A ERC no mundo dos viriatos

03-06-2020
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Edição do Dia01 FEV 2020

A ERC no mundo dos viriatosQuando dirigentes partidários partilham alegadas "notícias" de sites obscuros como "verdades inconvenientes" entrámos em emergência. Que faz o regulador, porém? Legitima a desinformação e a propaganda.Fernanda Câncio01 Fevereiro 2020 — 00:25FacebookTwitterPartilharTópicosFernanda CâncioOpiniãoEntidade Reguladora para a Comunicação SocialJornalismofake newsRelacionadosfernanda câncioA santa casa do jornalismoA 9 de janeiro, o deputado do Chega partilhou no seu Facebook um texto intitulado "'Rapazes ciganos' alegadamente responsáveis pelo assassínio do cabo-verdiano Luís Giovani".O texto, publicado no site denominado "Notícias Viriato", não apresentava qualquer evidência da veracidade do que afirmava, limitando-se a citar um blogue, o qual por sua vez nada invocava como factualidade verificada. Como jurista e alguém com o mínimo de literacia, a André Ventura não pode passar despercebido que aquilo que partilhou não merece a mínima credibilidade e poderá até constituir crime, por, nos termos do artigo 240.º do Código Penal, difamatório em relação a um grupo "por causa da sua raça". Mas tal não o impediu de escrever: "Ui, agora é que a Joacine e o BE vão ter de arranjar um buraco bem fundo para se esconderem. Quando o racismo é desculpa para tudo dá sempre mau resultado..."O post de Ventura, que nem teve a precaução mínima de dizer "se isto for verdade", teve 1300 likes e 377 partilhas. Um dos comentários é de João Tilly, um professor do ensino secundário e dirigente do Chega que também ele não hesita em dar como verdadeira a imputação: "Vamos lá a ver como é que os media vão gerir isto. Devem estar completamente aflitos..." A ideia, claro, é de que os media, entendidos aqui como a "comunicação social tradicional", estariam a escamotear a "verdade", ao não imputar aos tais "rapazes ciganos" a morte do jovem.Fechar
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SubscreverApesar de a 17 de janeiro terem sido detidos cinco suspeitos da morte de Giovani, afirmando a Polícia Judiciária taxativamente não se tratar de "um grupo de ciganos" (a identidade dos detidos foi entretanto revelada pelos media, a começar pelo Correio da Manhã e pela CMTV, jornal e canal da "comunicação social tradicional" onde Ventura é comentador residente), o deputado não apagou o post nem lhe fez qualquer alteração. Olhando para o seu mural também não encontramos qualquer pedido de desculpas pela partilha da mentira. Concluímos pois que para este deputado, que costuma autoanunciar-se como "aquele que diz as verdades" e tem como foto de capa no Facebook a frase "ninguém nos vai calar", acusar falsamente de homicídio um grupo de pessoas com base apenas na sua pertença étnica é algo que lhe merece difusão; já a verdade não interessa para nada.Não, não é uma surpresa, apesar de ser repugnante - ninguém poderá neste momento negar que André Ventura age e fala como um racista (o que é realmente, se um racista "verdadeiro" ou apenas alguém que, enquanto nega a sua existência, usa o racismo para ganhar tração, só ele sabe, e não importa). Mas o ponto aqui não é Ventura; é a forma como as chamadas fake news, ou desinformação, são difundidas e caucionadas por aqueles a quem essas fake news e desinformação interessam e favorecem, contribuindo para criar os chamados "factos alternativos" cunhados pela administração Trump: as versões falsas da realidade que servem uma determinada narrativa - narrativa essa que passa também, como já vimos, pela certificação de que não se pode acreditar nos media tradicionais e que há uma espécie de conspiração para esconder "as verdades".Criado, a crer no que nele se afirma, por um jovem de 20 anos de Torres Vedras, o Notícias Viriato, lançado a 10 de junho com um caderno de encargos que o coloca na direita nacionalista da "portugalidade" e o proclama combatente contra "a pobre e manietada oferta informativa institucional nacional", é caracterizado pelo coordenador do Medialab do ISCTE, o sociólogo Gustavo Cardoso, como "um site de propaganda". O que tem, diga-se, todo o direito a ser; há inúmeros sites, blogues, publicações e até rádios e TV (é pensar nas dos clubes de futebol) propagandísticos e daí não vem mal ao mundo desde que não infrinjam a lei. O problema surge quando se querem fazer passar por aquilo que não são: sites de notícias, ou seja, de informação jornalística. E o Notícias Viriato, quiçá até pela ingenuidade e a ignorância dos seus autores, iniciou a sua atividade apostando nessa confusão, algo de resto muito comum em sites de desinformação, que tendem a apresentar-se como, lá está, "os que dizem as verdades".As falhas na lei não justificam que a ERC se limite a exigir emolumentos e um arremedo de estatuto editorial a qualquer porcaria que apanhe do chão - vide, em que tropece na net.A proliferação deste tipo de sites é reconhecida com preocupação num relatório de abril de 2019 da Entidade Reguladora para a Comunicação Social sobre desinformação, assim como numa deliberação desta, no mesmo mês, sobre um desses sites - deliberação em que conclui não ter como regulador jurisdição sobre eles, decidindo enviar o caso para o Ministério Público. Ainda assim, a ERC assume ser seu dever "proteger os cidadãos destes conteúdos que, aparentando ser notícias, não o sejam".Essa proteção, depreende-se, passa pela identificação e denúncia de tais conteúdos, seus criadores e difusores. Daí que não possa deixar de surgir como escândalo que a mesma entidade tenha proposto - aliás imposto será a expressão correta, já que ameaçou com coimas - ao site Notícias Viriato o registo como "publicação de informação geral", apondo-lhe assim o seu selo de credibilidade e a certificação (só pode ser essa a interpretação) de que não se trata de um propagador de desinformação. Fez aliás o mesmo a um outro site, o Bombeiros24, que a própria ERC já mencionara, na citada deliberação de abril de 2019, como "um conhecido site de desinformação".Questionada sobre estes factos, a ERC refugiou-se na lei. Mas esta descreve publicações informativas como aquelas "que visem predominantemente a difusão de informações ou notícias". E embora não explicite o que é "informação" exige, para o registo de uma publicação desse tipo, que esta garanta no seu estatuto editorial respeitar os valores e a ética jornalística. Aliás, logo no artigo 2.º da Lei de Imprensa estatui-se que "o direito dos cidadãos a serem informados" é garantido pelo respeito "pelas normas deontológicas no exercício da atividade jornalística" e pelo "acesso à Alta Autoridade para a Comunicação Social [hoje ERC] para salvaguarda da isenção e do rigor informativos".A lei não impõe, e mal, que haja jornalistas numa publicação para que ela seja considerada informativa mas todas as normas nela constantes implicam que para ser informativa a publicação tem de observar as normas deontológicas do jornalismo, que passam por "isenção e rigor informativos" - isenção e rigor que como se vê são, supostamente, salvaguardados pela ERC.É certo que não basta haver pessoas munidas com carteira de jornalista para que uma publicação, rádio ou TV observe as normas deontológicas do jornalismo - basta dizer que a lei em vigor, inacreditavelmente, permite que haja jornalistas a trabalhar em publicações doutrinárias como o Avante! ou a Benfica TV, e que há um jornal diário e um canal taxados de informativos que se especializam em violar todas as regras. Mas as falhas na lei não justificam que o regulador se limite a exigir emolumentos e um arremedo de estatuto editorial a qualquer porcaria que apanhe do chão - vide, em que tropece na net.O NV ostentava o registo na ERC como "publicação de informação" quando publicou o infame texto sobre "os rapazes ciganos". O que a torna responsável pela credibilização de algo de tão enorme gravidade, demonstrando que enquanto por um lado produz reflexões muito certeiras sobre o risco que a desinformação constitui para a democracia, pelo outro afadiga-se em legitimar fautores dessa mesma desinformação - ou seja, é cúmplice daquilo que deveria combater.JornalistaPartilharPartilhar no FacebookTwitterEmailMessengerWhatsappPartilharA ERC no mundo dos viriatosFacebookTwitterPartilhar

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A ERC no mundo dos viriatosQuando dirigentes partidários partilham alegadas "notícias" de sites obscuros como "verdades inconvenientes" entrámos em emergência. Que faz o regulador, porém? Legitima a desinformação e a propaganda.Fernanda Câncio01 Fevereiro 2020 — 00:25FacebookTwitterPartilharTópicosFernanda CâncioOpiniãoEntidade Reguladora para a Comunicação SocialJornalismofake newsRelacionadosfernanda câncioA santa casa do jornalismoA 9 de janeiro, o deputado do Chega partilhou no seu Facebook um texto intitulado "'Rapazes ciganos' alegadamente responsáveis pelo assassínio do cabo-verdiano Luís Giovani".O texto, publicado no site denominado "Notícias Viriato", não apresentava qualquer evidência da veracidade do que afirmava, limitando-se a citar um blogue, o qual por sua vez nada invocava como factualidade verificada. Como jurista e alguém com o mínimo de literacia, a André Ventura não pode passar despercebido que aquilo que partilhou não merece a mínima credibilidade e poderá até constituir crime, por, nos termos do artigo 240.º do Código Penal, difamatório em relação a um grupo "por causa da sua raça". Mas tal não o impediu de escrever: "Ui, agora é que a Joacine e o BE vão ter de arranjar um buraco bem fundo para se esconderem. Quando o racismo é desculpa para tudo dá sempre mau resultado..."O post de Ventura, que nem teve a precaução mínima de dizer "se isto for verdade", teve 1300 likes e 377 partilhas. Um dos comentários é de João Tilly, um professor do ensino secundário e dirigente do Chega que também ele não hesita em dar como verdadeira a imputação: "Vamos lá a ver como é que os media vão gerir isto. Devem estar completamente aflitos..." A ideia, claro, é de que os media, entendidos aqui como a "comunicação social tradicional", estariam a escamotear a "verdade", ao não imputar aos tais "rapazes ciganos" a morte do jovem.Fechar
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Concluímos pois que para este deputado, que costuma autoanunciar-se como "aquele que diz as verdades" e tem como foto de capa no Facebook a frase "ninguém nos vai calar", acusar falsamente de homicídio um grupo de pessoas com base apenas na sua pertença étnica é algo que lhe merece difusão; já a verdade não interessa para nada.Não, não é uma surpresa, apesar de ser repugnante - ninguém poderá neste momento negar que André Ventura age e fala como um racista (o que é realmente, se um racista "verdadeiro" ou apenas alguém que, enquanto nega a sua existência, usa o racismo para ganhar tração, só ele sabe, e não importa). Mas o ponto aqui não é Ventura; é a forma como as chamadas fake news, ou desinformação, são difundidas e caucionadas por aqueles a quem essas fake news e desinformação interessam e favorecem, contribuindo para criar os chamados "factos alternativos" cunhados pela administração Trump: as versões falsas da realidade que servem uma determinada narrativa - narrativa essa que passa também, como já vimos, pela certificação de que não se pode acreditar nos media tradicionais e que há uma espécie de conspiração para esconder "as verdades".Criado, a crer no que nele se afirma, por um jovem de 20 anos de Torres Vedras, o Notícias Viriato, lançado a 10 de junho com um caderno de encargos que o coloca na direita nacionalista da "portugalidade" e o proclama combatente contra "a pobre e manietada oferta informativa institucional nacional", é caracterizado pelo coordenador do Medialab do ISCTE, o sociólogo Gustavo Cardoso, como "um site de propaganda". O que tem, diga-se, todo o direito a ser; há inúmeros sites, blogues, publicações e até rádios e TV (é pensar nas dos clubes de futebol) propagandísticos e daí não vem mal ao mundo desde que não infrinjam a lei. O problema surge quando se querem fazer passar por aquilo que não são: sites de notícias, ou seja, de informação jornalística. E o Notícias Viriato, quiçá até pela ingenuidade e a ignorância dos seus autores, iniciou a sua atividade apostando nessa confusão, algo de resto muito comum em sites de desinformação, que tendem a apresentar-se como, lá está, "os que dizem as verdades".As falhas na lei não justificam que a ERC se limite a exigir emolumentos e um arremedo de estatuto editorial a qualquer porcaria que apanhe do chão - vide, em que tropece na net.A proliferação deste tipo de sites é reconhecida com preocupação num relatório de abril de 2019 da Entidade Reguladora para a Comunicação Social sobre desinformação, assim como numa deliberação desta, no mesmo mês, sobre um desses sites - deliberação em que conclui não ter como regulador jurisdição sobre eles, decidindo enviar o caso para o Ministério Público. Ainda assim, a ERC assume ser seu dever "proteger os cidadãos destes conteúdos que, aparentando ser notícias, não o sejam".Essa proteção, depreende-se, passa pela identificação e denúncia de tais conteúdos, seus criadores e difusores. Daí que não possa deixar de surgir como escândalo que a mesma entidade tenha proposto - aliás imposto será a expressão correta, já que ameaçou com coimas - ao site Notícias Viriato o registo como "publicação de informação geral", apondo-lhe assim o seu selo de credibilidade e a certificação (só pode ser essa a interpretação) de que não se trata de um propagador de desinformação. Fez aliás o mesmo a um outro site, o Bombeiros24, que a própria ERC já mencionara, na citada deliberação de abril de 2019, como "um conhecido site de desinformação".Questionada sobre estes factos, a ERC refugiou-se na lei. Mas esta descreve publicações informativas como aquelas "que visem predominantemente a difusão de informações ou notícias". E embora não explicite o que é "informação" exige, para o registo de uma publicação desse tipo, que esta garanta no seu estatuto editorial respeitar os valores e a ética jornalística. Aliás, logo no artigo 2.º da Lei de Imprensa estatui-se que "o direito dos cidadãos a serem informados" é garantido pelo respeito "pelas normas deontológicas no exercício da atividade jornalística" e pelo "acesso à Alta Autoridade para a Comunicação Social [hoje ERC] para salvaguarda da isenção e do rigor informativos".A lei não impõe, e mal, que haja jornalistas numa publicação para que ela seja considerada informativa mas todas as normas nela constantes implicam que para ser informativa a publicação tem de observar as normas deontológicas do jornalismo, que passam por "isenção e rigor informativos" - isenção e rigor que como se vê são, supostamente, salvaguardados pela ERC.É certo que não basta haver pessoas munidas com carteira de jornalista para que uma publicação, rádio ou TV observe as normas deontológicas do jornalismo - basta dizer que a lei em vigor, inacreditavelmente, permite que haja jornalistas a trabalhar em publicações doutrinárias como o Avante! ou a Benfica TV, e que há um jornal diário e um canal taxados de informativos que se especializam em violar todas as regras. Mas as falhas na lei não justificam que o regulador se limite a exigir emolumentos e um arremedo de estatuto editorial a qualquer porcaria que apanhe do chão - vide, em que tropece na net.O NV ostentava o registo na ERC como "publicação de informação" quando publicou o infame texto sobre "os rapazes ciganos". O que a torna responsável pela credibilização de algo de tão enorme gravidade, demonstrando que enquanto por um lado produz reflexões muito certeiras sobre o risco que a desinformação constitui para a democracia, pelo outro afadiga-se em legitimar fautores dessa mesma desinformação - ou seja, é cúmplice daquilo que deveria combater.JornalistaPartilharPartilhar no FacebookTwitterEmailMessengerWhatsappPartilharA ERC no mundo dos viriatosFacebookTwitterPartilhar

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