Joacine, Beatriz e Romualda. As três mulheres que trazem a diversidade ao Parlamento

08-10-2019
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Há mais diversidade no Parlamento. Foram eleitas 89 deputadas mulheres, mais 14 do que nas últimas eleições. Dessas mulheres, três são negras e vindas de países africanos. E mais do que isso: são ativistas. Há muito que fazem ouvir a sua voz reivindicando mais igualdade e defendendo os direitos das minorias e, agora, finalmente, vão poder falar na Assembleia da República. Quem são elas?

Joacine Katar Moreira, Livre

Joacine Katar Moreira começou a fazer história no momento em que o seu nome foi anunciado como candidata do Livre: esta era a primeira vez que uma pessoa negra era cabeça de lista por um partido em eleições legislativas em Portugal. Nascida na Guiné-Bissau, há 37 anos, Joacine Katar Moreira veio para Portugal com oito anos, enviada pela família para escapar à turbulência no seu país, como contou numa entrevista ao DN.

Estudou num colégio de freiras, onde era conhecida pela "chica ente", porque era tudo o que acabava em "ente" - impertinente, insolente, inconsequente - mas onde também aprendeu que estudar poderia ser uma arma poderosa. Apesar das dificuldades financeiras da família, Joacine licenciou-se em História Moderna e Contemporânea, trabalhando sempre, quer fazendo promoções em supermercados, quer limpando quartos em hotéis: "Eu autossustentava-me, nunca pedi nada aos meus pais. Pelo contrário."

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Fez depois o mestrado em Estudos do Desenvolvimento e o doutoramento em Estudos Africanos, no ISCTE, onde é investigadora do Centro de Estudos Internacionais, tendo desenvolvido um olhar crítico sobre o colonialismo e o pós-colonialismo: "Esta precisa de ser a época de reconhecimento da época histórica do colonialismo e de todas as suas violências e todas as suas maravilhas, que também as houve, mas não para os colonizados nem para os seus descendentes", defende. "Deveríamos reconhecer, aceitar e encontrar maneiras de nos relacionarmos com isto para que a história não se volte a repetir. E para que toda a gente tenha a memória do que o colonialismo efetivamente era. É esta falta de memória que pode alimentar as emergências dos fascismos."

Neste percurso, Joacine Katar Moreira foi-se envolvendo em associações de defesa da comunidade de imigrantes africanos e afro-descendentes. Em outubro de 2018, foi uma das fundadoras do INMUNE - Instituto da Mulher Negra em Portugal: "O INMUNE nasce para acabar com os estereótipos sobre as mulheres negras. O nosso objetivo é que isto seja usado em benefício das mulheres negras em Portugal. E isso significa, basicamente, beneficiar as famílias, os filhos, as filhas, significa envolver os homens. É acabar com a invisibilidade e o silenciamento que as mulheres negras habitualmente têm. Nós somos as herdeiras de uma história imensa que foi uma história de violência e de exploração: com a escravatura, com o colonialismo, enquanto mulheres imigrantes e, hoje em dia, enquanto descendentes continuamos a ser olhadas como pessoas estrangeiras".

Era já uma ativista no terreno quando Rui Tavares a desafiou a ser candidata pelo Livre, há quatro anos. Na altura estava em 22º lugar e ninguém reparou nela. Em maio, esteve ao lado de Tavares nas eleições europeias. Escolhida através de primárias abertas como candidata do Livre, tornou-se agora a primeira deputada do partido na Assembleia da República. "O meu objetivo primeiro foi mostrar que todos nós temos o direito e também a responsabilidade de contribuirmos para a sociedade", dizia ao DN. "É um exemplo não só para as pessoas de origem africana mas igualmente para todos os portugueses e portuguesas que tal como eu não são oriundos de uma família de elite financeira, intelectual, política. Isto é dar um sinal inequívoco de que há espaço para toda a gente. (...) Ainda é um início, não adianta entrarmos em euforia. Mas é um início absolutamente necessário."

Joacine Katar Moreira celebra a vitória © Sara Matos / Global Imagens

Durante a campanha eleitoral, mais do que as suas ideias políticas, tornou-se um assunto a gaguez da candidata. Já em agosto, na entrevista ao DN, Joacine Katar Moreira contava como depois do nascimento da filha, há três anos, começou a perceber "a urgência" de não esconder este seu problema: "Eu gaguejo quando falo. Isso não me impede de rigorosamente nada. Não posso continuar a esconder este facto e a substituir as palavras. (...) Não quero que a minha filha aprenda comigo a inibir-se e a esconder-se."

Durante a campanha, quando Ricardo Araújo Pereira lhe perguntou se a gaguez não poderia limitá-la enquanto deputada, Joacine respondeu: "Eu gaguejo quando falo mas não gaguejo quando penso. O que, efetivamente, é um risco enorme na assembleia são os indivíduos que estão lá e gaguejam quando pensam".

Beatriz Gomes Dias, Bloco de Esquerda

Beatriz Gomes Dias era a terceira candidata do Bloco de Esquerda em Lisboa. Nascida em Dakar, no Senegal, há 48 anos, mas oriunda de uma família guineense, licenciou-se em Biologia, foi professora do ensino secundário e é aluna do mestrado de Comunicação de Ciência na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

Beatriz Gomes Dias © Orlando Almeida/ Arquivo Global Imagens

"Olhando para trás vejo uma rapariga muito tímida. Queria passar despercebida, misturar-me, não chamar a atenção para o ser negra. Talvez porque estava sempre em minoria: vivia no centro da cidade [Lisboa], porque o meu pai, médico, quis escolher um contexto em que nos habituássemos ao discurso da maioria", contava ao DN há dois anos.

Entre ela e os pais notava uma diferença fundamental: "Era-lhes reconhecida nacionalidade portuguesa por terem nascido numa colónia e vindo para Portugal antes do 25 de abril. Mas na verdade não se sentem portugueses (...). Já a minha geração sente-se identitariamente portuguesa, e a seguinte ainda mais. Daí que ocuparem o seu "lugar de fala" seja cada vez mais natural, que surja uma série de associações e de reivindicações. Porque mesmo os negros da minha idade, que como eu acreditaram numa sociedade pós-racial, percebem que continuamos a ser alvo das mesmas observações que ouvíamos em crianças. Nada mudou, ou mudou muito pouco."

Ativista antirracismo, explicava, assim, como tomou consciência na necessidade de ter uma palavra a dizer na sociedade, tendo sido fundadora e dirigente da Associação de Afrodescendentes e membro do SOS Racismo, antes de entrar na política partidária: "Há uma discussão nova, uma consciencialização nova. A discussão sobre o que é ser negro e ser português não tinha ainda acontecido. Eu própria, há 20 anos, quando enquanto estudante universitária me inscrevi no SOS Racismo, não estava a pensar nisso de forma estruturada. A reivindicação do que é ser negro como categoria política surge-me nos últimos anos e está muito ligada à formação da associação. O centro da nossa ação é a reivindicação de que somos portugueses e negros. Que existimos, que queremos ser reconhecidos."

Romualda Fernandes, Partido Socialista

"A democracia requer, efetivamente, que estejamos todos representados e no caso dos afrodescendentes existia uma grande ausência, uma grande lacuna, nesta matéria. Porque se nós queremos trabalhar o sentimento de pertença, se nós queremos trabalhar a inclusão, temos que permitir que pessoas das diferentes origens possam estar exatamente no sítio onde se institucionaliza aquilo que é o normal", dizia Romualda Fernandes, no início de setembro, à Deutsche Welle.

Romualda Fernandes, em campanha com António Costa © Mário Cruz/ Lusa

Romualda Fernandes, nascida na Guiné Bissau há 65 anos, é jurista, especialista em Direito Internacional aplicado às Nacionalidades, Condição de Estrangeiros e Direito Humanitário. Em Portugal foi assessora em vários departamentos governamentais. Foi consultora da Organização Internacional para as Migrações e é vogal do Conselho Diretivo do Alto-Comissariado para as Migrações. Militante do Partido Socialista há 20 anos, ocupava o 19.º lugar na lista do PS pelo círculo da capital.

O seu objetivo como deputada, dizia à Deustche Welle, é "combater de forma firme as discriminações, fazer com que as diferenças que compõem a sociedade portuguesa sejam refletidas nos eleitos. É uma das matrizes também do Partido Socialista a luta contra as desigualdades e é nesse domínio que também abraço com muito agrado, [no sentido de] levar para o centro do debate das políticas públicas áreas como estas".

Há mais diversidade no Parlamento. Foram eleitas 89 deputadas mulheres, mais 14 do que nas últimas eleições. Dessas mulheres, três são negras e vindas de países africanos. E mais do que isso: são ativistas. Há muito que fazem ouvir a sua voz reivindicando mais igualdade e defendendo os direitos das minorias e, agora, finalmente, vão poder falar na Assembleia da República. Quem são elas?

Joacine Katar Moreira, Livre

Joacine Katar Moreira começou a fazer história no momento em que o seu nome foi anunciado como candidata do Livre: esta era a primeira vez que uma pessoa negra era cabeça de lista por um partido em eleições legislativas em Portugal. Nascida na Guiné-Bissau, há 37 anos, Joacine Katar Moreira veio para Portugal com oito anos, enviada pela família para escapar à turbulência no seu país, como contou numa entrevista ao DN.

Estudou num colégio de freiras, onde era conhecida pela "chica ente", porque era tudo o que acabava em "ente" - impertinente, insolente, inconsequente - mas onde também aprendeu que estudar poderia ser uma arma poderosa. Apesar das dificuldades financeiras da família, Joacine licenciou-se em História Moderna e Contemporânea, trabalhando sempre, quer fazendo promoções em supermercados, quer limpando quartos em hotéis: "Eu autossustentava-me, nunca pedi nada aos meus pais. Pelo contrário."

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Fez depois o mestrado em Estudos do Desenvolvimento e o doutoramento em Estudos Africanos, no ISCTE, onde é investigadora do Centro de Estudos Internacionais, tendo desenvolvido um olhar crítico sobre o colonialismo e o pós-colonialismo: "Esta precisa de ser a época de reconhecimento da época histórica do colonialismo e de todas as suas violências e todas as suas maravilhas, que também as houve, mas não para os colonizados nem para os seus descendentes", defende. "Deveríamos reconhecer, aceitar e encontrar maneiras de nos relacionarmos com isto para que a história não se volte a repetir. E para que toda a gente tenha a memória do que o colonialismo efetivamente era. É esta falta de memória que pode alimentar as emergências dos fascismos."

Neste percurso, Joacine Katar Moreira foi-se envolvendo em associações de defesa da comunidade de imigrantes africanos e afro-descendentes. Em outubro de 2018, foi uma das fundadoras do INMUNE - Instituto da Mulher Negra em Portugal: "O INMUNE nasce para acabar com os estereótipos sobre as mulheres negras. O nosso objetivo é que isto seja usado em benefício das mulheres negras em Portugal. E isso significa, basicamente, beneficiar as famílias, os filhos, as filhas, significa envolver os homens. É acabar com a invisibilidade e o silenciamento que as mulheres negras habitualmente têm. Nós somos as herdeiras de uma história imensa que foi uma história de violência e de exploração: com a escravatura, com o colonialismo, enquanto mulheres imigrantes e, hoje em dia, enquanto descendentes continuamos a ser olhadas como pessoas estrangeiras".

Era já uma ativista no terreno quando Rui Tavares a desafiou a ser candidata pelo Livre, há quatro anos. Na altura estava em 22º lugar e ninguém reparou nela. Em maio, esteve ao lado de Tavares nas eleições europeias. Escolhida através de primárias abertas como candidata do Livre, tornou-se agora a primeira deputada do partido na Assembleia da República. "O meu objetivo primeiro foi mostrar que todos nós temos o direito e também a responsabilidade de contribuirmos para a sociedade", dizia ao DN. "É um exemplo não só para as pessoas de origem africana mas igualmente para todos os portugueses e portuguesas que tal como eu não são oriundos de uma família de elite financeira, intelectual, política. Isto é dar um sinal inequívoco de que há espaço para toda a gente. (...) Ainda é um início, não adianta entrarmos em euforia. Mas é um início absolutamente necessário."

Joacine Katar Moreira celebra a vitória © Sara Matos / Global Imagens

Durante a campanha eleitoral, mais do que as suas ideias políticas, tornou-se um assunto a gaguez da candidata. Já em agosto, na entrevista ao DN, Joacine Katar Moreira contava como depois do nascimento da filha, há três anos, começou a perceber "a urgência" de não esconder este seu problema: "Eu gaguejo quando falo. Isso não me impede de rigorosamente nada. Não posso continuar a esconder este facto e a substituir as palavras. (...) Não quero que a minha filha aprenda comigo a inibir-se e a esconder-se."

Durante a campanha, quando Ricardo Araújo Pereira lhe perguntou se a gaguez não poderia limitá-la enquanto deputada, Joacine respondeu: "Eu gaguejo quando falo mas não gaguejo quando penso. O que, efetivamente, é um risco enorme na assembleia são os indivíduos que estão lá e gaguejam quando pensam".

Beatriz Gomes Dias, Bloco de Esquerda

Beatriz Gomes Dias era a terceira candidata do Bloco de Esquerda em Lisboa. Nascida em Dakar, no Senegal, há 48 anos, mas oriunda de uma família guineense, licenciou-se em Biologia, foi professora do ensino secundário e é aluna do mestrado de Comunicação de Ciência na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

Beatriz Gomes Dias © Orlando Almeida/ Arquivo Global Imagens

"Olhando para trás vejo uma rapariga muito tímida. Queria passar despercebida, misturar-me, não chamar a atenção para o ser negra. Talvez porque estava sempre em minoria: vivia no centro da cidade [Lisboa], porque o meu pai, médico, quis escolher um contexto em que nos habituássemos ao discurso da maioria", contava ao DN há dois anos.

Entre ela e os pais notava uma diferença fundamental: "Era-lhes reconhecida nacionalidade portuguesa por terem nascido numa colónia e vindo para Portugal antes do 25 de abril. Mas na verdade não se sentem portugueses (...). Já a minha geração sente-se identitariamente portuguesa, e a seguinte ainda mais. Daí que ocuparem o seu "lugar de fala" seja cada vez mais natural, que surja uma série de associações e de reivindicações. Porque mesmo os negros da minha idade, que como eu acreditaram numa sociedade pós-racial, percebem que continuamos a ser alvo das mesmas observações que ouvíamos em crianças. Nada mudou, ou mudou muito pouco."

Ativista antirracismo, explicava, assim, como tomou consciência na necessidade de ter uma palavra a dizer na sociedade, tendo sido fundadora e dirigente da Associação de Afrodescendentes e membro do SOS Racismo, antes de entrar na política partidária: "Há uma discussão nova, uma consciencialização nova. A discussão sobre o que é ser negro e ser português não tinha ainda acontecido. Eu própria, há 20 anos, quando enquanto estudante universitária me inscrevi no SOS Racismo, não estava a pensar nisso de forma estruturada. A reivindicação do que é ser negro como categoria política surge-me nos últimos anos e está muito ligada à formação da associação. O centro da nossa ação é a reivindicação de que somos portugueses e negros. Que existimos, que queremos ser reconhecidos."

Romualda Fernandes, Partido Socialista

"A democracia requer, efetivamente, que estejamos todos representados e no caso dos afrodescendentes existia uma grande ausência, uma grande lacuna, nesta matéria. Porque se nós queremos trabalhar o sentimento de pertença, se nós queremos trabalhar a inclusão, temos que permitir que pessoas das diferentes origens possam estar exatamente no sítio onde se institucionaliza aquilo que é o normal", dizia Romualda Fernandes, no início de setembro, à Deutsche Welle.

Romualda Fernandes, em campanha com António Costa © Mário Cruz/ Lusa

Romualda Fernandes, nascida na Guiné Bissau há 65 anos, é jurista, especialista em Direito Internacional aplicado às Nacionalidades, Condição de Estrangeiros e Direito Humanitário. Em Portugal foi assessora em vários departamentos governamentais. Foi consultora da Organização Internacional para as Migrações e é vogal do Conselho Diretivo do Alto-Comissariado para as Migrações. Militante do Partido Socialista há 20 anos, ocupava o 19.º lugar na lista do PS pelo círculo da capital.

O seu objetivo como deputada, dizia à Deustche Welle, é "combater de forma firme as discriminações, fazer com que as diferenças que compõem a sociedade portuguesa sejam refletidas nos eleitos. É uma das matrizes também do Partido Socialista a luta contra as desigualdades e é nesse domínio que também abraço com muito agrado, [no sentido de] levar para o centro do debate das políticas públicas áreas como estas".

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