Sem a esquerda, o PS teria sido mais austero?

08-07-2019
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“"O PS foi a eleições com um programa e um cenário macroeconómico definindo o congelamento das pensões, limitando o salário mínimo ao acordo com as confederações empresariais, prometendo reduzir as contribuições patronais para a segurança social e novas medidas de liberalização de despedimentos" ”

Na abertura da Convenção do Bloco de Esquerda, que decorre este fim-de-semana em Lisboa, a líder Catarina Martins alertou para os perigos de uma maioria absoluta do Partido Socialista. E para isso lembrou o que o PS apresentava em 2015, nas eleições legislativas. Foi buscar dois documentos-base para o PS de António Costa nessa altura: o cenário macroeconómico, feito por um grupo de 12 economistas coordenados por Mário Centeno e sobre o qual se estruturaria o programa político do partido, e o próprio programa eleitoral. Documentos pré-“geringonça” que a líder bloquista avalia agora para dizer aos eleitores que “ainda bem que houve força à esquerda para contrariar as medidas do Programa do PS que pretendiam precisamente o contrário” do que foi feito nestes últimos três anos.

O que está em causa?

Em 2015, António Costa reuniu um grupo de economistas composto por Mário Centeno, Vítor Escária, Fernando Rocha Andrade, Francisco Guedes de Oliveira, João Leão, Manuel Caldeira Cabral, Paulo Trigo Pereira, João Galamba, José António Vieira da Silva, Elisa Ferreira e Sérgio Ávila. A tarefa que lhes entregou foi traçar um cenário macroeconómico que servisse de base à elaboração do programa eleitoral do partido. E assim foi, embora o primeiro programa, apresentado em abril desse ano, tivesse sido reajustado meses depois, sendo substituído pelo Estudo Sobre O Impacto Financeiro Do Programa Eleitoral do PS, que acompanhava o programa político.

Assim, o Programa eleitoral com que o PS concorreu às legislativas, bebeu do cenário macroeconómico, ainda que durante o processo tenham existido críticas até no PS, como aconteceu, por exemplo, em relação à TSU dos patrões — mas já lá chegaremos. Catarina Martins, no discurso da Convenção, disse que em 2015 António Costa concorreu a eleições com um programa e um cenário macroeconómico que definiam a “liberalização dos despedimentos”, a limitação do salário mínimo aos acordos com os patrões, a redução da Taxa Social Única paga pelos empregadores e ainda o “congelamento das pensões”. Disse também que era isto que tinha acontecido se o PS tivesse tido maioria absoluta, não precisando de acordos à esquerda para governar. “Alguém acredita que a austeridade prevista no programa do PS não teria sido aplicada se o PS tivesse maioria?”, concluiu.

Quais são os factos?

No caminho até às legislativas de 2015, António Costa preparou vários documentos (já linkados em cima) até chegar às eleições. Para este fact check, o Observador considerou-os todos. Na frase acima citada, e que aqui analisamos, Catarina Martins refere-se tanto ao cenário macroeconómico como ao programa eleitoral socialista. O Observador ainda acrescentou o cenário que realmente serviu de base ao programa, através do Estudo Sobre O Impacto Financeiro e cruzou tudo isto com o acordo PS/BE e o Programa de Governo viabilizado pela esquerda. Vamos por partes, por cada uma das partes referidas pela líder do partido.

O PS congelava as pensões? Verdade. O cenário macroeconómico coordenado por Mário Centeno referia o “congelamento dos valores nominais salvo para as pensões de valores mais baixos” e quando foi revisto pelo PS as estimativas com esse descongelamento mantinham-se no Estudo sobre o impacto financeiro do programa eleitoral, como é possível confirmar no quadro abaixo.

O descongelamento foi uma das medidas pelas quais a esquerda batalhou quando negociou as posições conjuntas com o PS para a formação do Governo e conseguiu que ela ficasse prevista. No programa de Governo aprovado na Assembleia da República em novembro de 2015, já ficou inscrito o compromisso do “aumento anual das pensões através da reposição, em 1 de Janeiro de 2016, da norma relativa à atualização das pensões, suspensa desde 2010, permitindo pôr fim a um regime de radical incerteza na evolução dos rendimentos dos pensionistas”.

O PS alguma vez disse, nos documentos em análise, que o salário mínimo estava “limitado ao acordo com as confederações empresariais”? Em nenhum dos documentos é feita esta referência direta. No cenário macroeconómico, apresentado em abril de 2015, os economistas do PS referiam que “para os que auferem o salário mínimo a negociação coletiva tem algum impacto e este deve ser acautelado”. No programa eleitoral ficou inscrito que “a meta a atingir para o aumento do salário mínimo deve corresponder à atualização do valor previsto e que é fundamental construir com os parceiros sociais um novo acordo de médio prazo que defina os critérios e uma trajetória para o aumento do salário mínimo nos anos seguintes”.

Na concertação social têm assento os patrões, mas também as confederações sindicais, que têm uma palavra a dizer nesta matéria. Aliás, no Programa do Governo que foi viabilizado pelo Bloco de Esquerda, manteve-se a necessidade do “reforço da concertação social” na definição de “uma política de rendimentos numa perspetiva de trabalho digno e, em particular, garantir a revalorização do salário mínimo nacional”. E nesta matéria acabou por ficar definido um plano para esse aumento: 530€ em 2016, 557€ em 2017, 580€ em 2018 e 600€ em 2019.

A redução da contribuição para a Segurança Social esteve mesmo em cima da mesa? Esteve, mas acabou por ficar fora do programa eleitoral. E foi até um bico de obra nas negociações com o Bloco, que insistiu que na posição conjunta assinada com o PS ficasse escrito que “não constará do Programa de Governo qualquer redução da TSU das entidades empregadoras”. A história é complexa e começou no cenário macro de Centeno que definia a “redução da taxa contributiva para a segurança social a cargo dos empregadores” que ocorreria “de forma gradual, à medida que se consolidam as fontes de financiamento alternativas com o seguinte ritmo: 1,5 p.p. em 2016, 1,5 p.p. em 2017 e 1 p.p. em 2018”. A medida foi contestada até dentro do PS e acabou por ficar fora do Programa Eleitoral do partido. A esquerda não quis ficar por meias medidas e inscreveu nas posições conjuntas (Bloco e PEV fizeram-no) que isso não poderia ficar no Programa do Governo e não ficou mesmo.

Mesmo assim, a verdade é que no início de 2017, o Governo socialista avançou com a medida num decreto que o Parlamento chamou a votação e chumbou numa maioria invulgar que juntou o PSD e partidos da esquerda.

Por fim, a liberalização dos despedimentos estava nos planos? Sim. Estava nos planos iniciais de Centeno, no cenário macroeconómico e estava depois no Programa Eleitoral do PS, sob a forma de um novo mecanismo, o “procedimento conciliatório”, que foi imediatamente classificado pelo Bloco como uma liberalização do despedimento. O mecanismo que o PS queria criar era para “complementar a atual legislação de cessação de contratos de trabalho com um novo regime conciliatório e voluntário em que as empresas podem iniciar um procedimento conciliatório, em condições equiparadas às do despedimento coletivo, englobando todos os motivos de razão económica”. Foi criticado mesmo dentro do PS. A esquerda insistiu que isso não constasse no programa de Governo — ficou inscrito no anexo ao acordo entre PS e BE a exigência de que não constasse no programa do Governo o regime conciliatório”. Acabou mesmo por não constar.

Conclusão: Praticamente certo

A análise dos documentos que o PS preparou antes das eleições e a comparação com os que se seguiram ao acordo com o BE e o programa de Governo pós-“geringonça”, permite afirmar que Catarina Martins está praticamente certa quando diz que algumas medidas que António Costa apontava antes das eleições não foram concretizadas por pressão da esquerda. Pelo menos em quatro medidas concretas, referidas pela líder do Bloco de Esquerda e que foram aqui analisadas pelo Observador.

Não está totalmente certa no que diz respeito ao salário mínimo nacional, onde a líder do Bloco afirma que o PS quis limitar a atualização do valor aos acordo dos patrões. Na verdade, o que o PS fez e manteve até ao Programa do Governo, foi a necessidade de remeter essa negociação para a concertação social onde estão não só patrões, mas também os sindicatos. O que acabou por ficar no Programa do Governo foi que “o Governo proporá em sede de concertação social uma trajetória de aumento do SMN que permita atingir os 600€ em 2019” e o plano concreto para essa atualização, ano a ano. Quanto às outras medidas escolhidas por Catarina Martins para mostrar a influência das esquerdas no Governo, estão todas corretas.

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“"O PS foi a eleições com um programa e um cenário macroeconómico definindo o congelamento das pensões, limitando o salário mínimo ao acordo com as confederações empresariais, prometendo reduzir as contribuições patronais para a segurança social e novas medidas de liberalização de despedimentos" ”

Na abertura da Convenção do Bloco de Esquerda, que decorre este fim-de-semana em Lisboa, a líder Catarina Martins alertou para os perigos de uma maioria absoluta do Partido Socialista. E para isso lembrou o que o PS apresentava em 2015, nas eleições legislativas. Foi buscar dois documentos-base para o PS de António Costa nessa altura: o cenário macroeconómico, feito por um grupo de 12 economistas coordenados por Mário Centeno e sobre o qual se estruturaria o programa político do partido, e o próprio programa eleitoral. Documentos pré-“geringonça” que a líder bloquista avalia agora para dizer aos eleitores que “ainda bem que houve força à esquerda para contrariar as medidas do Programa do PS que pretendiam precisamente o contrário” do que foi feito nestes últimos três anos.

O que está em causa?

Em 2015, António Costa reuniu um grupo de economistas composto por Mário Centeno, Vítor Escária, Fernando Rocha Andrade, Francisco Guedes de Oliveira, João Leão, Manuel Caldeira Cabral, Paulo Trigo Pereira, João Galamba, José António Vieira da Silva, Elisa Ferreira e Sérgio Ávila. A tarefa que lhes entregou foi traçar um cenário macroeconómico que servisse de base à elaboração do programa eleitoral do partido. E assim foi, embora o primeiro programa, apresentado em abril desse ano, tivesse sido reajustado meses depois, sendo substituído pelo Estudo Sobre O Impacto Financeiro Do Programa Eleitoral do PS, que acompanhava o programa político.

Assim, o Programa eleitoral com que o PS concorreu às legislativas, bebeu do cenário macroeconómico, ainda que durante o processo tenham existido críticas até no PS, como aconteceu, por exemplo, em relação à TSU dos patrões — mas já lá chegaremos. Catarina Martins, no discurso da Convenção, disse que em 2015 António Costa concorreu a eleições com um programa e um cenário macroeconómico que definiam a “liberalização dos despedimentos”, a limitação do salário mínimo aos acordos com os patrões, a redução da Taxa Social Única paga pelos empregadores e ainda o “congelamento das pensões”. Disse também que era isto que tinha acontecido se o PS tivesse tido maioria absoluta, não precisando de acordos à esquerda para governar. “Alguém acredita que a austeridade prevista no programa do PS não teria sido aplicada se o PS tivesse maioria?”, concluiu.

Quais são os factos?

No caminho até às legislativas de 2015, António Costa preparou vários documentos (já linkados em cima) até chegar às eleições. Para este fact check, o Observador considerou-os todos. Na frase acima citada, e que aqui analisamos, Catarina Martins refere-se tanto ao cenário macroeconómico como ao programa eleitoral socialista. O Observador ainda acrescentou o cenário que realmente serviu de base ao programa, através do Estudo Sobre O Impacto Financeiro e cruzou tudo isto com o acordo PS/BE e o Programa de Governo viabilizado pela esquerda. Vamos por partes, por cada uma das partes referidas pela líder do partido.

O PS congelava as pensões? Verdade. O cenário macroeconómico coordenado por Mário Centeno referia o “congelamento dos valores nominais salvo para as pensões de valores mais baixos” e quando foi revisto pelo PS as estimativas com esse descongelamento mantinham-se no Estudo sobre o impacto financeiro do programa eleitoral, como é possível confirmar no quadro abaixo.

O descongelamento foi uma das medidas pelas quais a esquerda batalhou quando negociou as posições conjuntas com o PS para a formação do Governo e conseguiu que ela ficasse prevista. No programa de Governo aprovado na Assembleia da República em novembro de 2015, já ficou inscrito o compromisso do “aumento anual das pensões através da reposição, em 1 de Janeiro de 2016, da norma relativa à atualização das pensões, suspensa desde 2010, permitindo pôr fim a um regime de radical incerteza na evolução dos rendimentos dos pensionistas”.

O PS alguma vez disse, nos documentos em análise, que o salário mínimo estava “limitado ao acordo com as confederações empresariais”? Em nenhum dos documentos é feita esta referência direta. No cenário macroeconómico, apresentado em abril de 2015, os economistas do PS referiam que “para os que auferem o salário mínimo a negociação coletiva tem algum impacto e este deve ser acautelado”. No programa eleitoral ficou inscrito que “a meta a atingir para o aumento do salário mínimo deve corresponder à atualização do valor previsto e que é fundamental construir com os parceiros sociais um novo acordo de médio prazo que defina os critérios e uma trajetória para o aumento do salário mínimo nos anos seguintes”.

Na concertação social têm assento os patrões, mas também as confederações sindicais, que têm uma palavra a dizer nesta matéria. Aliás, no Programa do Governo que foi viabilizado pelo Bloco de Esquerda, manteve-se a necessidade do “reforço da concertação social” na definição de “uma política de rendimentos numa perspetiva de trabalho digno e, em particular, garantir a revalorização do salário mínimo nacional”. E nesta matéria acabou por ficar definido um plano para esse aumento: 530€ em 2016, 557€ em 2017, 580€ em 2018 e 600€ em 2019.

A redução da contribuição para a Segurança Social esteve mesmo em cima da mesa? Esteve, mas acabou por ficar fora do programa eleitoral. E foi até um bico de obra nas negociações com o Bloco, que insistiu que na posição conjunta assinada com o PS ficasse escrito que “não constará do Programa de Governo qualquer redução da TSU das entidades empregadoras”. A história é complexa e começou no cenário macro de Centeno que definia a “redução da taxa contributiva para a segurança social a cargo dos empregadores” que ocorreria “de forma gradual, à medida que se consolidam as fontes de financiamento alternativas com o seguinte ritmo: 1,5 p.p. em 2016, 1,5 p.p. em 2017 e 1 p.p. em 2018”. A medida foi contestada até dentro do PS e acabou por ficar fora do Programa Eleitoral do partido. A esquerda não quis ficar por meias medidas e inscreveu nas posições conjuntas (Bloco e PEV fizeram-no) que isso não poderia ficar no Programa do Governo e não ficou mesmo.

Mesmo assim, a verdade é que no início de 2017, o Governo socialista avançou com a medida num decreto que o Parlamento chamou a votação e chumbou numa maioria invulgar que juntou o PSD e partidos da esquerda.

Por fim, a liberalização dos despedimentos estava nos planos? Sim. Estava nos planos iniciais de Centeno, no cenário macroeconómico e estava depois no Programa Eleitoral do PS, sob a forma de um novo mecanismo, o “procedimento conciliatório”, que foi imediatamente classificado pelo Bloco como uma liberalização do despedimento. O mecanismo que o PS queria criar era para “complementar a atual legislação de cessação de contratos de trabalho com um novo regime conciliatório e voluntário em que as empresas podem iniciar um procedimento conciliatório, em condições equiparadas às do despedimento coletivo, englobando todos os motivos de razão económica”. Foi criticado mesmo dentro do PS. A esquerda insistiu que isso não constasse no programa de Governo — ficou inscrito no anexo ao acordo entre PS e BE a exigência de que não constasse no programa do Governo o regime conciliatório”. Acabou mesmo por não constar.

Conclusão: Praticamente certo

A análise dos documentos que o PS preparou antes das eleições e a comparação com os que se seguiram ao acordo com o BE e o programa de Governo pós-“geringonça”, permite afirmar que Catarina Martins está praticamente certa quando diz que algumas medidas que António Costa apontava antes das eleições não foram concretizadas por pressão da esquerda. Pelo menos em quatro medidas concretas, referidas pela líder do Bloco de Esquerda e que foram aqui analisadas pelo Observador.

Não está totalmente certa no que diz respeito ao salário mínimo nacional, onde a líder do Bloco afirma que o PS quis limitar a atualização do valor aos acordo dos patrões. Na verdade, o que o PS fez e manteve até ao Programa do Governo, foi a necessidade de remeter essa negociação para a concertação social onde estão não só patrões, mas também os sindicatos. O que acabou por ficar no Programa do Governo foi que “o Governo proporá em sede de concertação social uma trajetória de aumento do SMN que permita atingir os 600€ em 2019” e o plano concreto para essa atualização, ano a ano. Quanto às outras medidas escolhidas por Catarina Martins para mostrar a influência das esquerdas no Governo, estão todas corretas.

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