Júlio Machado Vaz: “Estou há quarenta anos a ouvir pessoas com problemas semelhantes aos meus”

15-08-2019
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14/08/2019 por Paulo Farinha autor

Podia ter sido apenas psiquiatra, psicoterapeuta, sexólogo e professor. Mas, há trinta anos, começou uma aventura na rádio e, a partir daí, o comunicador de emoções nunca mais parou. Veio a televisão, os livros, as crónicas na imprensa, as conferências. Aos 69 anos, Júlio Machado Vaz continua a dar consultas e a fazer-se ouvir todos os dias na rádio. E continua a ser o nome mais conhecido em Portugal quando se fala de relações. E da relação entre razão e emoção. Uma longa entrevista de vida e carreira, da série “Ninguém Disse que Isto ia Ser Fácil“, com passagem pelos primeiros tempos na rádio, como a televisão lhe mudou a vida, a depressão que teve, a infância, a relação com a mãe cúmplice, o pai reservado e os filhos com quem fala de tudo. E, ao fim de trinta anos de consultas, como sabe quando deve dizer a um casal que está na altura de se separarem?

[veja o vídeo completo da conversa (em cima) ou leia a entrevista (em baixo)]

Entrevista de Paulo Farinha

Há mais de trinta anos que é uma presença regular na televisão. O Sexualidades começou há trinta anos, certo? Mas antes disso teve O Sexo dos Anjos.

Foi há trinta na rádio. Foi em 1989 que começou O Sexo dos Anjos [Rádio Nova].

Tem saudades do anonimato?

Não. Em primeiro lugar porque neste momento tenho muito mais anonimato do que tinha há dez ou quinze anos porque praticamente não tenho estado na televisão. E isso é completamente diferente. Depois, porque eu tive muita sorte ao longo de trinta anos. Tive episódios desagradáveis, mas em trinta anos foram uma minoria. As pessoas trataram-me muito bem.

Nunca teve stalkers?

Tive. Tive ameaças de morte, também. Num dos casos, com razão ou sem ela, eu achei que deveria participar à polícia. Mas atendendo ao perfil da pessoa eu depois não apresentei queixa. E não me arrependo.

Recorda-se da primeira vez que recebeu uma ameaça? O que é que se sente, da primeira vez que se lê uma coisa dessas?

Posso estar enganado, mas ameaças penso que só surgiram na televisão. Mas insultos já havia n’O Sexo dos Anjos.

Não lhe pergunto se ainda é insultado hoje em dia, porque com 67 mil seguidores no Facebook, presumo que seja insultado várias vezes.

Sim. Ainda há quinze dias ou três semanas fui ameaçado. Em relação ao O Amor É.

O que é que disseram?

Qualquer coisa do género: “Vais acabar mal se continuares a mentir e a provocar a discórdia no povo português com O Amor É.

Hoje em dia já está mais vacinado perante essas coisas?

Estou. O que não significa nada. Mas repare, é preciso ter esta noção: eu falava de sexualidade em biomédicas. Ninguém era obrigado a ir. E eu tinha os alunos de medicina, os alunos de psicologia (os vizinhos da porta ao lado) e comecei a descobrir que aparecia gente de arquitetura, de história, etc… E aquilo era muito agradável, era ao fim do dia, a malta conversava, eles punham as dúvidas que queriam, depois íamos pela rua, os que iam na mesma direção… Era um clube de amigos. Depois aconteceu O Sexo dos Anjos, que não teve grandes problemas. Agora, o que eu não estava era preparado para a televisão.

Começou na RTP com a Ivone Ferreira, certo?

Sim, mas isso eram coisas muito pontuais. Que aliás eram deliciosas. Como eu era o último, se o programa da manhã atrasava, a Ivone dizia assim: “E agora temos connosco o Dr. Júlio Machado Vaz, que nos vai falar de ejaculação prematura. Ou antes, não vai, ia, porque estamos na hora do noticiário. Então adeus e pronto.” Era divertidíssimo.

Por falar em ejaculação prematura…

Era, era… Agora, depois na televisão eu não estava preparado para mudar de registo. Nem queria. A televisão não tinha nada a ver. Eu lembro-me de o Carlos Cruz me perguntar: “você faz alguma ideia de quantas pessoas o estão a ver?” E eu: “Não”. E ele dizia assim “trezentos mil” ou “duzentos mil…” Esses zeros não querem dizer nada. Porque o programa era gravado e embora houvesse muitas vezes convidados, as partes eventualmente mais complicadas, digamos assim, eu fiz sempre questão de as fazer sozinho.

Para não condicionar ninguém…

Para não meter no barco outras pessoas. Tinha três operadores de câmara, tinha a realizadora e o Carlos Cruz na régie e isso para mim era completamente pacífico.

“Durante anos, havia muita gente no Porto que pensava que eu era de Lisboa porque fazia o programa [Sexualidades]. E como nós estamos habituados a que tudo se passa em Lisboa, havia pessoas que vinham ter comigo e diziam: ‘Então, está de visita?’ E eu respondia que não, que sou do Bonfim.”

Mas de repente, saber que trezentas mil pessoas estavam a ver aquilo…

De repente começaram a acontecer as coisas mais espantosas para alguém que não estava habituado a isso. Uma vez, eu estava em Lisboa parado num sinal de trânsito e um tipo numa moto meteu a mão pela janela aberta, bateu-me no ombro e disse: “continua que eu gosto de te ver”. E arrancou. Essa ficou-me porque eu fiquei completamente alapardado, como se diz aqui no Porto. Depois foi muito curioso ver as diferenças. As pessoas vinham ter comigo muito mais vezes, com muito mais à vontade em Lisboa do que no Porto.

Porquê?

Eu acho que tem a ver com o que é o Porto. O Porto é comedido.

É mais reservado. Mais metido para si.

É. Basta dizer-lhe isto: durante anos havia muita gente no Porto que pensava que eu era de Lisboa porque fazia o programa [Sexualidades]. E como nós estamos habituados a que tudo se passa em Lisboa, havia pessoas que vinham ter comigo e diziam: “Então, está de visita?” E eu respondia que não, que sou do Bonfim. Nasci cá. “Ah sim, então como é que faz?” É muito curioso. Lembro-me de o Carlos Cruz me dizer: “Quer que ponha alguém a selecionar casas para você depois ir escolher?” E eu: “Escolher para quê?” “Então, você vai ter que alugar ou comprar uma casa em Lisboa. Está cá a fazer o programa, depois vai fazer outros…” “Não, não. Eu vivo no Porto, venho cá e acabou.”

Ia todas as semanas a Lisboa gravar.

Sim, todas as semanas. Eu cheguei a vir de Lisboa às quatro da manhã para ainda vir dormir duas horas à minha cama.

Pelo palco que é a televisão, chegava a muita gente e que ajudou a mudar a vida de muitas pessoas. Na altura não tinha noção disso, pois não?

Não. Na altura não tinha.

E hoje?

Hoje o que acontece é que muita gente vem ter comigo. E ainda vem a falar dessa altura. E como passou muito tempo, já ouço outras gerações. Há pessoas que vão ao meu consultório, que nunca viram o Sexualidades, e dizem: “Os meus pais viam o seu programa quando eram namorados, eu disse que precisava de falar com alguém e eles disseram para ir falar com o tio Júlio”. Lá em casa sou conhecido pelo tio Júlio.

Sente o peso dessa responsabilidade?

Sinto. E também sinto uma enorme gratidão. Quando uma pessoa me diz “o senhor ajudou-me”, eu não posso aspirar a mais.

Estamos a fazer esta entrevista em Serralves. Já gravou aqui um programa de televisão com a Ana Mesquita.

Sim. No fundo, um derivado d’O Amor É.

A Ana foi justamente uma das suas cúmplices n’O Amor É. A segunda. Esteve dois anos com o António Macedo. Outros dois com a Ana Mesquita. E agora está há onze com a Inês Meneses. Era diferente falar dos temas do programa com o António, que é um homem, do que era falar com a Ana ou agora com a Inês?

Seguramente. Eu e o António somos praticamente da mesma idade. E, portanto, havia aquela sensação da mesma colheita. Depois, temos pontos de vista muito semelhantes em diversas áreas da vida – com exceção do futebol, em que eu sou benfiquista e ele é sportinguista. O tempo do programa com o António era assim uma festa de dois adolescentes.

Fala com ele com frequência?

Ao telefone. Menos do que devíamos, é verdade. Mas falo.

Tem saudades dele, quando passam muito tempo sem se verem?

Tenho. A véspera da gravação do programa era uma noite de gargalhada. Tínhamos de decidir do que é que íamos falar e era muito, muito bom. De tal maneira que nós fizemos muitas vezes o programa em direto.

E com a Ana? Dois anos com o António, dois anos depois com a Ana Mesquita. Quais eram as principais diferenças?

Eu compreendo perfeitamente a lógica da sugestão que me foi feita. O que me foi dito foi: “Vocês divertem-se desalmadamente, mas é bom não esquecermos que a metade maior da humanidade são mulheres.”

Havia temas que ficavam de fora por serem dois homens a falar deles?

Não. Mas embora eu não seja um defensor daquelas visões essencialistas (“isto é tipicamente masculino, aquilo é tipicamente feminino”), é evidente que [a diferença de género] enriquece. Eu não conhecia a Ana, mas um dia almoçamos ou jantámos juntos e, como hoje se diz, estávamos em sintonia, era uma boa onda, e começámos.

E agora, há onze anos, a Inês Meneses, a sua cúmplice mais antiga. De quem entretanto se tornou amigo…

É verdade. Como dos outros dois.

Quando está muito tempo sem falar com a Inês – quando chega o verão e vão de férias, por exemplo –, ficam com saudades um do outro?

Não posso falar por ela. Para mim, a primeira sensação é de estranheza. Temos os nossos rituais [para preparar o programa], falamos muito, sugestões para lá, sugestões para cá… Se a algum de nós não apetece muito falar de um tema, explica ao outro porquê… E depois há o ritual de fazer mesmo o programa. Todas as semanas.

Continuam a gravar à quarta-feira?

Todas as quartas-feiras. Aquilo faz parte da minha vida há 15 anos. Quer dizer, já não me lembro se com o António era também às quartas. Mas o que acontece é que em agosto nós ficamos livres para falarmos – a maior parte das vezes é por SMS ou por e-mail e de vez em quando telefonamo-nos – de coisas que não têm nada a ver com o programa.

Nunca se aborrecem um com o outro?

Bem, hoje em dia há muita gente que diz que o segredo de uma boa relação é não estarmos sistematicamente juntos. Se calhar nós os dois tiramos partido dessa teoria. Mas não. Não me lembro de algum conflito sério entre mim e a Inês.

Preparam o programa com alguns dias de antecedência, debatendo os temas, trocando mensagens… Ainda recebem muitas sugestões de ouvintes?

Agora menos. Mas a culpa é nossa. O que aconteceu é que, a determinada altura, nós já não conseguíamos controlar o e-mail que havia. Por isso acabámos por tomar muito mais as rédeas da questão.

O professor grava o programa no Porto. A Inês está em Lisboa. Sei que preferem a distância porque quando estão juntos ficam um pouco inibidos.

Eu não sei se isso ainda está atualizado. De nós os dois, quem argumentava dessa forma era a Inês. Posso-lhe perguntar, mas tenho muitas dúvidas que hoje em dia ela ainda se sinta inibida.

Para lá do programa (e sei que isso ocorre sobretudo no verão, já me disse), desabafa com a Inês quando tem algum problema, quando tem alguma questão que o preocupa?

Já aconteceu.

E ela consigo?

Ela já teve a gentileza de, de vez em quando, falar da sua vida comigo.

Além da Inês, quem é que o professor procura quando precisa de desabafar?

A tribo.

Os seus filhos e os amigos mais próximos…

Isso é complicado, porque por vezes há temas que eu não quero falar com os meus filhos (para não os preocupar) e esses são assuntos que eu abordo com amigos.

Tem um núcleo duro a quem recorre para falar?

Tenho. E – mea culpa, mea culpa – com o passar dos anos foi-se tornando difícil adicionar mais gente (mas acho que isso se passa com a maioria de nós). O núcleo duro tem estado estável nos últimos anos.

Quantas pessoas tem o seu núcleo duro?

Umas oito, dez pessoas.

Nas pessoas a quem recorre para desabafar, sente que não precisa de dizer tudo? Eles entendem as meias palavras, os silêncios…

Sim. Muitas vezes. E por duas razões principais: em primeiro lugar nós não somos tão originais como se possa pensar. Portanto, os problemas com que nos debatemos são comuns a muitos de nós. E depois há também a minha experiência profissional. Ou seja, sendo eu um psiquiatra basicamente de neuroses, estou há quase quarenta anos a ouvir gente com problemas semelhantes aos meus. Às vezes até tenho momentos de surpresa e penso: “Isto é uma extraordinária coincidência. Eu ando às voltas com coisas semelhantes.”

“O tempo do programa com o António [Macedo] era assim uma festa de dois adolescentes. Eu compreendo a lógica da sugestão que me foi feita. Disseram-me: ‘Vocês divertem-se desalmadamente, mas é bom não esquecermos que a metade maior da humanidade são mulheres.'”

Também já passou por um processo terapêutico. Antes dos 30 anos.

Sim. Aos 28 anos eu estive na Suíça, em estágio. Hoje, volvidos quarenta anos, pese embora o que em termos profissionais aprendi nesse quase ano, não tenho a menor dúvida que a minha decisão de ir para a Suíça

foi uma fuga face à depressão. Eu estava a deprimir.

Foi uma fuga para a frente?

Sim. Foi uma fuga para a frente.

Custou-lhe perceber que estava a passar por uma depressão?

Foi muito doloroso. Desde logo porque houve uma altura em que eu não conseguia trabalhar.

O que sentia? Não queria sair de casa?

Estava fóbico. O simples pensamento de ir fazer consulta cobria-me de suores frios.

Quanto tempo passou até procurar ajuda?

Eu ainda procurei ajuda na Suíça. Se tudo tivesse corrido idealmente, se eu me tivesse aguentado, eu teria feito a minha psicanálise lá e quem sabe se não poderia ter ficado na Suíça. Em termos de condições de trabalho eu estava satisfeitíssimo. E estava a aprender desalmadamente. Não só ao nível da psicoterapia, mas estava também a descobrir a sexologia, que em Portugal não existia.

Foi na Suíça que descobriu a sexologia clínica?

Quando cheguei a Portugal fiquei a saber que havia pessoas que tinham descoberto antes de mim. Como o Chico Allen Gomes, o [António Pacheco] Palha, o Afonso Albuquerque, etc. Mas eu não aguentei. Fui-me completamente abaixo e pirei-me para Portugal.

O facto de ter passado por um processo terapêutico e o facto de ter tido uma depressão fá-lo perceber melhor quem o procura nesse contexto?

Posso garantir uma coisa: quando as pessoas me dizem, em relação à ansiedade, em relação à depressão, “o senhor não imagina o que isto é”, eu respondo: “não preciso imaginar, eu sei o que isso é”. Agora, nós temos é estilos diferentes. Não estamos todos ansiosos da mesma maneira, não estamos todos deprimidos da mesma maneira. Basta dizer-lhe isto: quando eu disse – com a maior das ingenuidades, se calhar – que tinha estado deprimido, houve colegas meus, com a melhor das intenções, que me telefonaram. “Tu suicidaste-te profissionalmente. Quem é que vai querer pedir a ajuda de um psiquiatra que disse, a quem o quis ouvir, que tinha estado deprimido?”

Mas não devia ser o contrário? Isso não daria a esse psiquiatra ferramentas diferentes, um know how diferente, para lidar com essas situações em terapia?

Não sei. Sei que as pessoas confiaram em mim.

O facto de ser psiquiatra fez de si um paciente diferente? Mais resistente? Mais complicado?

Um dia você vem ao Porto, vamos ter com o hoje em dia meu bom amigo Dr. Jaime Milheiro, que foi meu psicanalista, e podemos perguntar-lhe isso. Em termos gerais, e porque eu próprio já fiz psicoterapia a colegas (e aqui é preciso distinguir entre colegas de outras especialidades e psiquiatras ou psicólogos), isso pode criar dificuldades adicionais.

Porquê?

À primeira vista nós pensamos: “São da mesma máfia, tudo isto corre mais depressa”. Ora, não necessariamente.

Porque eles defendem-se melhor?

Sim. Mas cuidado, não estou a dizer que é consciente. Até porque, como compreende, estar conscientemente a defender-se é uma coisa cara. Nós pagamos. Irmos para lá torpedear de propósito aquilo, ou somos muito ricos e é uma espécie de desporto, ou é burrice. Mas inconscientemente pode acontecer, sim. E não é só isso: como nós, perante uma determinada associação livre e determinada interpretação de ensaio do terapeuta (que está a tatear para ver se vai em boa direção), temos tendência para perceber o caminho que ele está a seguir, às vezes podemos entrar em competição. Ele começa a analisar e nós damos um pulo para a frente. Ora, isso em termos terapêuticos não é bom.

E não é cansativo? Desgastante? Às tantas andam ali numa espécie de braço de ferro. Quem é que está a analisar quem?

Aí está. E até lhe conto uma história: antes de eu ir para a Suíça, pedi ajuda a um homem de quem eu gostava muito e que era psiquiatra e psicoterapeuta. Ele conhecia-me, era visita da casa, e por isso nunca poderia ser meu terapeuta, mas eu sentia que não estava bem. E ele ouviu-me longamente e no fim disse-me uma coisa que eu nunca mais esqueci: “Olha Julinho, tu ainda vais ter que ir mais ao fundo do poço para poderes ser ajudado. Porque, da maneira que ainda estás, se fosses para psicoterapia ias tentar mostrar que és mais esperto do que eu. E se calhar conseguias, mas não melhoravas nada.”

“Quando eu disse que tinha estado deprimido, houve colegas meus que me telefonaram. ‘Tu suicidaste-te profissionalmente. Quem é que vai querer pedir a ajuda de um psiquiatra que disse, a quem o quis ouvir, que tinha estado deprimido?'”

Depara-se muitas vezes com pacientes seus psicólogos ou psiquiatras que ainda não foram suficientemente ao fundo do poço para poderem ser ajudados?

Não têm de ser psicólogos. Deparo-me com pessoas de todas as profissões que, dizia-me o meu controlador de casos: “vai ter de deprimir mais”.

O que é fazer controlo de casos?

Quando estamos em formação, fazemos uma sessão e vamos falar com alguém que sabe mais do que nós e dizemos o que a pessoa disse e o que nós respondemos. Falamos com alguém que sabe mais do que nós. Assim é que se aprende. Às vezes dizem-nos: “Você disse isso?! Numa altura tão precoce do tratamento?”

Alguém tem de avaliar…

Claro

Então, no geral, e aqui vai a pergunta do milhão de euros: um psiquiatra é um paciente muito complicado, menos complicado, mais ou menos, mais difícil?

Depende do psiquiatra. Agora, se nós vemos numa ficha numa primeira consulta que temos um “psi” pela frente, preparamo-nos para determinadas armadilhas do processo terapêutico que são mais prováveis de acontecer em alguém que tem uma profissão que começa por “psi” do que em alguém que é engenheiro hidráulico, por exemplo. Há homens e mulheres que vêm de profissões extremamente pragmáticas que buscam a precisão e que acabam por desistir do processo terapêutico porque aquilo não é suficientemente esquemático para eles. Mas quando aderem, não é nada raro que evoluam mais depressa do que as pessoas que estão do nosso lado, que têm um pensamento muito mais difuso, muito mais capaz de entrar no “se calhar”, na associação livre de ideias…

O pensamento analítico e a necessidade de arrumar as coisas em gavetas próprias – fruto da profissão que as pessoas têm – pode ajudá-las no processo terapêutico.

Sim. Mas é paradoxal. Porque, como compreende, a associação livre não permite gavetas. A nostalgia de uma certa precisão e de um pensamento mais funcional não é necessariamente motivo de atraso do processo terapêutico.

Dá consultas há mais de trinta anos. Não está cansado?

Estou. Neste momento, com a lista de espera que tenho e com as prioridades da minha vida atualmente, se eu estivesse em boa forma se calhar estaria a fazer mais consultas.

Tem uma lista de espera grande? Quanto tempo é que um paciente pode ter de esperar por uma primeira consulta?

Se não houver nenhuma desistência pode ter de esperar três meses.

Tem 69 anos. Não pensa na reforma?

Já estou reformado da faculdade há uns oito anos. Pedi a reforma antecipada. O ambiente não era saudável, na minha opinião.

“Em cursos de duzentas pessoas, eu tinha trinta ou quarenta que estavam interessados. Esse interesse dos que vão para casa aprofundar as questões e depois eram capazes de protestar porque eu não tinha levado um poema para dizer ou slides de pintura para mostrar ou música para ouvir, isso não tem preço.”

Já estava irrespirável?

Sim. A política universitária tem muito que se lhe diga. E quando chegamos à conclusão que a única coisa já que dá prazer – e é importante – é dar a aula aos alunos, deve pensar se vale a pena ou não. E eu vim-me embora. Não estou arrependido.

Era professor de Antropologia Médica a alunos do primeiro ano. Sente saudades daquela dinâmica de eles chegarem novos e ávidos de informação a uma faculdade?

Essa é uma das questões pela qual eu me sinto culpado. Acho que não me bati o suficiente para explicar que uma disciplina como Antropologia Médica não faz sentido no ciclo básico. Deve ser no fim do curso. Eu recebo hoje muitos convites para falar de antropologia médica (como políticas de saúde e envelhecimento), mas para gente que já é médica. Isto nos primeiros dois ou três anos de um curso de medicina não faz sentido.

Eles não conseguem perceber ainda?

Não. Mas, em cursos de duzentas pessoas, eu tinha trinta ou quarenta que estavam interessados. E esse interesse de trinta ou quarenta cabeças jovens fascinadas pelo tema, que vão para casa aprofundar as questões e que depois eram capazes de protestar porque eu não tinha levado um poema para dizer ou slides de pintura para mostrar ou música para ouvir, isso não tem preço. É eles manterem-nos sob pressão – a boa pressão – para nós não nos amodorrarmos. O que é muito fácil: você pode, ano após ano, ir repetindo a aula, não introduzir nada, não se atualizar, etc. Quando eles pressionam é muito bom.

Até quando é que vai dar consultas? Pensa nisso?

Eu vivo do meu trabalho. Enquanto estiver lúcido, vejo com muita dificuldade eu deixar de dar consultas. Se deixasse agora, preto no branco, não podia ter o estilo de vida que tenho. E que me agrada. Se você me perguntar: “É daquele género de gostar de garrafas de vinho e de espumante de centenas de euros?” Não, não sou. Mas não gosto de estar a fazer contas de cabeça quando, ao fim-de-semana, saio com a tribo para jantar. E cada vez menos – e isso veio com o passar dos anos – gosto de estar a perguntar a mim mesmo se é assisado ou não fugir para Barcelona para comer umas tapas e ver um jogo de futebol.

Fá-lo muitas vezes? Fugir para Barcelona. É a fuga principal?

É a fuga principal. Eu adoro Barcelona.

Falemos então de consultas. Há quanto tempo acompanha o seu paciente mais antigo?

Há uma pessoa que, não de uma forma perfeitamente estruturada, nunca deixou que se passassem mais de dois ou três meses sem aparecer. Há mais de trinta anos, seguramente.

Tornaram-se amigos, entretanto?

Não. Não posso. No momento em que eu me tornasse amigo, ela não podia aparecer mais no consultório. Mas se você me pergunta se eu tenho ternura por essa pessoa – e por outras –, claro que sim.

E há uma barreira que consegue mesmo criar ali para não sentir amizade?

Olhe, se quiser é assim: não exerço [risos].

“Uma relação que se projetou no futuro é um projeto. E se o projeto falha, as pessoas têm todo o direito de ficar de luto, tristes e frustradas.”

Quantas consultas dá por semana?

Entre 12 e 15. Os anos vão passando, sabe?

São 36 anos de consultas. Ainda que as ferramentas e as condições hoje sejam diferentes, as dúvidas e as angústias são as mesmas, ou semelhantes, às que encontrava antes?

Eu sou basicamente um psicoterapeuta. Quando é necessário – e se são coisas que considero dentro das minhas capacidades –, eu também medico. Mas basicamente eu sou psicoterapeuta. E a esse nível as questões não mudaram assim tanto, não.

Quais são as principais dúvidas que lhe levam? Há um conjunto de questões mais frequentes nas neuroses que acompanha?

Deixe-me esclarecer uma coisa: traços neuróticos todos temos. Só se tornam complicados quando começam a tornar a nossa vida difícil. E nessa altura é preciso algum tipo de intervenção. Mas, e respondendo à sua pergunta, eu diria que nos casais, neste momento, a pergunta que se ouve com mais frequência é: “como é que conseguimos ficar juntos?” As pessoas têm noção que ainda gostam uma da outra, mas a relação do casal está muito difícil. Em termos individuais, acho que as pessoas vivem uma sensação de estarem empilhadas (nós cada vez vivemos mais em cima uns dos outros) e, ao mesmo tempo, terem solidão dentro delas.

Ao fim de 36 anos de consultas, já consegue encontrar respostas para essa questão, “como é que conseguimos ficar juntos”?

As respostas são diferentes para todas as pessoas. Mas, cuidado: não é suposto nós termos as respostas. Nós pensamos em voz alta, e em paralelo, com as pessoas. E, evidentemente, temos formação. E ao fim de tantos anos, temos experiência. Mas ou a pessoa chega a determinadas conclusões (que até podem não ser consensuais, eu posso não estar de acordo) que fazem sentido para ela, ou então nada feito.

E como é que o casal reage quando lhes diz que, na sua opinião, se calhar era melhor considerarem separarem-se?

Não é fácil dizer, mas às vezes é preciso fazê-lo. Eu, por razões que pode compreender, pela responsabilidade de uma opinião dessas, em geral digo “esta é a minha opinião, eu sugeria que ouvissem outras”. Mas as reações são imprevisíveis. Pode haver – e há – reações diferentes. E podem não concordar um com o outro, no momento. E você pode ter um casal que, no fundo, o que foi buscar foi a sua bênção de especialista para a separação. Para poderem dizer a si mesmos (e eu estou de acordo com isso): “tentámos tudo”. E até este magarefe diz que, realmente, se calhar o melhor é separarmo-nos civilizadamente.

Eles precisam disso para se apaziguarem e para terem a certeza.

Exatamente.

“Há pessoas que vão ao meu consultório, que nunca viram o Sexualidades, e dizem: ‘Os meus pais viam o seu programa quando eram namorados, eu disse que precisava de falar com alguém e eles disseram para ir falar com o tio Júlio’.”

Mas a maior parte dos casais que o procura, enquanto casais, fazem-no para salvar o casamento ou a relação, certo? São poucos os que o procuram – se é que há alguns – para os ajudar a preparar o fim da relação?

O que acontece é que às vezes, durante a terapia, se chega à conclusão que, afinal, o melhor é tentar preparar o fim. Você pode ouvir pessoas que dizem, e não são poucas, “esta é a nossa última tentativa para salvar a relação”. Mas não é a mesma coisa. Continuam a falar de salvar a relação. Se as coisas vão nessa direção, é evidente que as pessoas sofrem. Se as pessoas conseguem fazer com que isso aconteça de uma forma pacificada, já é uma enorme vitória. Nós temos que ter a noção que uma relação que se projetou no futuro é um projeto. E se o projeto falha, as pessoas têm todo o direito de ficar de luto, tristes e frustradas. Até lhe digo uma coisa: como profissional, fico mais tranquilo perante um período de tristeza do que perante uma ou duas pessoas que, numa fuga para a frente, no dia seguinte já estão noutra relação ou andam a correr as capelinhas todas da cidade para tentar uma situação de “sábado à noite”.

“Há pessoas que vão ao meu consultório, que nunca viram o Sexualidades, e dizem: ‘Os meus pais viam o seu programa quando eram namorados, eu disse que precisava de falar com alguém e eles disseram para ir falar com o tio Júlio’.”

Procuram-no muitas vezes para lhe dizer isso? Para falar de ter sido essa a solução que encontraram para lidar com a separação?

Isso é outro tipo de população. Tem toda a razão. Há muitas pessoas que vêm ter comigo e com os meus colegas e dizem assim: “Eu outro dia descobri que ando a fazer uma vida que nem sequer me apetece. Achei estranho”. Outra pessoa diz: “Eu acho que ando a sair à noite por obrigação. Isto não faz sentido nenhum. Por que é que isto está a acontecer?” Ora, o que está a acontecer é isso: a pessoa, inconscientemente, está com muito medo de se sentar e dizer: “Porque é que aquilo falhou? Como é que eu me sinto?” Nós vivemos numa sociedade que tem um verdadeiro horror a afetos desagradáveis. Ansiedade, tristeza, etc. Não é por acaso que, para grande parte das pessoas, a nostalgia é uma pastilha que desfaça tudo isto.

E também lhe ocorre ter perante si duas pessoas que, se cedessem aqui ou ali, se agissem desta ou de outra forma diferente, a coisa até resultaria entre eles? Mas um deles, ou os dois, não está a ver aquilo e tem vontade de intervir mais?

Seguramente.

E como faz, nesses casos?

As pessoas esperam de mim a verdade quanto à minha opinião. Eu posso dizer a um casal que acho que aquilo tem hipóteses, mas para isso era preciso que se encontrassem a meio caminho. E acho que isso não está a acontecer por esta ou aquela razão. Há uma regra de ouro da psicoterapia que diz assim: “Nós devemos dizer às pessoas aquilo que elas estão quase a descobrir por si mesmas”. Como compreende, há uma dimensão de arrogância nesta frase. Porque pressupõe que você tem a certeza que o que vai dizer está certo e que a pessoa vai lá chegar. Mas você pode estar completamente enganado. Agora, o pano de fundo está correto: você pode, por exemplo, em psicoterapia individual até, fazer uma interpretação que é magnífica, mas que está na altura errada. A pessoa não está preparada para aquilo. Daí uma regra que eu também segui sempre: quando as coisas são importantes numa psicoterapia, elas voltam à superfície. Se eu estou em dúvida sobre o que vou dizer e o timming em que o vou dizer, eu espero.

Na dúvida, não diz.

Na dúvida, não digo. Mas isso é com a medicina em geral: “primum non nocere” (antes de mais nada, não fazer mal). Eu hoje faço interpretações mais graduadas, mais lentas, do que fazia há trinta anos.

E isso torna o período de terapia de um paciente mais longo?

Não necessariamente. Eu cada vez estou mais convencido que a importância é a qualidade da escuta. Isto foi das coisas mais básicas que me ensinaram, a chamada abordagem rogeriana. Se a escuta é boa, basta que consiga reformular aquilo que a pessoa disse de um modo que faz com que ela se sinta absolutamente compreendida. E nesse caso você vê o salto que a pessoa dá na frase seguinte.

“Quando falamos de redes sociais, não podemos o velho [Marshall] McLuhan, que dizia: atenção, não é só o conteúdo; o meio também importa. Nós estamos a pensar, a escrever, a agir de maneira diferente por influência dos media, nomeadamente por influência da tecnologia.”

Isso vai-se aprimorando com o tempo, claro. Às vezes sente que tem pessoas do outro lado que, ainda que diga alguma coisa de várias formas e com abordagens diferentes, não estão verdadeiramente a chegar lá. Àquilo que gostaria que chegassem por si.

As pessoas podem estar em resistência. E tendo eu passado pelo divã, compreendo-as perfeitamente. De vez em quando, entender uma determinada intervenção significa, inconscientemente, entender que estamos a caminho de muita angústia. E como nenhum de nós aprecia isso particularmente, defendemo-nos. Vamos evitando.

As redes sociais vieram baralhar tudo isto. Acha que vieram tornar-nos mais frágeis, mais expostos? Vieram mostrar de outra forma as nossas imprecisões?

As redes sociais não nos transformaram. Nós somos capazes do melhor e do pior. Agora, que nos deram instrumentos para o fogo se espalhar a uma velocidade tremenda, ai isso deram.

E as coisas boas que temos? As emoções? Também ajudaram a trazer isso à tona.

Sim. Grande parte das pessoas – e até eu, inicialmente – têm um certo preconceito contra o Tinder. “É só para esquemas”, etc… Mas eu conheço pessoas que estão neste momento casadas e com filhos e que se conheceram no Tinder. Nós também somos um bicho preconceituoso. O que não podemos esquecer é de uma certa abordagem que defende que as redes sociais são aquilo que nós fazemos delas. E, portanto, não tem problema nenhum. Ora, isso é esquecermos do velho [Marshall] McLuhan, que dizia: atenção, não é só o conteúdo; o meio também importa. Nós estamos a pensar, a escrever, a agir de maneira diferente por influência dos media, nomeadamente por influência da tecnologia.

É um pouco isso que acontece quando vemos a pessoa mais pacata e calma do mundo, o nosso colega de trabalho da secretária ao lado, que nós julgamos conhecer bem, a transformar-se no maior sanguinário e no maior agitador atrás de um perfil do Facebook.

Alguns dos mecanismos já eram conhecidos. Lembre-se do que os sociólogos e os psicólogos nos ensinaram quanto à desculpabilização da multidão; quando somos muitos a fazê-lo, nenhum o fez. É a chamada socialização da culpa. Mas depois há mil e uma maneiras de ver e lidar com isto. Você pode criar perfis falsos, por exemplo. Há umas semanas, uma pessoa criou um perfil para me insultar. Eu bloqueei. A pessoa teve a paciência de ir até ao quarto perfil. Só parou no quarto.

E tinha a certeza que era a mesma pessoa a fazer isso?

Tinha que ser. Era imediato e era o mesmo insulto. Era copy-paste. Mas chegou a uma altura, quando veio o quarto perfil, em que eu pensei para mim: “tenho de ir trabalhar. O quinto perfil eu já não bloqueio”.

Como é que lida com isso? Com as reações das pessoas no seu Facebook? Interage muito com elas?

Aí, há os que têm sorte e os que não têm. E eu tenho muita sorte. Eu tenho 67 mil e tal seguidores e bloqueei uma meia dúzia de pessoas. O que é extraordinário.

Mas entre os outros 67 mil que não bloqueou, às vezes deve ler coisas de que não gosta.

Até entre eles. E aí é muito curioso, porque como o mural é meu, sinto-me na obrigação de pedir às pessoas para acalmarem as águas, porque se não acalmarem…

Faz mediação no Facebook entre os seus seguidores, quando entram em discussões?

Só em termos de estilo. Se eles estão numa discussão, eu não vou meter a minha opinião também. A não ser que ma peçam.

E consegue acompanhar, e vai lendo e seguindo? Tem tempo?

Não. Não posso. Mas com 67 mil seguidores, muitos dos quais a dar opiniões, às vezes tenho em mensagem privada alguém que diz: “o senhor nunca me dá um feed-back às minhas opiniões”. E eu baixo as orelhas e peço imensa desculpa, mas eu não posso.

Tem muitas pessoas a procurá-lo através do Facebook? Recebe muitas mensagens?

Sim, recebo. Nas mensagens privadas, quando são coisas que eu considero importantes, procuro responder. Às vezes com dois ou três dias de atraso, mas respondo.

Há muita solidão nas redes sociais?

Há. É terrível.

Ou as redes sociais vieram mostrar uma solidão que não estava visível?

Ah, mas seguramente. Lembro-me de uma senhora que me escreveu há pouco tempo, a propósito do livro [O Amor É, com Inês Meneses, ed. Porto Editora], e que descrevia a sua vida passada a cuidar dos pais, numa zona relativamente isolada deste país. E eu presumo que tenha por companhia quiçá a televisão, o Facebook, etc. Os media.

E as pessoas que estão sozinhas no meio da multidão que é a cidade e que são os seus empregos. Isso também existe muito? Encontra muito disso?

Sim. Uma coisa é estarmos sozinhos, outra coisa é estarmos sós. E nós podemos estar muito sós, não estando sozinhos. As pessoas às vezes escrevem dizendo: “Mas eu passo o dia rodeado por pessoas, porque é que há este sentimento de profunda solidão?”

A sua mãe teve Alzheimer. Passaram 12 anos desde o diagnóstico até que a sua mãe morreu. Já li coisas que escreveu sobre isso, já conversei consigo sobre isso. Sei que é um tema sobre o qual pensa muito. É um medo constante que tem? Com o tempo foi-se habituando a lidar melhor com ele?

Não.

Está a ficar pior?

Acho que é difícil ficar pior. A minha mãe teve Alzheimer. E meu pai demenciou também, mas por razões vasculares. Ambos os meus pais demenciaram. O que – você perguntará a quem quiser, que tenha passado pela mesma situação – é muito complicado. Nós temos à frente pessoas que já não são aquelas que nós conhecemos. A primeira vez que a sua mãe não o reconhece é um momento trágico na sua vida.

Lembra-se da primeira vez que isso aconteceu?

Lembro. Eu entrei no quarto e ela disse “muito prazer”. Claro que não fez bem nenhum ao quadro que eu fosse um tipo hipocondríaco, mas há muito poucas pessoas com esse tipo de estrutura familiar que não tenha passado por isto. Hoje em dia quantos de nós é que não têm alguém que demenciou na família, com o prolongamento da esperança média de vida. Há muito poucas pessoas que não passem a ter um sintoma clássico: nós começamos a duvidar dos nossos esquecimentos. “Isto é apenas um esquecimento, que acontece a todos nós, ou é um sinal de qualquer coisa.”

“Nós temos à frente pessoas que já não são aquelas que nós conhecemos. A primeira vez que a minha mãe não me reconheceu foi um momento trágico na minha vida. Eu entrei no quarto e ela disse ‘muito prazer’.”

Fala com os seus filhos sobre isso?

Falo. Como compreende, é mais fácil falar com o que “é da Máfia”, sendo ele psicólogo.

Como é que eles reagem? Afastam a conversa? Ouvem-no?

Mesmo antes disso, eu tinha uma sólida reputação se ser um lamechas. E, portanto, eles sistematicamente desvalorizam, dão exemplos daquela conversa em que eu me lembrei não sei de quê, para mostrar como a minha memória está magnífica, etc. E eu compreendo-lhes a ternura. O meu filho mais novo, porque é psicólogo, pôs em cima da mesa um argumento muito válido. Eu perguntei-lhe, de caras, uma coisa que é um erro terrível, mas provém da angústia. Eu disse-lhe: “Há uma coisa que eu não consigo pedir a mais ninguém, portanto peço-te a ti. Tu fazes-me testes para ver se eu tenho um défice cognitivo?” Atenção: ter um défice cognitivo não é sinónimo de ter Alzheimer, mas era só para avaliar. E meu filho mais novo disse: “Em primeiro lugar nunca seria eu a fazer”. O que é óbvio. A pergunta devia envergonhar qualquer tipo com dois anos de psiquiatria, quanto mais quarenta. [risos] Mas depois disse uma coisa que fazia todo o sentido. “Ó pai, tu tens tanto medo, que eu não considero que tu sejas capaz de fazer um teste desses em boas condições.”

Iria sugestionar o teste…

Sim.

E se calhar nem tem mais esquecimentos do que os naturais num homem de 69 anos.

Não sei. Depois uma pessoa desenvolve estratégias. Aqui é de desconfiar, porque acho que há um traço claro provocado pela ansiedade e pelo medo, mas, por exemplo, às vezes tenho uma linha de pensamento e esqueço-me de qualquer coisa. Se eu me encarniçar para me tentar lembrar daquilo, nunca mais. Se eu me distrair e pensar noutras coisas, depois a ideia volta. Haverá dezenas de pessoas que lhe dirão o mesmo.

Vamos falar dos seus filhos, o João e o Guilherme. Como é que se ensina um filho, neste caso dois, a falar sobre emoções?

Mas eu não ensinei.

Aprenderam naturalmente.

Sim. Lembro-me de uma entrevista do Guilherme à Anabela Mota Ribeiro em que ela perguntou: “Olha lá, tu com um pai sexólogo falas muito das tuas coisas?” E o Guilherme olhou para ela e disse: “Eu? Com o meu pai? Não! Tirei umas duas ou três dúvidas ao longo da vida e mais nada. Em termos gerais, o que eu procurei é que eles se sentissem à vontade para falar do que quisessem comigo. E isso, que normalmente nos preocupa, sobretudo na adolescência, é algo que se prepara na infância. Se eles não se sentem à vontade para falar consigo na infância, não vão começar a palrar na adolescência. Um deles uma vez colocou-me uma questão sobre sexualidade. E eu fiquei todo contente porque ela tinha confiança em mim, eu sabia a resposta, e sem me aperceber meti a segunda a avancei. E ele disse logo: “Parou! Já respondeste, não precisas de fazer uma conferência.” Lembro-me perfeitamente que ele virou as costas e foi jogar futebol e eu fiquei ali a pensar que era exatamente aquilo: eu ia-lhe fazer uma conferência. E ele não me tinha pedido isso, tinha-me feito uma pergunta.

“Procurei é que os meus filhos se sentissem à vontade para falar do que quisessem comigo. E isso, que normalmente nos preocupa sobretudo na adolescência, é algo que se prepara na infância. Se eles não se sentem à vontade para falar consigo na infância, não vão começar a palrar na adolescência.”

Fala muito mais com os seus filhos do que o seu pai falava consigo?

Sim.

Isto é uma pergunta e uma provocação.

Sim, eu percebi [risos]. Eu provavelmente falo tanto com os meus filhos como o meu pai falava com eles. Porque o meu pai mudou completamente de comportamento com os netos.

O seu pai era professor na Faculdade de Medicina [da Universidade do Porto] e foi seu professor. Como é que lidou com isso? Foi fácil.

Foi facílimo. Como sabe, as aulas teóricas não são obrigatórias. E as aulas do meu pai eram às 8h30 da manhã, portanto eu não punha lá os pés. E o meu pai sabia, porque ele saia para a faculdade e eu ficava em casa, calmamente. Ele sofreu um bocado na altura do exame. Aí sim. Por uma questão ética, ele não me ia examinar. Foi substituído por outros dois professores. Mas meu pai, que nunca me fez um reparo em todo o meu trajeto universitário, que nunca me pediu para tirar notas mais altas, estava preocupado porque era a disciplina dele.

Bacteriologia.

Sim. E meu pai sabia que eu não suportava a cadeira. Portanto, o meu pai teve medo que aquilo fosse desagradável. Nomeadamente para o professor que o ia substituir – com quem eu acabei por trabalhar mais tarde. Então, meu pai, que era muito parcimonioso, um dia não resistiu e meteu a cabeça pela minha sala de estudo e disse: “Meu filho, desculpe mas eu tenho de lhe perguntar isto. O meu filho está preparado para o exame?” E eu disse-lhe a verdade. “Oh pai, eu tenho uma média de 17. Eu sei como isto funciona. Vão-me fazer um exame para 17, no mínimo. Portanto, há uma data de matéria que não sai de certeza. A matéria mais simples para ter 10 e 11. Eu essa nem sequer a li. E o meu pai ficou branco como a cal da parede, não respondeu e virou costas. Eu cheguei ao exame e quem substituiu o meu pai disse-me: “Dr. Machado Vaz, importa-se que conversássemos um bocadinho acerca de vírus? Isto não é obrigatório, não faz sequer parte do programa.” Eu tinha estudado o tema forte e feio e disse que não, não me importava absolutamente nada. Veja lá ao tempo que isto foi, estávamos a começar a falar de vírus. Cheguei a casa e o meu pai perguntou como tinha corrido. “Tive 19. E até te digo mais: se fosses tu a estar lá e eu não fosse teu filho, às tantas tinha tirado 20.” O meu pai dava vintes. Era praticamente a única pessoa na faculdade que dava vintes. Ele olhou para mim e disse: “Teve 19?! Mas o meu filho não sabia a base.” “Pois é, mas essa base é para 10. A mim fizeram-me um exame para 17 ou mais.” El ficou escandalizado.

Conseguia conversar com o seu pai sobre alguns temas que os seus filhos falam consigo?

Não. Eu era muito mais próximo de minha mãe, com quem falava de tudo.

Era com a mãe Maria Clara que tinha as conversas sérias?

Era.

E com o pai, o nível de intimidade e conversas mais delicadas ia até onde?

Não ia muito longe. Foi um amor envergonhado.

Davam abraços?

Poucos.

E dizia-lhe que gostava dele?

Só no fim.

E ele a si?

Nem no fim. Em contrapartida, depois de meu pai morrer eu encontrei cartas que ele me escreveu e chorei baba e ranho. E eu não tive que as ler às pessoas, só tive de referir algumas coisas que lá estavam, mas ninguém teve coragem de me chamar lamechas. Foi, ao mesmo tempo, um privilégio espantoso e uma nostalgia do que podia ter sido a nossa relação se ele não fosse tão parcimonioso nos afetos. Não era só comigo. Acho que as únicas pessoas com que eu vi o meu pai deixar-se ir afetivamente foi com a minha mãe e com os netos.

“‘As mulheres são especiais’, disse-me a minha mãe. ‘Os homens podem ser bonitos e dançar bem, mas há um ponto em que as mulheres descobrem que precisam de conseguir conversar com eles. E se tu te transformares no rapaz com quem ela está habituada a conversar, podes ter uma surpresa.’ E acertou em cheio.”

Em compensação, com a sua mãe conversava bastante. E procurava-a bastante.

Sim, sim. Os meus desgostos de amor de adolescência foram todos partilhados com minha mãe, por exemplo.

Ela soube de todos? Ou dos principais, pelo menos?

Todos. De todos.

Era uma boa conselheira?

Era. Na realidade, minha mãe, com uma certa dose de “perversidade” deu-me o extraordinário conselho que fez com que eu não desesperasse em relação a uma das namoradas da adolescência. Eu achava que ela nunca olharia para mim e ia-me afastar, porque aquilo para mim era doloroso. E minha mãe, com uma enorme sageza disse-me: “Olha, vocês são amigos, não são? Então mantém-te próximo. As mulheres são especiais. Os homens podem ser bonitos, podem dançar bem” – era tudo aquilo que eu dizia que os outros tinham e eu não – “mas há sempre um ponto em que as mulheres descobrem que precisam de conseguir conversar com eles. E se tu te transformares no rapaz com quem ela está habituada a conversar, podes ter uma surpresa.” E acertou em cheio.

Voltando aos seus filhos. Eles cresceram com o pai a dizer-lhes que gostava deles e a dar-lhes abraços?

Ah sim. Penso que às vezes até me enxotaram. Mas lá está: nós precisamos de respeitar o espaço dos outros. Este meu pai, que era tão difícil no toque, religiosamente todas as noites me telefonava. “Meu filho, como foi o seu dia?” Eu lá dizia, e tal e tal, e no final ele dizia: “Pronto. Então agora vá descansar.”

Até que idade sua é que ele fez isso?

Eu tinha 50 quando ele morreu. Admito que nos últimos três ou quatro anos ele já estava diminuído. Mas veja até onde é que ele ia. Resultado: isso para mim era o modo natural de funcionar entre pai e filho. Até que um dia, um dos meus filhos disse-me assim: “Ó pai, tu não te ofendas, mas se calhar não precisávamos de falar ao telefone todos os dias”. E eu caí da pereira abaixo, como se diz vulgarmente. Eu não controlava aquilo, para mim era quase automático. Mas cada um tem as suas distâncias. Eu ouvi aquilo e tive um pensamento ainda mais angustiante. “Queres ver que o outro também acha e não disse nada?”

E perguntou ao outro…

Perguntei ao outro. Que teve uma resposta típica. “Bem, enquanto fores tu a pagar o telemóvel, podes fazê-lo.” Eu percebi imediatamente: ele estava de acordo com o irmão. Mas estas coisas são complicadas, porque eu disse: “Então, a partir de agora, vocês marcam o ritmo”. Não passaram três ou quatro meses até um me telefonar e dizer: “Ainda te lembras que sou teu filho?” Eu respondi que não podia ficar responsável por marcar o ritmo e depois cobrar. Mas ainda hoje eu faço isso. Eu sou parcimonioso em tomar eu a iniciativa. Prefiro que sejam eles.

Hoje em dia fala muito mais com o João, fruto da profissão que ele tem, do que com o Guilherme.

Da profissão e do estatuto. O João é solteiro. É quase meu vizinho. É muito combinarmos jantares uma hora antes. O Guilherme tem mulher e filhos. Com o Guilherme é muito mais habitual ele telefonar para mim e para o irmão e irmos jantar lá a casa. Mas sim, a profissão também conta. De vez em quando ao João apetece-lhe discutir casos comigo.

O psicólogo João Machado Vaz pede muitos conselhos ao psiquiatra Júlio Machado Vaz?

É até mais frequente – e é muito bonito e reconfortante – ele aparecer com um brilho nos olhos e dizer: “Pai, tenho um caso lindo. Vamos conversar um bocado sobre isso?” Isso dá um gozo extraordinário. Ainda por cima porque o João, além de psicólogo, doutorou-se em filosofia. Portanto, há determinadas áreas que ele domina e eu não e às tantas estou eu a aprender com ele. Metade, ou mais, da tese do João eu não entendo. É uma visão filosófica de determinada parte da história da psiquiatria. Em contrapartida, fico fascinado por aquilo estar maravilhosamente escrito.

Tem muito orgulho nos seus filhos…

Quando falo de orgulho, eu penso na Casa da Arquitectura [Matosinhos], ou na minha própria casa em Cantelães…

… que foram desenhadas pelo seu filho arquiteto, o Guilherme…

… e fico muito orgulhoso e cheio de inveja. E penso: isto fica. Na primeira vez que eu vi na Amazon a tese do João, voltei a pensar o mesmo. “O meu filho mais novo tem um livro na Amazon.” Fiquei outra vez cheio de orgulho e com inveja.

Veja AQUI a conversa completa (e excertos da entrevista):

– “Eu não estava preparado para a televisão” (4:45)

– O Amor É: 15 anos de cumplicidade na rádio com Júlio Machado Vaz (3:08)

– “Não preciso de imaginar o que é uma depressão. Eu sei” (5:15)

– “A pergunta que mais me fazem é: ‘Como conseguimos ficar juntos?'” (4:37)

– “Em terapia, o importante é a qualidade da escuta” (3:08)

– A solidão atrás da multidão nas redes sociais (3:02)

– “Lembro-me da primeira vez que a minha mãe não me reconheceu. Foi trágico” (3:52)

– Falar de emoções com os pais e respeitar o espaço dos filhos (5:45)

– Entrevista completa ao sexólogo mais conhecido em Portugal (01:01:31)

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Esta conversa com Júlio Machado Vaz faz parte da série de entrevistas NINGUÉM DISSE QUE ISTO IA SER FÁCIL, sobre família e relações, conduzidas pelo jornalista Paulo Farinha. Com psicólogos, psiquiatras, psicoterapeutas, terapeutas de casal, educadores, enfermeiros, pediatras, juízes, professores e outros profissionais que ajudam a entender as histórias do dia a dia dos filhos que estão a crescer, dos pais que estão a envelhecer, da relação que parece à deriva ou da família que não escolhemos mas com a qual temos de lidar. Veja aqui outros vídeos.

14/08/2019 por Paulo Farinha autor

Podia ter sido apenas psiquiatra, psicoterapeuta, sexólogo e professor. Mas, há trinta anos, começou uma aventura na rádio e, a partir daí, o comunicador de emoções nunca mais parou. Veio a televisão, os livros, as crónicas na imprensa, as conferências. Aos 69 anos, Júlio Machado Vaz continua a dar consultas e a fazer-se ouvir todos os dias na rádio. E continua a ser o nome mais conhecido em Portugal quando se fala de relações. E da relação entre razão e emoção. Uma longa entrevista de vida e carreira, da série “Ninguém Disse que Isto ia Ser Fácil“, com passagem pelos primeiros tempos na rádio, como a televisão lhe mudou a vida, a depressão que teve, a infância, a relação com a mãe cúmplice, o pai reservado e os filhos com quem fala de tudo. E, ao fim de trinta anos de consultas, como sabe quando deve dizer a um casal que está na altura de se separarem?

[veja o vídeo completo da conversa (em cima) ou leia a entrevista (em baixo)]

Entrevista de Paulo Farinha

Há mais de trinta anos que é uma presença regular na televisão. O Sexualidades começou há trinta anos, certo? Mas antes disso teve O Sexo dos Anjos.

Foi há trinta na rádio. Foi em 1989 que começou O Sexo dos Anjos [Rádio Nova].

Tem saudades do anonimato?

Não. Em primeiro lugar porque neste momento tenho muito mais anonimato do que tinha há dez ou quinze anos porque praticamente não tenho estado na televisão. E isso é completamente diferente. Depois, porque eu tive muita sorte ao longo de trinta anos. Tive episódios desagradáveis, mas em trinta anos foram uma minoria. As pessoas trataram-me muito bem.

Nunca teve stalkers?

Tive. Tive ameaças de morte, também. Num dos casos, com razão ou sem ela, eu achei que deveria participar à polícia. Mas atendendo ao perfil da pessoa eu depois não apresentei queixa. E não me arrependo.

Recorda-se da primeira vez que recebeu uma ameaça? O que é que se sente, da primeira vez que se lê uma coisa dessas?

Posso estar enganado, mas ameaças penso que só surgiram na televisão. Mas insultos já havia n’O Sexo dos Anjos.

Não lhe pergunto se ainda é insultado hoje em dia, porque com 67 mil seguidores no Facebook, presumo que seja insultado várias vezes.

Sim. Ainda há quinze dias ou três semanas fui ameaçado. Em relação ao O Amor É.

O que é que disseram?

Qualquer coisa do género: “Vais acabar mal se continuares a mentir e a provocar a discórdia no povo português com O Amor É.

Hoje em dia já está mais vacinado perante essas coisas?

Estou. O que não significa nada. Mas repare, é preciso ter esta noção: eu falava de sexualidade em biomédicas. Ninguém era obrigado a ir. E eu tinha os alunos de medicina, os alunos de psicologia (os vizinhos da porta ao lado) e comecei a descobrir que aparecia gente de arquitetura, de história, etc… E aquilo era muito agradável, era ao fim do dia, a malta conversava, eles punham as dúvidas que queriam, depois íamos pela rua, os que iam na mesma direção… Era um clube de amigos. Depois aconteceu O Sexo dos Anjos, que não teve grandes problemas. Agora, o que eu não estava era preparado para a televisão.

Começou na RTP com a Ivone Ferreira, certo?

Sim, mas isso eram coisas muito pontuais. Que aliás eram deliciosas. Como eu era o último, se o programa da manhã atrasava, a Ivone dizia assim: “E agora temos connosco o Dr. Júlio Machado Vaz, que nos vai falar de ejaculação prematura. Ou antes, não vai, ia, porque estamos na hora do noticiário. Então adeus e pronto.” Era divertidíssimo.

Por falar em ejaculação prematura…

Era, era… Agora, depois na televisão eu não estava preparado para mudar de registo. Nem queria. A televisão não tinha nada a ver. Eu lembro-me de o Carlos Cruz me perguntar: “você faz alguma ideia de quantas pessoas o estão a ver?” E eu: “Não”. E ele dizia assim “trezentos mil” ou “duzentos mil…” Esses zeros não querem dizer nada. Porque o programa era gravado e embora houvesse muitas vezes convidados, as partes eventualmente mais complicadas, digamos assim, eu fiz sempre questão de as fazer sozinho.

Para não condicionar ninguém…

Para não meter no barco outras pessoas. Tinha três operadores de câmara, tinha a realizadora e o Carlos Cruz na régie e isso para mim era completamente pacífico.

“Durante anos, havia muita gente no Porto que pensava que eu era de Lisboa porque fazia o programa [Sexualidades]. E como nós estamos habituados a que tudo se passa em Lisboa, havia pessoas que vinham ter comigo e diziam: ‘Então, está de visita?’ E eu respondia que não, que sou do Bonfim.”

Mas de repente, saber que trezentas mil pessoas estavam a ver aquilo…

De repente começaram a acontecer as coisas mais espantosas para alguém que não estava habituado a isso. Uma vez, eu estava em Lisboa parado num sinal de trânsito e um tipo numa moto meteu a mão pela janela aberta, bateu-me no ombro e disse: “continua que eu gosto de te ver”. E arrancou. Essa ficou-me porque eu fiquei completamente alapardado, como se diz aqui no Porto. Depois foi muito curioso ver as diferenças. As pessoas vinham ter comigo muito mais vezes, com muito mais à vontade em Lisboa do que no Porto.

Porquê?

Eu acho que tem a ver com o que é o Porto. O Porto é comedido.

É mais reservado. Mais metido para si.

É. Basta dizer-lhe isto: durante anos havia muita gente no Porto que pensava que eu era de Lisboa porque fazia o programa [Sexualidades]. E como nós estamos habituados a que tudo se passa em Lisboa, havia pessoas que vinham ter comigo e diziam: “Então, está de visita?” E eu respondia que não, que sou do Bonfim. Nasci cá. “Ah sim, então como é que faz?” É muito curioso. Lembro-me de o Carlos Cruz me dizer: “Quer que ponha alguém a selecionar casas para você depois ir escolher?” E eu: “Escolher para quê?” “Então, você vai ter que alugar ou comprar uma casa em Lisboa. Está cá a fazer o programa, depois vai fazer outros…” “Não, não. Eu vivo no Porto, venho cá e acabou.”

Ia todas as semanas a Lisboa gravar.

Sim, todas as semanas. Eu cheguei a vir de Lisboa às quatro da manhã para ainda vir dormir duas horas à minha cama.

Pelo palco que é a televisão, chegava a muita gente e que ajudou a mudar a vida de muitas pessoas. Na altura não tinha noção disso, pois não?

Não. Na altura não tinha.

E hoje?

Hoje o que acontece é que muita gente vem ter comigo. E ainda vem a falar dessa altura. E como passou muito tempo, já ouço outras gerações. Há pessoas que vão ao meu consultório, que nunca viram o Sexualidades, e dizem: “Os meus pais viam o seu programa quando eram namorados, eu disse que precisava de falar com alguém e eles disseram para ir falar com o tio Júlio”. Lá em casa sou conhecido pelo tio Júlio.

Sente o peso dessa responsabilidade?

Sinto. E também sinto uma enorme gratidão. Quando uma pessoa me diz “o senhor ajudou-me”, eu não posso aspirar a mais.

Estamos a fazer esta entrevista em Serralves. Já gravou aqui um programa de televisão com a Ana Mesquita.

Sim. No fundo, um derivado d’O Amor É.

A Ana foi justamente uma das suas cúmplices n’O Amor É. A segunda. Esteve dois anos com o António Macedo. Outros dois com a Ana Mesquita. E agora está há onze com a Inês Meneses. Era diferente falar dos temas do programa com o António, que é um homem, do que era falar com a Ana ou agora com a Inês?

Seguramente. Eu e o António somos praticamente da mesma idade. E, portanto, havia aquela sensação da mesma colheita. Depois, temos pontos de vista muito semelhantes em diversas áreas da vida – com exceção do futebol, em que eu sou benfiquista e ele é sportinguista. O tempo do programa com o António era assim uma festa de dois adolescentes.

Fala com ele com frequência?

Ao telefone. Menos do que devíamos, é verdade. Mas falo.

Tem saudades dele, quando passam muito tempo sem se verem?

Tenho. A véspera da gravação do programa era uma noite de gargalhada. Tínhamos de decidir do que é que íamos falar e era muito, muito bom. De tal maneira que nós fizemos muitas vezes o programa em direto.

E com a Ana? Dois anos com o António, dois anos depois com a Ana Mesquita. Quais eram as principais diferenças?

Eu compreendo perfeitamente a lógica da sugestão que me foi feita. O que me foi dito foi: “Vocês divertem-se desalmadamente, mas é bom não esquecermos que a metade maior da humanidade são mulheres.”

Havia temas que ficavam de fora por serem dois homens a falar deles?

Não. Mas embora eu não seja um defensor daquelas visões essencialistas (“isto é tipicamente masculino, aquilo é tipicamente feminino”), é evidente que [a diferença de género] enriquece. Eu não conhecia a Ana, mas um dia almoçamos ou jantámos juntos e, como hoje se diz, estávamos em sintonia, era uma boa onda, e começámos.

E agora, há onze anos, a Inês Meneses, a sua cúmplice mais antiga. De quem entretanto se tornou amigo…

É verdade. Como dos outros dois.

Quando está muito tempo sem falar com a Inês – quando chega o verão e vão de férias, por exemplo –, ficam com saudades um do outro?

Não posso falar por ela. Para mim, a primeira sensação é de estranheza. Temos os nossos rituais [para preparar o programa], falamos muito, sugestões para lá, sugestões para cá… Se a algum de nós não apetece muito falar de um tema, explica ao outro porquê… E depois há o ritual de fazer mesmo o programa. Todas as semanas.

Continuam a gravar à quarta-feira?

Todas as quartas-feiras. Aquilo faz parte da minha vida há 15 anos. Quer dizer, já não me lembro se com o António era também às quartas. Mas o que acontece é que em agosto nós ficamos livres para falarmos – a maior parte das vezes é por SMS ou por e-mail e de vez em quando telefonamo-nos – de coisas que não têm nada a ver com o programa.

Nunca se aborrecem um com o outro?

Bem, hoje em dia há muita gente que diz que o segredo de uma boa relação é não estarmos sistematicamente juntos. Se calhar nós os dois tiramos partido dessa teoria. Mas não. Não me lembro de algum conflito sério entre mim e a Inês.

Preparam o programa com alguns dias de antecedência, debatendo os temas, trocando mensagens… Ainda recebem muitas sugestões de ouvintes?

Agora menos. Mas a culpa é nossa. O que aconteceu é que, a determinada altura, nós já não conseguíamos controlar o e-mail que havia. Por isso acabámos por tomar muito mais as rédeas da questão.

O professor grava o programa no Porto. A Inês está em Lisboa. Sei que preferem a distância porque quando estão juntos ficam um pouco inibidos.

Eu não sei se isso ainda está atualizado. De nós os dois, quem argumentava dessa forma era a Inês. Posso-lhe perguntar, mas tenho muitas dúvidas que hoje em dia ela ainda se sinta inibida.

Para lá do programa (e sei que isso ocorre sobretudo no verão, já me disse), desabafa com a Inês quando tem algum problema, quando tem alguma questão que o preocupa?

Já aconteceu.

E ela consigo?

Ela já teve a gentileza de, de vez em quando, falar da sua vida comigo.

Além da Inês, quem é que o professor procura quando precisa de desabafar?

A tribo.

Os seus filhos e os amigos mais próximos…

Isso é complicado, porque por vezes há temas que eu não quero falar com os meus filhos (para não os preocupar) e esses são assuntos que eu abordo com amigos.

Tem um núcleo duro a quem recorre para falar?

Tenho. E – mea culpa, mea culpa – com o passar dos anos foi-se tornando difícil adicionar mais gente (mas acho que isso se passa com a maioria de nós). O núcleo duro tem estado estável nos últimos anos.

Quantas pessoas tem o seu núcleo duro?

Umas oito, dez pessoas.

Nas pessoas a quem recorre para desabafar, sente que não precisa de dizer tudo? Eles entendem as meias palavras, os silêncios…

Sim. Muitas vezes. E por duas razões principais: em primeiro lugar nós não somos tão originais como se possa pensar. Portanto, os problemas com que nos debatemos são comuns a muitos de nós. E depois há também a minha experiência profissional. Ou seja, sendo eu um psiquiatra basicamente de neuroses, estou há quase quarenta anos a ouvir gente com problemas semelhantes aos meus. Às vezes até tenho momentos de surpresa e penso: “Isto é uma extraordinária coincidência. Eu ando às voltas com coisas semelhantes.”

“O tempo do programa com o António [Macedo] era assim uma festa de dois adolescentes. Eu compreendo a lógica da sugestão que me foi feita. Disseram-me: ‘Vocês divertem-se desalmadamente, mas é bom não esquecermos que a metade maior da humanidade são mulheres.'”

Também já passou por um processo terapêutico. Antes dos 30 anos.

Sim. Aos 28 anos eu estive na Suíça, em estágio. Hoje, volvidos quarenta anos, pese embora o que em termos profissionais aprendi nesse quase ano, não tenho a menor dúvida que a minha decisão de ir para a Suíça

foi uma fuga face à depressão. Eu estava a deprimir.

Foi uma fuga para a frente?

Sim. Foi uma fuga para a frente.

Custou-lhe perceber que estava a passar por uma depressão?

Foi muito doloroso. Desde logo porque houve uma altura em que eu não conseguia trabalhar.

O que sentia? Não queria sair de casa?

Estava fóbico. O simples pensamento de ir fazer consulta cobria-me de suores frios.

Quanto tempo passou até procurar ajuda?

Eu ainda procurei ajuda na Suíça. Se tudo tivesse corrido idealmente, se eu me tivesse aguentado, eu teria feito a minha psicanálise lá e quem sabe se não poderia ter ficado na Suíça. Em termos de condições de trabalho eu estava satisfeitíssimo. E estava a aprender desalmadamente. Não só ao nível da psicoterapia, mas estava também a descobrir a sexologia, que em Portugal não existia.

Foi na Suíça que descobriu a sexologia clínica?

Quando cheguei a Portugal fiquei a saber que havia pessoas que tinham descoberto antes de mim. Como o Chico Allen Gomes, o [António Pacheco] Palha, o Afonso Albuquerque, etc. Mas eu não aguentei. Fui-me completamente abaixo e pirei-me para Portugal.

O facto de ter passado por um processo terapêutico e o facto de ter tido uma depressão fá-lo perceber melhor quem o procura nesse contexto?

Posso garantir uma coisa: quando as pessoas me dizem, em relação à ansiedade, em relação à depressão, “o senhor não imagina o que isto é”, eu respondo: “não preciso imaginar, eu sei o que isso é”. Agora, nós temos é estilos diferentes. Não estamos todos ansiosos da mesma maneira, não estamos todos deprimidos da mesma maneira. Basta dizer-lhe isto: quando eu disse – com a maior das ingenuidades, se calhar – que tinha estado deprimido, houve colegas meus, com a melhor das intenções, que me telefonaram. “Tu suicidaste-te profissionalmente. Quem é que vai querer pedir a ajuda de um psiquiatra que disse, a quem o quis ouvir, que tinha estado deprimido?”

Mas não devia ser o contrário? Isso não daria a esse psiquiatra ferramentas diferentes, um know how diferente, para lidar com essas situações em terapia?

Não sei. Sei que as pessoas confiaram em mim.

O facto de ser psiquiatra fez de si um paciente diferente? Mais resistente? Mais complicado?

Um dia você vem ao Porto, vamos ter com o hoje em dia meu bom amigo Dr. Jaime Milheiro, que foi meu psicanalista, e podemos perguntar-lhe isso. Em termos gerais, e porque eu próprio já fiz psicoterapia a colegas (e aqui é preciso distinguir entre colegas de outras especialidades e psiquiatras ou psicólogos), isso pode criar dificuldades adicionais.

Porquê?

À primeira vista nós pensamos: “São da mesma máfia, tudo isto corre mais depressa”. Ora, não necessariamente.

Porque eles defendem-se melhor?

Sim. Mas cuidado, não estou a dizer que é consciente. Até porque, como compreende, estar conscientemente a defender-se é uma coisa cara. Nós pagamos. Irmos para lá torpedear de propósito aquilo, ou somos muito ricos e é uma espécie de desporto, ou é burrice. Mas inconscientemente pode acontecer, sim. E não é só isso: como nós, perante uma determinada associação livre e determinada interpretação de ensaio do terapeuta (que está a tatear para ver se vai em boa direção), temos tendência para perceber o caminho que ele está a seguir, às vezes podemos entrar em competição. Ele começa a analisar e nós damos um pulo para a frente. Ora, isso em termos terapêuticos não é bom.

E não é cansativo? Desgastante? Às tantas andam ali numa espécie de braço de ferro. Quem é que está a analisar quem?

Aí está. E até lhe conto uma história: antes de eu ir para a Suíça, pedi ajuda a um homem de quem eu gostava muito e que era psiquiatra e psicoterapeuta. Ele conhecia-me, era visita da casa, e por isso nunca poderia ser meu terapeuta, mas eu sentia que não estava bem. E ele ouviu-me longamente e no fim disse-me uma coisa que eu nunca mais esqueci: “Olha Julinho, tu ainda vais ter que ir mais ao fundo do poço para poderes ser ajudado. Porque, da maneira que ainda estás, se fosses para psicoterapia ias tentar mostrar que és mais esperto do que eu. E se calhar conseguias, mas não melhoravas nada.”

“Quando eu disse que tinha estado deprimido, houve colegas meus que me telefonaram. ‘Tu suicidaste-te profissionalmente. Quem é que vai querer pedir a ajuda de um psiquiatra que disse, a quem o quis ouvir, que tinha estado deprimido?'”

Depara-se muitas vezes com pacientes seus psicólogos ou psiquiatras que ainda não foram suficientemente ao fundo do poço para poderem ser ajudados?

Não têm de ser psicólogos. Deparo-me com pessoas de todas as profissões que, dizia-me o meu controlador de casos: “vai ter de deprimir mais”.

O que é fazer controlo de casos?

Quando estamos em formação, fazemos uma sessão e vamos falar com alguém que sabe mais do que nós e dizemos o que a pessoa disse e o que nós respondemos. Falamos com alguém que sabe mais do que nós. Assim é que se aprende. Às vezes dizem-nos: “Você disse isso?! Numa altura tão precoce do tratamento?”

Alguém tem de avaliar…

Claro

Então, no geral, e aqui vai a pergunta do milhão de euros: um psiquiatra é um paciente muito complicado, menos complicado, mais ou menos, mais difícil?

Depende do psiquiatra. Agora, se nós vemos numa ficha numa primeira consulta que temos um “psi” pela frente, preparamo-nos para determinadas armadilhas do processo terapêutico que são mais prováveis de acontecer em alguém que tem uma profissão que começa por “psi” do que em alguém que é engenheiro hidráulico, por exemplo. Há homens e mulheres que vêm de profissões extremamente pragmáticas que buscam a precisão e que acabam por desistir do processo terapêutico porque aquilo não é suficientemente esquemático para eles. Mas quando aderem, não é nada raro que evoluam mais depressa do que as pessoas que estão do nosso lado, que têm um pensamento muito mais difuso, muito mais capaz de entrar no “se calhar”, na associação livre de ideias…

O pensamento analítico e a necessidade de arrumar as coisas em gavetas próprias – fruto da profissão que as pessoas têm – pode ajudá-las no processo terapêutico.

Sim. Mas é paradoxal. Porque, como compreende, a associação livre não permite gavetas. A nostalgia de uma certa precisão e de um pensamento mais funcional não é necessariamente motivo de atraso do processo terapêutico.

Dá consultas há mais de trinta anos. Não está cansado?

Estou. Neste momento, com a lista de espera que tenho e com as prioridades da minha vida atualmente, se eu estivesse em boa forma se calhar estaria a fazer mais consultas.

Tem uma lista de espera grande? Quanto tempo é que um paciente pode ter de esperar por uma primeira consulta?

Se não houver nenhuma desistência pode ter de esperar três meses.

Tem 69 anos. Não pensa na reforma?

Já estou reformado da faculdade há uns oito anos. Pedi a reforma antecipada. O ambiente não era saudável, na minha opinião.

“Em cursos de duzentas pessoas, eu tinha trinta ou quarenta que estavam interessados. Esse interesse dos que vão para casa aprofundar as questões e depois eram capazes de protestar porque eu não tinha levado um poema para dizer ou slides de pintura para mostrar ou música para ouvir, isso não tem preço.”

Já estava irrespirável?

Sim. A política universitária tem muito que se lhe diga. E quando chegamos à conclusão que a única coisa já que dá prazer – e é importante – é dar a aula aos alunos, deve pensar se vale a pena ou não. E eu vim-me embora. Não estou arrependido.

Era professor de Antropologia Médica a alunos do primeiro ano. Sente saudades daquela dinâmica de eles chegarem novos e ávidos de informação a uma faculdade?

Essa é uma das questões pela qual eu me sinto culpado. Acho que não me bati o suficiente para explicar que uma disciplina como Antropologia Médica não faz sentido no ciclo básico. Deve ser no fim do curso. Eu recebo hoje muitos convites para falar de antropologia médica (como políticas de saúde e envelhecimento), mas para gente que já é médica. Isto nos primeiros dois ou três anos de um curso de medicina não faz sentido.

Eles não conseguem perceber ainda?

Não. Mas, em cursos de duzentas pessoas, eu tinha trinta ou quarenta que estavam interessados. E esse interesse de trinta ou quarenta cabeças jovens fascinadas pelo tema, que vão para casa aprofundar as questões e que depois eram capazes de protestar porque eu não tinha levado um poema para dizer ou slides de pintura para mostrar ou música para ouvir, isso não tem preço. É eles manterem-nos sob pressão – a boa pressão – para nós não nos amodorrarmos. O que é muito fácil: você pode, ano após ano, ir repetindo a aula, não introduzir nada, não se atualizar, etc. Quando eles pressionam é muito bom.

Até quando é que vai dar consultas? Pensa nisso?

Eu vivo do meu trabalho. Enquanto estiver lúcido, vejo com muita dificuldade eu deixar de dar consultas. Se deixasse agora, preto no branco, não podia ter o estilo de vida que tenho. E que me agrada. Se você me perguntar: “É daquele género de gostar de garrafas de vinho e de espumante de centenas de euros?” Não, não sou. Mas não gosto de estar a fazer contas de cabeça quando, ao fim-de-semana, saio com a tribo para jantar. E cada vez menos – e isso veio com o passar dos anos – gosto de estar a perguntar a mim mesmo se é assisado ou não fugir para Barcelona para comer umas tapas e ver um jogo de futebol.

Fá-lo muitas vezes? Fugir para Barcelona. É a fuga principal?

É a fuga principal. Eu adoro Barcelona.

Falemos então de consultas. Há quanto tempo acompanha o seu paciente mais antigo?

Há uma pessoa que, não de uma forma perfeitamente estruturada, nunca deixou que se passassem mais de dois ou três meses sem aparecer. Há mais de trinta anos, seguramente.

Tornaram-se amigos, entretanto?

Não. Não posso. No momento em que eu me tornasse amigo, ela não podia aparecer mais no consultório. Mas se você me pergunta se eu tenho ternura por essa pessoa – e por outras –, claro que sim.

E há uma barreira que consegue mesmo criar ali para não sentir amizade?

Olhe, se quiser é assim: não exerço [risos].

“Uma relação que se projetou no futuro é um projeto. E se o projeto falha, as pessoas têm todo o direito de ficar de luto, tristes e frustradas.”

Quantas consultas dá por semana?

Entre 12 e 15. Os anos vão passando, sabe?

São 36 anos de consultas. Ainda que as ferramentas e as condições hoje sejam diferentes, as dúvidas e as angústias são as mesmas, ou semelhantes, às que encontrava antes?

Eu sou basicamente um psicoterapeuta. Quando é necessário – e se são coisas que considero dentro das minhas capacidades –, eu também medico. Mas basicamente eu sou psicoterapeuta. E a esse nível as questões não mudaram assim tanto, não.

Quais são as principais dúvidas que lhe levam? Há um conjunto de questões mais frequentes nas neuroses que acompanha?

Deixe-me esclarecer uma coisa: traços neuróticos todos temos. Só se tornam complicados quando começam a tornar a nossa vida difícil. E nessa altura é preciso algum tipo de intervenção. Mas, e respondendo à sua pergunta, eu diria que nos casais, neste momento, a pergunta que se ouve com mais frequência é: “como é que conseguimos ficar juntos?” As pessoas têm noção que ainda gostam uma da outra, mas a relação do casal está muito difícil. Em termos individuais, acho que as pessoas vivem uma sensação de estarem empilhadas (nós cada vez vivemos mais em cima uns dos outros) e, ao mesmo tempo, terem solidão dentro delas.

Ao fim de 36 anos de consultas, já consegue encontrar respostas para essa questão, “como é que conseguimos ficar juntos”?

As respostas são diferentes para todas as pessoas. Mas, cuidado: não é suposto nós termos as respostas. Nós pensamos em voz alta, e em paralelo, com as pessoas. E, evidentemente, temos formação. E ao fim de tantos anos, temos experiência. Mas ou a pessoa chega a determinadas conclusões (que até podem não ser consensuais, eu posso não estar de acordo) que fazem sentido para ela, ou então nada feito.

E como é que o casal reage quando lhes diz que, na sua opinião, se calhar era melhor considerarem separarem-se?

Não é fácil dizer, mas às vezes é preciso fazê-lo. Eu, por razões que pode compreender, pela responsabilidade de uma opinião dessas, em geral digo “esta é a minha opinião, eu sugeria que ouvissem outras”. Mas as reações são imprevisíveis. Pode haver – e há – reações diferentes. E podem não concordar um com o outro, no momento. E você pode ter um casal que, no fundo, o que foi buscar foi a sua bênção de especialista para a separação. Para poderem dizer a si mesmos (e eu estou de acordo com isso): “tentámos tudo”. E até este magarefe diz que, realmente, se calhar o melhor é separarmo-nos civilizadamente.

Eles precisam disso para se apaziguarem e para terem a certeza.

Exatamente.

“Há pessoas que vão ao meu consultório, que nunca viram o Sexualidades, e dizem: ‘Os meus pais viam o seu programa quando eram namorados, eu disse que precisava de falar com alguém e eles disseram para ir falar com o tio Júlio’.”

Mas a maior parte dos casais que o procura, enquanto casais, fazem-no para salvar o casamento ou a relação, certo? São poucos os que o procuram – se é que há alguns – para os ajudar a preparar o fim da relação?

O que acontece é que às vezes, durante a terapia, se chega à conclusão que, afinal, o melhor é tentar preparar o fim. Você pode ouvir pessoas que dizem, e não são poucas, “esta é a nossa última tentativa para salvar a relação”. Mas não é a mesma coisa. Continuam a falar de salvar a relação. Se as coisas vão nessa direção, é evidente que as pessoas sofrem. Se as pessoas conseguem fazer com que isso aconteça de uma forma pacificada, já é uma enorme vitória. Nós temos que ter a noção que uma relação que se projetou no futuro é um projeto. E se o projeto falha, as pessoas têm todo o direito de ficar de luto, tristes e frustradas. Até lhe digo uma coisa: como profissional, fico mais tranquilo perante um período de tristeza do que perante uma ou duas pessoas que, numa fuga para a frente, no dia seguinte já estão noutra relação ou andam a correr as capelinhas todas da cidade para tentar uma situação de “sábado à noite”.

“Há pessoas que vão ao meu consultório, que nunca viram o Sexualidades, e dizem: ‘Os meus pais viam o seu programa quando eram namorados, eu disse que precisava de falar com alguém e eles disseram para ir falar com o tio Júlio’.”

Procuram-no muitas vezes para lhe dizer isso? Para falar de ter sido essa a solução que encontraram para lidar com a separação?

Isso é outro tipo de população. Tem toda a razão. Há muitas pessoas que vêm ter comigo e com os meus colegas e dizem assim: “Eu outro dia descobri que ando a fazer uma vida que nem sequer me apetece. Achei estranho”. Outra pessoa diz: “Eu acho que ando a sair à noite por obrigação. Isto não faz sentido nenhum. Por que é que isto está a acontecer?” Ora, o que está a acontecer é isso: a pessoa, inconscientemente, está com muito medo de se sentar e dizer: “Porque é que aquilo falhou? Como é que eu me sinto?” Nós vivemos numa sociedade que tem um verdadeiro horror a afetos desagradáveis. Ansiedade, tristeza, etc. Não é por acaso que, para grande parte das pessoas, a nostalgia é uma pastilha que desfaça tudo isto.

E também lhe ocorre ter perante si duas pessoas que, se cedessem aqui ou ali, se agissem desta ou de outra forma diferente, a coisa até resultaria entre eles? Mas um deles, ou os dois, não está a ver aquilo e tem vontade de intervir mais?

Seguramente.

E como faz, nesses casos?

As pessoas esperam de mim a verdade quanto à minha opinião. Eu posso dizer a um casal que acho que aquilo tem hipóteses, mas para isso era preciso que se encontrassem a meio caminho. E acho que isso não está a acontecer por esta ou aquela razão. Há uma regra de ouro da psicoterapia que diz assim: “Nós devemos dizer às pessoas aquilo que elas estão quase a descobrir por si mesmas”. Como compreende, há uma dimensão de arrogância nesta frase. Porque pressupõe que você tem a certeza que o que vai dizer está certo e que a pessoa vai lá chegar. Mas você pode estar completamente enganado. Agora, o pano de fundo está correto: você pode, por exemplo, em psicoterapia individual até, fazer uma interpretação que é magnífica, mas que está na altura errada. A pessoa não está preparada para aquilo. Daí uma regra que eu também segui sempre: quando as coisas são importantes numa psicoterapia, elas voltam à superfície. Se eu estou em dúvida sobre o que vou dizer e o timming em que o vou dizer, eu espero.

Na dúvida, não diz.

Na dúvida, não digo. Mas isso é com a medicina em geral: “primum non nocere” (antes de mais nada, não fazer mal). Eu hoje faço interpretações mais graduadas, mais lentas, do que fazia há trinta anos.

E isso torna o período de terapia de um paciente mais longo?

Não necessariamente. Eu cada vez estou mais convencido que a importância é a qualidade da escuta. Isto foi das coisas mais básicas que me ensinaram, a chamada abordagem rogeriana. Se a escuta é boa, basta que consiga reformular aquilo que a pessoa disse de um modo que faz com que ela se sinta absolutamente compreendida. E nesse caso você vê o salto que a pessoa dá na frase seguinte.

“Quando falamos de redes sociais, não podemos o velho [Marshall] McLuhan, que dizia: atenção, não é só o conteúdo; o meio também importa. Nós estamos a pensar, a escrever, a agir de maneira diferente por influência dos media, nomeadamente por influência da tecnologia.”

Isso vai-se aprimorando com o tempo, claro. Às vezes sente que tem pessoas do outro lado que, ainda que diga alguma coisa de várias formas e com abordagens diferentes, não estão verdadeiramente a chegar lá. Àquilo que gostaria que chegassem por si.

As pessoas podem estar em resistência. E tendo eu passado pelo divã, compreendo-as perfeitamente. De vez em quando, entender uma determinada intervenção significa, inconscientemente, entender que estamos a caminho de muita angústia. E como nenhum de nós aprecia isso particularmente, defendemo-nos. Vamos evitando.

As redes sociais vieram baralhar tudo isto. Acha que vieram tornar-nos mais frágeis, mais expostos? Vieram mostrar de outra forma as nossas imprecisões?

As redes sociais não nos transformaram. Nós somos capazes do melhor e do pior. Agora, que nos deram instrumentos para o fogo se espalhar a uma velocidade tremenda, ai isso deram.

E as coisas boas que temos? As emoções? Também ajudaram a trazer isso à tona.

Sim. Grande parte das pessoas – e até eu, inicialmente – têm um certo preconceito contra o Tinder. “É só para esquemas”, etc… Mas eu conheço pessoas que estão neste momento casadas e com filhos e que se conheceram no Tinder. Nós também somos um bicho preconceituoso. O que não podemos esquecer é de uma certa abordagem que defende que as redes sociais são aquilo que nós fazemos delas. E, portanto, não tem problema nenhum. Ora, isso é esquecermos do velho [Marshall] McLuhan, que dizia: atenção, não é só o conteúdo; o meio também importa. Nós estamos a pensar, a escrever, a agir de maneira diferente por influência dos media, nomeadamente por influência da tecnologia.

É um pouco isso que acontece quando vemos a pessoa mais pacata e calma do mundo, o nosso colega de trabalho da secretária ao lado, que nós julgamos conhecer bem, a transformar-se no maior sanguinário e no maior agitador atrás de um perfil do Facebook.

Alguns dos mecanismos já eram conhecidos. Lembre-se do que os sociólogos e os psicólogos nos ensinaram quanto à desculpabilização da multidão; quando somos muitos a fazê-lo, nenhum o fez. É a chamada socialização da culpa. Mas depois há mil e uma maneiras de ver e lidar com isto. Você pode criar perfis falsos, por exemplo. Há umas semanas, uma pessoa criou um perfil para me insultar. Eu bloqueei. A pessoa teve a paciência de ir até ao quarto perfil. Só parou no quarto.

E tinha a certeza que era a mesma pessoa a fazer isso?

Tinha que ser. Era imediato e era o mesmo insulto. Era copy-paste. Mas chegou a uma altura, quando veio o quarto perfil, em que eu pensei para mim: “tenho de ir trabalhar. O quinto perfil eu já não bloqueio”.

Como é que lida com isso? Com as reações das pessoas no seu Facebook? Interage muito com elas?

Aí, há os que têm sorte e os que não têm. E eu tenho muita sorte. Eu tenho 67 mil e tal seguidores e bloqueei uma meia dúzia de pessoas. O que é extraordinário.

Mas entre os outros 67 mil que não bloqueou, às vezes deve ler coisas de que não gosta.

Até entre eles. E aí é muito curioso, porque como o mural é meu, sinto-me na obrigação de pedir às pessoas para acalmarem as águas, porque se não acalmarem…

Faz mediação no Facebook entre os seus seguidores, quando entram em discussões?

Só em termos de estilo. Se eles estão numa discussão, eu não vou meter a minha opinião também. A não ser que ma peçam.

E consegue acompanhar, e vai lendo e seguindo? Tem tempo?

Não. Não posso. Mas com 67 mil seguidores, muitos dos quais a dar opiniões, às vezes tenho em mensagem privada alguém que diz: “o senhor nunca me dá um feed-back às minhas opiniões”. E eu baixo as orelhas e peço imensa desculpa, mas eu não posso.

Tem muitas pessoas a procurá-lo através do Facebook? Recebe muitas mensagens?

Sim, recebo. Nas mensagens privadas, quando são coisas que eu considero importantes, procuro responder. Às vezes com dois ou três dias de atraso, mas respondo.

Há muita solidão nas redes sociais?

Há. É terrível.

Ou as redes sociais vieram mostrar uma solidão que não estava visível?

Ah, mas seguramente. Lembro-me de uma senhora que me escreveu há pouco tempo, a propósito do livro [O Amor É, com Inês Meneses, ed. Porto Editora], e que descrevia a sua vida passada a cuidar dos pais, numa zona relativamente isolada deste país. E eu presumo que tenha por companhia quiçá a televisão, o Facebook, etc. Os media.

E as pessoas que estão sozinhas no meio da multidão que é a cidade e que são os seus empregos. Isso também existe muito? Encontra muito disso?

Sim. Uma coisa é estarmos sozinhos, outra coisa é estarmos sós. E nós podemos estar muito sós, não estando sozinhos. As pessoas às vezes escrevem dizendo: “Mas eu passo o dia rodeado por pessoas, porque é que há este sentimento de profunda solidão?”

A sua mãe teve Alzheimer. Passaram 12 anos desde o diagnóstico até que a sua mãe morreu. Já li coisas que escreveu sobre isso, já conversei consigo sobre isso. Sei que é um tema sobre o qual pensa muito. É um medo constante que tem? Com o tempo foi-se habituando a lidar melhor com ele?

Não.

Está a ficar pior?

Acho que é difícil ficar pior. A minha mãe teve Alzheimer. E meu pai demenciou também, mas por razões vasculares. Ambos os meus pais demenciaram. O que – você perguntará a quem quiser, que tenha passado pela mesma situação – é muito complicado. Nós temos à frente pessoas que já não são aquelas que nós conhecemos. A primeira vez que a sua mãe não o reconhece é um momento trágico na sua vida.

Lembra-se da primeira vez que isso aconteceu?

Lembro. Eu entrei no quarto e ela disse “muito prazer”. Claro que não fez bem nenhum ao quadro que eu fosse um tipo hipocondríaco, mas há muito poucas pessoas com esse tipo de estrutura familiar que não tenha passado por isto. Hoje em dia quantos de nós é que não têm alguém que demenciou na família, com o prolongamento da esperança média de vida. Há muito poucas pessoas que não passem a ter um sintoma clássico: nós começamos a duvidar dos nossos esquecimentos. “Isto é apenas um esquecimento, que acontece a todos nós, ou é um sinal de qualquer coisa.”

“Nós temos à frente pessoas que já não são aquelas que nós conhecemos. A primeira vez que a minha mãe não me reconheceu foi um momento trágico na minha vida. Eu entrei no quarto e ela disse ‘muito prazer’.”

Fala com os seus filhos sobre isso?

Falo. Como compreende, é mais fácil falar com o que “é da Máfia”, sendo ele psicólogo.

Como é que eles reagem? Afastam a conversa? Ouvem-no?

Mesmo antes disso, eu tinha uma sólida reputação se ser um lamechas. E, portanto, eles sistematicamente desvalorizam, dão exemplos daquela conversa em que eu me lembrei não sei de quê, para mostrar como a minha memória está magnífica, etc. E eu compreendo-lhes a ternura. O meu filho mais novo, porque é psicólogo, pôs em cima da mesa um argumento muito válido. Eu perguntei-lhe, de caras, uma coisa que é um erro terrível, mas provém da angústia. Eu disse-lhe: “Há uma coisa que eu não consigo pedir a mais ninguém, portanto peço-te a ti. Tu fazes-me testes para ver se eu tenho um défice cognitivo?” Atenção: ter um défice cognitivo não é sinónimo de ter Alzheimer, mas era só para avaliar. E meu filho mais novo disse: “Em primeiro lugar nunca seria eu a fazer”. O que é óbvio. A pergunta devia envergonhar qualquer tipo com dois anos de psiquiatria, quanto mais quarenta. [risos] Mas depois disse uma coisa que fazia todo o sentido. “Ó pai, tu tens tanto medo, que eu não considero que tu sejas capaz de fazer um teste desses em boas condições.”

Iria sugestionar o teste…

Sim.

E se calhar nem tem mais esquecimentos do que os naturais num homem de 69 anos.

Não sei. Depois uma pessoa desenvolve estratégias. Aqui é de desconfiar, porque acho que há um traço claro provocado pela ansiedade e pelo medo, mas, por exemplo, às vezes tenho uma linha de pensamento e esqueço-me de qualquer coisa. Se eu me encarniçar para me tentar lembrar daquilo, nunca mais. Se eu me distrair e pensar noutras coisas, depois a ideia volta. Haverá dezenas de pessoas que lhe dirão o mesmo.

Vamos falar dos seus filhos, o João e o Guilherme. Como é que se ensina um filho, neste caso dois, a falar sobre emoções?

Mas eu não ensinei.

Aprenderam naturalmente.

Sim. Lembro-me de uma entrevista do Guilherme à Anabela Mota Ribeiro em que ela perguntou: “Olha lá, tu com um pai sexólogo falas muito das tuas coisas?” E o Guilherme olhou para ela e disse: “Eu? Com o meu pai? Não! Tirei umas duas ou três dúvidas ao longo da vida e mais nada. Em termos gerais, o que eu procurei é que eles se sentissem à vontade para falar do que quisessem comigo. E isso, que normalmente nos preocupa, sobretudo na adolescência, é algo que se prepara na infância. Se eles não se sentem à vontade para falar consigo na infância, não vão começar a palrar na adolescência. Um deles uma vez colocou-me uma questão sobre sexualidade. E eu fiquei todo contente porque ela tinha confiança em mim, eu sabia a resposta, e sem me aperceber meti a segunda a avancei. E ele disse logo: “Parou! Já respondeste, não precisas de fazer uma conferência.” Lembro-me perfeitamente que ele virou as costas e foi jogar futebol e eu fiquei ali a pensar que era exatamente aquilo: eu ia-lhe fazer uma conferência. E ele não me tinha pedido isso, tinha-me feito uma pergunta.

“Procurei é que os meus filhos se sentissem à vontade para falar do que quisessem comigo. E isso, que normalmente nos preocupa sobretudo na adolescência, é algo que se prepara na infância. Se eles não se sentem à vontade para falar consigo na infância, não vão começar a palrar na adolescência.”

Fala muito mais com os seus filhos do que o seu pai falava consigo?

Sim.

Isto é uma pergunta e uma provocação.

Sim, eu percebi [risos]. Eu provavelmente falo tanto com os meus filhos como o meu pai falava com eles. Porque o meu pai mudou completamente de comportamento com os netos.

O seu pai era professor na Faculdade de Medicina [da Universidade do Porto] e foi seu professor. Como é que lidou com isso? Foi fácil.

Foi facílimo. Como sabe, as aulas teóricas não são obrigatórias. E as aulas do meu pai eram às 8h30 da manhã, portanto eu não punha lá os pés. E o meu pai sabia, porque ele saia para a faculdade e eu ficava em casa, calmamente. Ele sofreu um bocado na altura do exame. Aí sim. Por uma questão ética, ele não me ia examinar. Foi substituído por outros dois professores. Mas meu pai, que nunca me fez um reparo em todo o meu trajeto universitário, que nunca me pediu para tirar notas mais altas, estava preocupado porque era a disciplina dele.

Bacteriologia.

Sim. E meu pai sabia que eu não suportava a cadeira. Portanto, o meu pai teve medo que aquilo fosse desagradável. Nomeadamente para o professor que o ia substituir – com quem eu acabei por trabalhar mais tarde. Então, meu pai, que era muito parcimonioso, um dia não resistiu e meteu a cabeça pela minha sala de estudo e disse: “Meu filho, desculpe mas eu tenho de lhe perguntar isto. O meu filho está preparado para o exame?” E eu disse-lhe a verdade. “Oh pai, eu tenho uma média de 17. Eu sei como isto funciona. Vão-me fazer um exame para 17, no mínimo. Portanto, há uma data de matéria que não sai de certeza. A matéria mais simples para ter 10 e 11. Eu essa nem sequer a li. E o meu pai ficou branco como a cal da parede, não respondeu e virou costas. Eu cheguei ao exame e quem substituiu o meu pai disse-me: “Dr. Machado Vaz, importa-se que conversássemos um bocadinho acerca de vírus? Isto não é obrigatório, não faz sequer parte do programa.” Eu tinha estudado o tema forte e feio e disse que não, não me importava absolutamente nada. Veja lá ao tempo que isto foi, estávamos a começar a falar de vírus. Cheguei a casa e o meu pai perguntou como tinha corrido. “Tive 19. E até te digo mais: se fosses tu a estar lá e eu não fosse teu filho, às tantas tinha tirado 20.” O meu pai dava vintes. Era praticamente a única pessoa na faculdade que dava vintes. Ele olhou para mim e disse: “Teve 19?! Mas o meu filho não sabia a base.” “Pois é, mas essa base é para 10. A mim fizeram-me um exame para 17 ou mais.” El ficou escandalizado.

Conseguia conversar com o seu pai sobre alguns temas que os seus filhos falam consigo?

Não. Eu era muito mais próximo de minha mãe, com quem falava de tudo.

Era com a mãe Maria Clara que tinha as conversas sérias?

Era.

E com o pai, o nível de intimidade e conversas mais delicadas ia até onde?

Não ia muito longe. Foi um amor envergonhado.

Davam abraços?

Poucos.

E dizia-lhe que gostava dele?

Só no fim.

E ele a si?

Nem no fim. Em contrapartida, depois de meu pai morrer eu encontrei cartas que ele me escreveu e chorei baba e ranho. E eu não tive que as ler às pessoas, só tive de referir algumas coisas que lá estavam, mas ninguém teve coragem de me chamar lamechas. Foi, ao mesmo tempo, um privilégio espantoso e uma nostalgia do que podia ter sido a nossa relação se ele não fosse tão parcimonioso nos afetos. Não era só comigo. Acho que as únicas pessoas com que eu vi o meu pai deixar-se ir afetivamente foi com a minha mãe e com os netos.

“‘As mulheres são especiais’, disse-me a minha mãe. ‘Os homens podem ser bonitos e dançar bem, mas há um ponto em que as mulheres descobrem que precisam de conseguir conversar com eles. E se tu te transformares no rapaz com quem ela está habituada a conversar, podes ter uma surpresa.’ E acertou em cheio.”

Em compensação, com a sua mãe conversava bastante. E procurava-a bastante.

Sim, sim. Os meus desgostos de amor de adolescência foram todos partilhados com minha mãe, por exemplo.

Ela soube de todos? Ou dos principais, pelo menos?

Todos. De todos.

Era uma boa conselheira?

Era. Na realidade, minha mãe, com uma certa dose de “perversidade” deu-me o extraordinário conselho que fez com que eu não desesperasse em relação a uma das namoradas da adolescência. Eu achava que ela nunca olharia para mim e ia-me afastar, porque aquilo para mim era doloroso. E minha mãe, com uma enorme sageza disse-me: “Olha, vocês são amigos, não são? Então mantém-te próximo. As mulheres são especiais. Os homens podem ser bonitos, podem dançar bem” – era tudo aquilo que eu dizia que os outros tinham e eu não – “mas há sempre um ponto em que as mulheres descobrem que precisam de conseguir conversar com eles. E se tu te transformares no rapaz com quem ela está habituada a conversar, podes ter uma surpresa.” E acertou em cheio.

Voltando aos seus filhos. Eles cresceram com o pai a dizer-lhes que gostava deles e a dar-lhes abraços?

Ah sim. Penso que às vezes até me enxotaram. Mas lá está: nós precisamos de respeitar o espaço dos outros. Este meu pai, que era tão difícil no toque, religiosamente todas as noites me telefonava. “Meu filho, como foi o seu dia?” Eu lá dizia, e tal e tal, e no final ele dizia: “Pronto. Então agora vá descansar.”

Até que idade sua é que ele fez isso?

Eu tinha 50 quando ele morreu. Admito que nos últimos três ou quatro anos ele já estava diminuído. Mas veja até onde é que ele ia. Resultado: isso para mim era o modo natural de funcionar entre pai e filho. Até que um dia, um dos meus filhos disse-me assim: “Ó pai, tu não te ofendas, mas se calhar não precisávamos de falar ao telefone todos os dias”. E eu caí da pereira abaixo, como se diz vulgarmente. Eu não controlava aquilo, para mim era quase automático. Mas cada um tem as suas distâncias. Eu ouvi aquilo e tive um pensamento ainda mais angustiante. “Queres ver que o outro também acha e não disse nada?”

E perguntou ao outro…

Perguntei ao outro. Que teve uma resposta típica. “Bem, enquanto fores tu a pagar o telemóvel, podes fazê-lo.” Eu percebi imediatamente: ele estava de acordo com o irmão. Mas estas coisas são complicadas, porque eu disse: “Então, a partir de agora, vocês marcam o ritmo”. Não passaram três ou quatro meses até um me telefonar e dizer: “Ainda te lembras que sou teu filho?” Eu respondi que não podia ficar responsável por marcar o ritmo e depois cobrar. Mas ainda hoje eu faço isso. Eu sou parcimonioso em tomar eu a iniciativa. Prefiro que sejam eles.

Hoje em dia fala muito mais com o João, fruto da profissão que ele tem, do que com o Guilherme.

Da profissão e do estatuto. O João é solteiro. É quase meu vizinho. É muito combinarmos jantares uma hora antes. O Guilherme tem mulher e filhos. Com o Guilherme é muito mais habitual ele telefonar para mim e para o irmão e irmos jantar lá a casa. Mas sim, a profissão também conta. De vez em quando ao João apetece-lhe discutir casos comigo.

O psicólogo João Machado Vaz pede muitos conselhos ao psiquiatra Júlio Machado Vaz?

É até mais frequente – e é muito bonito e reconfortante – ele aparecer com um brilho nos olhos e dizer: “Pai, tenho um caso lindo. Vamos conversar um bocado sobre isso?” Isso dá um gozo extraordinário. Ainda por cima porque o João, além de psicólogo, doutorou-se em filosofia. Portanto, há determinadas áreas que ele domina e eu não e às tantas estou eu a aprender com ele. Metade, ou mais, da tese do João eu não entendo. É uma visão filosófica de determinada parte da história da psiquiatria. Em contrapartida, fico fascinado por aquilo estar maravilhosamente escrito.

Tem muito orgulho nos seus filhos…

Quando falo de orgulho, eu penso na Casa da Arquitectura [Matosinhos], ou na minha própria casa em Cantelães…

… que foram desenhadas pelo seu filho arquiteto, o Guilherme…

… e fico muito orgulhoso e cheio de inveja. E penso: isto fica. Na primeira vez que eu vi na Amazon a tese do João, voltei a pensar o mesmo. “O meu filho mais novo tem um livro na Amazon.” Fiquei outra vez cheio de orgulho e com inveja.

Veja AQUI a conversa completa (e excertos da entrevista):

– “Eu não estava preparado para a televisão” (4:45)

– O Amor É: 15 anos de cumplicidade na rádio com Júlio Machado Vaz (3:08)

– “Não preciso de imaginar o que é uma depressão. Eu sei” (5:15)

– “A pergunta que mais me fazem é: ‘Como conseguimos ficar juntos?'” (4:37)

– “Em terapia, o importante é a qualidade da escuta” (3:08)

– A solidão atrás da multidão nas redes sociais (3:02)

– “Lembro-me da primeira vez que a minha mãe não me reconheceu. Foi trágico” (3:52)

– Falar de emoções com os pais e respeitar o espaço dos filhos (5:45)

– Entrevista completa ao sexólogo mais conhecido em Portugal (01:01:31)

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Esta conversa com Júlio Machado Vaz faz parte da série de entrevistas NINGUÉM DISSE QUE ISTO IA SER FÁCIL, sobre família e relações, conduzidas pelo jornalista Paulo Farinha. Com psicólogos, psiquiatras, psicoterapeutas, terapeutas de casal, educadores, enfermeiros, pediatras, juízes, professores e outros profissionais que ajudam a entender as histórias do dia a dia dos filhos que estão a crescer, dos pais que estão a envelhecer, da relação que parece à deriva ou da família que não escolhemos mas com a qual temos de lidar. Veja aqui outros vídeos.

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