário não a quer vender a si e a Carlos Santos Silva;

O facto de, a 22 de fevereiro de 2014, Câncio ter enviado uma SMS a José Sócrates sugerindo uma visita de ambos a um aparta- mento de luxo próximo do Largo do Caldas. Segundo o requeri- mento, Fernanda «só poderia sugerir a aquisição do referido imóvel se tivesse conhecimento direto de que José Sócrates dispunha de uma elevada capacidade financeira para o adquirir». Nesse mesmo dia, continua o requerimento que remeteram ao processo, José Sócrates recusou visitar a casa com medo de que a informação chegasse ao CM. Não tendo Câncio questionado o sentido ou alcance desta afirmação, “tudo leva a crer que está ao corrente da proveniência (ilícita) dos fundos que iria utilizar para aquisição daquele imóvel”, conclui o requerimento;

A circunstância de José Sócrates ter manifestado a Fernanda Câncio o interesse em adquirir um imóvel em Tavira por 900 000 €;

O facto de Fernanda Câncio ter acompanhado Sócrates em várias viagens ao estrangeiro: Veneza em 2008/2009, Menorca no verão de 2009 e Formentera no verão de 2014. Afirmam os jornalistas do CM: “Na viagem a Formentera, foi intercetada uma conversa de Fernanda Câncio de onde resulta que esta tratou e programou os detalhes da viagem em conjunto e que essa estada custou mais de 18 000 € tendo a fatura sido paga por Carlos Santos Silva”;

Finalmente, numa conversa escutada entre a mulher de Santos Silva, Inês do Rosário, e Fernanda Câncio, a primeira insulta Sócrates, apontando-o como «a cruz» da sua família «até ao fim», ao que Fernanda Câncio responde que «não precisava de ser tão pesada». Noutra conversa com Câncio, Inês do Rosário afirmou que tinha avisado o marido de que «era um erro ir de férias com José Sócra- tes», que este «deu cabo da vida de todos».

O Ministério Público não foi sensível aos argumentos dos jornalistas. Quanto a Câncio, respondeu a todas as imputações num longo artigo que fez a capa da revista Visão no dia 11 de maior de 2016.

Sobre a SMS em que afirma não existirem assim tantos ex‐PM com massa e casa em Paris:

– «Que diz esta SMS? Segundo o CM indicia que eu sabia que JS é ex‐primeiro‐ministro, que tem uma casa de propriedade sua em Paris e que tem (muito) dinheiro. É interessante, por este exemplo, aferir do critério usado para classificar as comunicações escutadas como tendo ou não relevo para o processo. Sucede que o que está na SMS é que JS tinha uma casa em Paris, tanto quanto eu sabia, arrendada. Sabem o MP e o juiz e por conseguinte o CM que nunca houve qualquer con‐versa sobre esse apartamento em que eu tivesse tomado parte (à exceção da já citada), sabem o MP e o juiz, e por conseguinte o CM, que nunca o vi.» (...)

– «Conheço pessoalmente JS desde 1998 e conheci a partir de 2000 a família alargada, verificando que todos viviam com desafogo. Além disso, pelo menos desde que JS ascendeu a secretário‐geral do PS, em 2004, saíram regularmente notícias nas quais se falava da fortuna da família, se dizia que a mãe é rica, que o avô era rico, que os tios são ricos, que o próprio possuía um apartamento “de luxo” no centro de Lisboa, que passava férias “de luxo”, que se vestia em boas lojas, etc. Enfim, que tem “massa”. Mas uma SMS minha na qual, com ironia, refiro essa “massa” tem “relevância criminal”. E pode mesmo “provar” que eu “sabia”. Num processo com pelo menos ano e meio de escutas, para “provar” que eu “sabia”, desencantaram isto.»

Sobre a alegada intenção de compra de um apartamento no Largo do Caldas:

– "(...) nada há nessa escuta – ou em qualquer outra – que comprove a teoria de que eu queria comprar um apartamento, ou outro imóvel qualquer, com JS. Infere‐se, pelos vistos, que falar de um apartamento a alguém como sendo interessante implica que o quero comprar com essa pessoa. Mas há mais: infere‐se igualmente que se eu punha a hipótese de JS comprar um apartamento de 2,2 milhões tinha de saber 'a origem do dinheiro´. Ora, além de crer que JS tinha acesso a dinheiro de família, e de este me ter dito que auferia um alto salário como consultor, ele era proprietário de um apartamento que valia perto de um milhão de euros (de acordo com o noticiado, foi vendido em 2015 por 750 mil euros). E ele informara‐me de que a mãe, ao mudar‐se, lhe dera o apartamento dela, ou o correspondente em dinheiro. Não era, pois, extraordinário que pudesse pagar o que estava a ser pedido pelo apartamento do Caldas. Acresce um detalhe que tanto MP como CM conhecem mas que o CM nunca revelou (pelo contrário, já que o apartamento “se mudou” para o Chiado): o imóvel fica em frente à minha casa. É por assim ser que eu sabia o preço: liguei a perguntar, por curiosidade, quando o edifício foi reabilitado e os andares ficaram à venda; mas, ao contrário do que se quer fazer crer, nunca sequer o visitei.

Por outro lado se, como o CM afirma, eu queria comprar um apartamento com JS, e se este, na escuta citada, diz não estar interessado no do Caldas, onde estão os outros imóveis que propus para essa compra em conjunto?"

Sobre a intenção de compra de uma casa em Tavira:

– "A propriedade de Tavira que visitei com JS, e cujo arrendamento e venda está a cargo de uma amiga minha, agente imobiliária (Dina). Tendo passado lá um fim de semana, ele achou‐a interessante e falou dela a Carlos Santos Silva. Como havia duas casas, uma grande e uma pequena, foi‐me dito que podiam comprar e dividi‐la. A casa pequena custava, se bem me lembro, 360 mil euros. Não me pareceu fora do alcance de José Sócrates."

Sobre as férias que passou com o ex‐PM:

– "Quando alguém próximo faz um convite para passar férias não é costume perguntar se é a pessoa que nos convida que paga ou se é outra, como quando nos convidam para jantar ou almoçar não perguntamos de onde vem o dinheiro. Quem aufere uma avença de 25 mil euros/mês (que JS me disse receber) pode decerto pagar a meias um aluguer como o da casa em Formentera, e cujo valor eu conhecia. Não me passou pela cabeça outro raciocínio."

Sobre o computador que José Sócrates lhe ofereceu:

– "Ofereceu‐mo pelo meu aniversário. Encomendei‐o no site da Apple, daí a necessidade dos elementos do cartão de crédito. Sublinhe‐se: de acordo com a teoria do CM e CMTV, eu saberia 'da origem ilícita dos fundos a que JS tinha acesso' e da circulação de dinheiro vivo entre CSS e JS, mas pedi a JS o número do cartão de crédito para fazer uma compra online e portanto completamente exposta. Faz sentido?"

Finalmente, sobre o facto de o seu desconhecimento do que se passava à sua volta provocar dúvidas:

– "(...) É natural que haja gente bem‐intencionada e séria que se questiona sobre como podia eu 'não saber'. Aquilo que tem sido publicado e que o próprio José Sócrates (assim como Carlos Santos Silva) já assumiu faz difícil perceber que alguém tido como próximo não tivesse pelo menos estranhado o que se revelou ser a disponibilidade financeira deste graças ao 'dinheiro vivo' proveniente de Carlos Santos Silva. Mas, como já disse, não só nunca me foi mostrada essa circulação de dinheiro como durante os períodos em que convivi com José Sócrates nunca o vi efetuar compras de valores incompatíveis com aquilo que eu acreditava – já expliquei porquê – ser a sua capacidade económica. Nunca assisti a gastos que me parecessem ir além das possibilidades de alguém com acesso a um confortável pecúlio familiar e um bom ordenado. Almoçar e jantar em bons restaurantes, vestir‐se em boas lojas, sim; mas conheço imensas pessoas que frequentam os mesmos restaurantes e compram nas mesmas lojas. Não sou aliás a única pessoa do círculo de José Sócrates a ter ficado surpresa com aquilo que se publica como sendo os seus gastos (...) Se fizesse ideia da relação pecuniária entre CSS e JS teria feito perguntas por considerar a situação, no mínimo, eticamente reprovável."

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