O momento Serena Williams de Costa

31-08-2019
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Let them all pass all their dirty remarks

Desde miúdo que me deixo levar pela batida do reggae. Ouvia vezes consecutivas, como um fumador que acende o cigarro seguinte no cigarro anterior, One Love, de Bob Marley, e continuo a guardar os clássicos na velha prateleira dos vinis. Lembrei-me do verso em “epígrafe”, ao escutar a complicada resposta de António Costa a uma pergunta simples (embora destituída de sentido) de Assunção Cristas: “Condena ou não condena os atos de violência [em três noites consecutivas a seguir aos acontecimentos ocorridos no chamado “Bairro da Jamaica”, no Seixal]?

Em vez de se levantar da cadeira e demonstrar que a pergunta era desnecessária e redundante, António Costa viu nela uma insinuação de que Cristas o tentava apresentar como conivente com o vandalismo dos últimos dias. E passou-se da cabeça: “Está aí a olhar para mim, se calhar só me pergunta isso por causa do meu tom de pele”. Como um panzer atirado sobre um inseto, Costa chamava racista à líder do CDS, levantando uma questão nunca brandida, nem por camaradas, nem por eleitores, nem por adversários, nem por inimigos – nem por ele próprio!, em mais de 40 anos de vida política. Inexplicavelmente, comportou-se como se tivesse perdido a razão, recorrendo ao último argumento disponível – aquele que é indemonstrável.

Eu acho que Costa deve ser desculpado por este pequeno acesso de inconsciência. A frase surge na ponta final de uma discussão particularmente tensa entre ele e Cristas, com um crescendo de adrenalina passível de toldar a razão a qualquer um dos dois. Ao contrário do que tinha dito, pouco antes, Fernando Negrão – “o senhor primeiro-ministro tem pelos no coração” -, Costa mostrou-se humano e vulnerável. Olhando para as imagens, percebe-se que disse aquilo e arrependeu-se no momento. É, portanto, completamente desadequado dar ao episódio uma importância política que ele não tem. Mas podemos tirar dele uma lição inquietante: o primeiro-ministro revelou um racismo “de subconsciente” idêntico ao que foi profusamente exibido por quase toda a gente que se pronunciou, esta semana, sobre os acontecimentos do Seixal. Ao concluir que uma acusação de conivência com o vandalismo só é feita com base na cor da pele, Costa está a dizer, inconscientemente, que essa razão é pode ser verificável.

Pode vir a propósito contar uma história passada com um aluno de 11 anos, num inquérito, por escrito, entre as turmas do então 1.º Ciclo Preparatório, atual 5.º ano, em 1974, logo a seguir ao 25 de abril, num tempo em que (quase) todos os alunos eram caucasianos. Numa das questões do inquérito distribuído naquela turma, perguntava-se se os alunos consideravam que os pretos (escrevia-se «negros») eram boas ou más pessoas. A piedosa intenção era a de detetar sinais de racismo entre a inocência infantil, para exercer, depois, uma ação pedagógica. Claro que todos responderam que “os negros eram boas pessoas”. Só um dos alunos destoou: “Há boas e más pessoas. A pergunta não faz sentido”. O único não racista da turma.

Uma lição da profundeza dos tempos, dada por um aluno de 11 anos, que bem podia ser aproveitada por todos, esta semana. E, sobretudo, por António Costa: não, senhor primeiro-ministro. Se alguém lhe chamar vândalo, não pense que é por causa da cor da sua pele. Desmonte os argumentos do seu adversário sem se meter num beco sem saída.

Essa mesma lição pode ser aproveitada pelos polícias que intervieram no Bairro Jamaica e pelos queixosos da intervenção policial: não, eles não atiram pedras porque são pretos. E não, se a polícia usar a força, não é porque eles são pretos: é porque estão a atirar pedras. Este é o princípio. O resto, o excesso, as circunstâncias e as motivações só podem vir a ser esclarecidos pelo inquérito em curso.

No vídeo amador, com o devido desconto que se deve dar ao “jornalismo de cidadão”, não se vê nenhuma pedra a voar. Mas, nas imagens, só se vê a polícia a bater, aparentemente, de forma desproporcionada, pelo menos, relativamente à ameaça de que está, naquele momento, a ser alvo. A PSP divulgou, entretanto, uma fotografia dos ferimentos causados num dos seus agentes apedrejados. Mas se o comentador de sofá que tenha esta semana falado sobre o assunto, de Catarina Martins a Nuno Melo, souber o que se passou fora daqueles poucos minutos de vídeo, que atire a segunda pedra.

Há uns meses, Serena Williams, descontente com a (correta) arbitragem de um português, acusou o juiz de “sexismo”. Incompreensivelmente – porque, ao contrário de Serena, não tinha cometido qualquer “infração”… – António Costa também teve, agora, o seu “momento Serena Williams”. Pode acontecer a qualquer um. Já nos aconteceu a todos.

No interim, Bob Marley dá uma ajuda aos alegados agressores, dos dois lados da barricada do caso Jamaica: I shot the sheriff, but I swear it was in self defence.

Let them all pass all their dirty remarks

Desde miúdo que me deixo levar pela batida do reggae. Ouvia vezes consecutivas, como um fumador que acende o cigarro seguinte no cigarro anterior, One Love, de Bob Marley, e continuo a guardar os clássicos na velha prateleira dos vinis. Lembrei-me do verso em “epígrafe”, ao escutar a complicada resposta de António Costa a uma pergunta simples (embora destituída de sentido) de Assunção Cristas: “Condena ou não condena os atos de violência [em três noites consecutivas a seguir aos acontecimentos ocorridos no chamado “Bairro da Jamaica”, no Seixal]?

Em vez de se levantar da cadeira e demonstrar que a pergunta era desnecessária e redundante, António Costa viu nela uma insinuação de que Cristas o tentava apresentar como conivente com o vandalismo dos últimos dias. E passou-se da cabeça: “Está aí a olhar para mim, se calhar só me pergunta isso por causa do meu tom de pele”. Como um panzer atirado sobre um inseto, Costa chamava racista à líder do CDS, levantando uma questão nunca brandida, nem por camaradas, nem por eleitores, nem por adversários, nem por inimigos – nem por ele próprio!, em mais de 40 anos de vida política. Inexplicavelmente, comportou-se como se tivesse perdido a razão, recorrendo ao último argumento disponível – aquele que é indemonstrável.

Eu acho que Costa deve ser desculpado por este pequeno acesso de inconsciência. A frase surge na ponta final de uma discussão particularmente tensa entre ele e Cristas, com um crescendo de adrenalina passível de toldar a razão a qualquer um dos dois. Ao contrário do que tinha dito, pouco antes, Fernando Negrão – “o senhor primeiro-ministro tem pelos no coração” -, Costa mostrou-se humano e vulnerável. Olhando para as imagens, percebe-se que disse aquilo e arrependeu-se no momento. É, portanto, completamente desadequado dar ao episódio uma importância política que ele não tem. Mas podemos tirar dele uma lição inquietante: o primeiro-ministro revelou um racismo “de subconsciente” idêntico ao que foi profusamente exibido por quase toda a gente que se pronunciou, esta semana, sobre os acontecimentos do Seixal. Ao concluir que uma acusação de conivência com o vandalismo só é feita com base na cor da pele, Costa está a dizer, inconscientemente, que essa razão é pode ser verificável.

Pode vir a propósito contar uma história passada com um aluno de 11 anos, num inquérito, por escrito, entre as turmas do então 1.º Ciclo Preparatório, atual 5.º ano, em 1974, logo a seguir ao 25 de abril, num tempo em que (quase) todos os alunos eram caucasianos. Numa das questões do inquérito distribuído naquela turma, perguntava-se se os alunos consideravam que os pretos (escrevia-se «negros») eram boas ou más pessoas. A piedosa intenção era a de detetar sinais de racismo entre a inocência infantil, para exercer, depois, uma ação pedagógica. Claro que todos responderam que “os negros eram boas pessoas”. Só um dos alunos destoou: “Há boas e más pessoas. A pergunta não faz sentido”. O único não racista da turma.

Uma lição da profundeza dos tempos, dada por um aluno de 11 anos, que bem podia ser aproveitada por todos, esta semana. E, sobretudo, por António Costa: não, senhor primeiro-ministro. Se alguém lhe chamar vândalo, não pense que é por causa da cor da sua pele. Desmonte os argumentos do seu adversário sem se meter num beco sem saída.

Essa mesma lição pode ser aproveitada pelos polícias que intervieram no Bairro Jamaica e pelos queixosos da intervenção policial: não, eles não atiram pedras porque são pretos. E não, se a polícia usar a força, não é porque eles são pretos: é porque estão a atirar pedras. Este é o princípio. O resto, o excesso, as circunstâncias e as motivações só podem vir a ser esclarecidos pelo inquérito em curso.

No vídeo amador, com o devido desconto que se deve dar ao “jornalismo de cidadão”, não se vê nenhuma pedra a voar. Mas, nas imagens, só se vê a polícia a bater, aparentemente, de forma desproporcionada, pelo menos, relativamente à ameaça de que está, naquele momento, a ser alvo. A PSP divulgou, entretanto, uma fotografia dos ferimentos causados num dos seus agentes apedrejados. Mas se o comentador de sofá que tenha esta semana falado sobre o assunto, de Catarina Martins a Nuno Melo, souber o que se passou fora daqueles poucos minutos de vídeo, que atire a segunda pedra.

Há uns meses, Serena Williams, descontente com a (correta) arbitragem de um português, acusou o juiz de “sexismo”. Incompreensivelmente – porque, ao contrário de Serena, não tinha cometido qualquer “infração”… – António Costa também teve, agora, o seu “momento Serena Williams”. Pode acontecer a qualquer um. Já nos aconteceu a todos.

No interim, Bob Marley dá uma ajuda aos alegados agressores, dos dois lados da barricada do caso Jamaica: I shot the sheriff, but I swear it was in self defence.

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