Adeus, sagrada família

26-09-2018
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ANGOLA ADEUS, SAGRADA FAMÍLIA António Costa chega na segunda-feira a Luanda para uma visita de dois dias a Angola. Vai encontrar um país diferente do que aquele que João Lourenço herdou há cerca de um ano. José Eduardo dos Santos, que governou com mão de ferro durante 40 anos, deixou o MPLA e é agora um homem só e amargurado TEXTO GUSTAVO COSTA EM LUANDA

Há uma semana, José Eduardo dos Santos abandonava a vida política ativa, mesmo depois de ter feito mea culpa pelos erros de governação, já ninguém dava voltas à cabeça para perceber o alcance da acusação tão demolidora que o novo líder do MPLA desferiu para pôr definitivamente em causa a cumplicidade deste com a corrupção. “Nessa cruzada de luta, o MPLA deve tomar a dianteira, ocupar a primeira trincheira, assumir o papel de vanguarda, mesmo que os primeiros a tombar sejam militantes ou altos dirigentes do partido que tenham cometido algum delito ou que, pelo seu comportamento social, estejam a sujar o seu bom nome”, disse, debaixo de uma estrondosa ovação, João Lourenço. E rematou: “No caso destes últimos serem dirigentes do MPLA, não permitiremos que comportamentos condenáveis desta minoria gananciosa manchem o bom nome do partido.” O recado estava dado e tinha destinatários bem identificados — José Eduardo dos Santos, alguns dos seus filhos e alguns governantes e deputados a contas com a Justiça por estarem envolvidos em alegados casos de corrupção. Naquele momento, nunca como antes, ganharia atualidade o poema de Drummond de Andrade: “E agora, José?/ A festa acabou,/ a luz apagou,/ o povo sumiu,/ a noite esfriou”.

José Eduardo dos Santos não queria acreditar que, já há um ano, estava em marcha uma irreversível reviravolta que haveria de o destronar da condição de pretenso “alfa e ómega” da política angolana em que havia sido erigido, nos últimos 39 anos, por sonâmbulo desejo dos seus seguidores. Rodeado por um círculo de usurários, alguns dos quais integrantes do próprio clã familiar, e “enleado até ao pescoço numa teia de compromissos obscuros, o antigo líder do MPLA deixou empalidecer de vez um passado de relevo patriótico”, afirma o investigador Fernando Pereira. Doutrinado na mesma escola soviética que o seu antecessor, João Lourenço era visto como um “oficial às ordens” de Dos Santos Há um ano, após quatro décadas de um regime oligárquico, os angolanos viam ascender ao poder um novo rosto: João Lourenço. Folheava-se aqui uma nova página na história de um país, que se preparava para enterrar um modelo de liderança e de governação ineficaz, que o tempo se encarregara, há muito, de declarar falido. Iniciava-se então um tempo em que ninguém se lembraria do papel-chave desempenhado por Zedu na pacificação de Angola, na preservação da unidade e no estabelecimento do espírito de reconciliação nacional.

O que, por certo, este não esperaria é que após ter participado no seu último ato em público como Presidente da República numerosa parte da guarda pretoriana que, protegida por ilimitada impunidade, durante anos se vergou à sua figura, se bandeasse para o outro lado, depois de se ter apropriado dos mais apetecíveis recursos do Estado. Agora, na companhia do novo Presidente estava Ana Dias Lourenço, antiga ministra do Plano e alta funcionária do Banco Mundial, cuja competência técnica e experiência governativa passaram a constituir, desde o primeiro dia, ativos de peso no apoio às reformas encetadas pelo marido. “Está a impor-se além do estatuto decorativo das anteriores primeiras-damas”, diz Rosalina Sebastião, professora universitária. Depois de uma longa travessia do deserto, o surgimento do marido no firmamento da política angolana pressagiava para muita gente a continuação da aula anterior. Doutrinado na mesma escola soviética que o seu antecessor, este antigo comissário político das FAPLA — o extinto exército do MPLA — foi visto em diversos círculos políticos como mais um “oficial às ordens” de José Eduardo dos Santos. O líder da UNITA, o maior partido da oposição, Isaías Samakuva, num comentário jocoso, chegou mesmo a apelidá-lo de “motorista” que seguiria a rota indicada pelo “patrão”. João Lourenço encontrou um país com um nível de corrupção galopante, um tecido social destroçado e uma economia em escombros João Lourenço anotou a lista dos que no poder e na oposição achavam que tudo não passaria de uma mudança de cosmética e não disse nada. “Como o outro, também é de parcas palavras, mas é enérgico a agir”, diz um colega de turma da antiga Escola Industrial de Silva Porto. No seio do MPLA não faltava também quem afiançasse que João Lourenço, depois de ter sido escolhido por José Eduardo dos Santos para sucessor, como sinal de gratidão, não passaria de um “pau mandado” do antigo Presidente. Em vésperas de abandonar o poder, ao tomar decisões destinadas a limitar o poder do sucessor e com este gesto dar um sinal claro de que pretendia transformar o substituto num “Presidente-fantoche”, José Eduardo dos Santos terá cavado, em definitivo, a sua “sepultura política”. Nunca, como naquele momento, ganhara tanta acutilância a famosa imagem, que esteve sempre colada à sua agenda secreta: “Vou, mas fico, e estão aqui os deveres de casa...” O jogo de sombras de Zedu era ali exposto. Essa tentativa de transformar o novo Presidente numa presa dócil e a pretensão de manter, mesmo à distância, o controlo do país, acabariam por ter um efeito de ricochete em vários círculos da sociedade. Conhecedor de todos os cantos da casa, João Lourenço sabia que ia substituir um político que se diz ser dotado de um notável instinto maquiavélico, mas sabia também que estaria diante de um homem reservado e rancoroso, que, no passado, já ficara meses sem dirigir a palavra ao chefe da sua guarda pessoal. Depois de ter desafiado o antigo líder do MPLA “a ser escravo da sua palavra”, em alusão ao anúncio do abandono da Presidência do país em 2001, o próprio João Lourenço não esquecia o fogacho de intrigas que, sem contemplações, haveriam de ser disparadas contra ele e, mais tarde, o ostracismo a que acabaria por ser votado pelo seu antigo tutor. Observador atento da forma humilhante como este havia reduzido a pó as expectativas políticas e pessoais de Fernando Dias dos Santos, “Nandó”, e de Manuel Vicente enquanto seus vice-presidentes, o novo chefe de Estado preferiu, por esta razão, entrar em cena com pés de lã, sem desvendar as cartas. “A bonomia era falsa, as aparências não passavam de mera coincidência e fez bem para não espantar a caça”, defende o ativista Frederico Jeremias. Com a lição bem estudada, João Lourenço ignorou todos os seus detratores, e os meses seguintes viriam a demonstrar exatamente o contrário, consumando a revolta do feitiço contra o feiticeiro: da mesma forma que Eduardo dos Santos se desfizera da herança de Agostinho Neto, João Lourenço, com pinças, também lhe seguiu as pegadas, começou a fazer o seu próprio caminho e paulatinamente a impor o seu próprio poder. “Com essa firmeza pôs fim ao clima de cobardia geral em que até então vivíamos”, confessa Isaac dos Anjos, membro do comité central do MPLA. Em cima do palco emergiria, por isso, um político surpreendente que, apetrechado de forte personalidade, se apresentou determinado a fazer vincar a sua autoridade. “Tem a vantagem de ser militar, mas temos de reconhecer que ninguém esperava que se impusesse com tão ousada independência e que se distanciasse tão rapidamente do passado governativo do antigo Presidente”, confessou ao Expresso o escritor Jacques dos Santos. Para enfrentar este novo desafio, desde o primeiro momento João Lourenço contou com o apoio de alguns dirigentes históricos do MPLA, desiludidos com o estilo de governação de José Eduardo dos Santos nos últimos anos. Este seria o período em que mais se acentuou a obsessão que tinha pelo culto da personalidade ao estilo norte-coreano e a expansão de um regime neopatrimonial a favor dos “príncipes e princesas” da sua família. À mesa do banquete sentava-se também uma corte constituída por “duques, condes e santos condestáveis”. Capitaneada pelo antigo chefe da Casa Militar e um dos homens mais ricos do regime, general Hélder Vieira Dias, “Kopelipa”, essa corte, no Palácio da Cidade Alta (a sede do MPLA), formava o séquito dos servidores aparentemente mais fiéis a Eduardo dos Santos: Leopoldino do Nascimento, o general das comunicações, tido como “a voz e os ouvidos do dono”; Aldemiro da Conceição, o confidente da contrainformação; o general José Maria, antigo chefe dos serviços de segurança interna; Paulo Kassoma, padrasto de um dos filhos e seu último secretário-geral do MPLA; ou Manuel Rabelais, antigo homem-forte do Grecima, o ‘brinquedo’ de comunicação institucional gerido por dois dos filhos, Tchizé dos Santos e Coreon Du, nunca deixaram de fazer parte da orquestra. Perseguindo o “assalto ao castelo”, uma vasta corte de figurantes do bailado espalhados pelas várias escadarias do poder político, militar, judicial e empresarial público e privado tinham em comum a mesma ideia: a ordem de saque! João Lourenço bateu à porta do FMI para fechar com carácter de urgência um acordo com aquela instituição financeira internacional No plano partidário, a desilusão dava lugar a desavenças internas geradas pela perda de algumas praças eleitorais tradicionalmente dominadas pelo MPLA, como Cabinda, Lunda-Sul e Cacuaco. Era, porém, no domínio do controlo das riquezas do país concentrado num grupo restrito que gravitava em torno de José Eduardo dos Santos, com predominância para a sua família, que se jogaria o futuro de João Lourenço. Para alguns analistas, a iminência da perda de negócios milionários que haviam sido entregues de mão beijada pelo antigo Presidente terá precipitado o desvario de decisões, que não poderia deixar de irritar profundamente quem o viesse a substituir. E assim sucedeu com João Lourenço ao herdar um país com acentuadas assimetrias, que, aos olhos da população e dos investidores, estão a dividi-lo em Luanda e no resto. O novo Presidente angolano encontrou um país com um nível de corrupção galopante, um tecido social ética e moralmente destroçado e uma economia em escombros. Ao sentar-se no cadeirão presidencial, João Lourenço sabia o que o esperava: um pacote legislativo fabricado à última hora à medida dos interesses da família Dos Santos. Tudo fora feito com conta, peso e medida. Desde as Forças Armadas, passando pela Polícia até à Banca, João Lourenço estava “proibido” de proceder a qualquer tipo de alteração às “orientações” do antigo chefe de Estado. Desde muito cedo, porém, dentro e fora do “aparelho partidário”, começaram a erguer-se vozes contrárias a essa maquinação. Ponto de discórdia consensual em toda a sociedade, a pretensão de Zedu de se entronizar como “Presidente-emérito” de Angola terá sido um dos raros pontos em que vastos sectores com larga influência no MPLA e a oposição em bloco convergiram as suas posições, acabando por chumbar a medida. Com as contas condenadas a saírem furadas, o antigo Presidente ignorara que o seu sucessor haveria de vestir o mesmo “casaco” constitucional que envergara durante 38 anos. Com paciência de chinês, João Lourenço foi desmontando a teia de negócios urdida por Eduardo dos Santos, enviando, um a um, para o caixote do lixo, todos os decretos que aquele, ingenuamente, julgava que seriam respeitados à letra. “Subestimou a capacidade reativa de João Lourenço e revelou que, afinal, não conhecia o seu sucessor”, disse ao Expresso o sociólogo Amadeu Florindo. José Eduardo dos Santos esqueceu-se que quem lhe ia suceder far-se-ia acompanhar por uma equipa preparada para ‘desminar’ um terreno que havia sido cravejado de muitas armadilhas. Para o agrónomo Fernando Pacheco, presidente do Observatório Político-Social de Angola, num ano João Lourenço ultrapassou todas as expectativas: “Soube assegurar a liberdade para os trabalhadores passarem a usar o direito à greve e vem satisfazendo algumas reivindicações que anteriormente eram esquecidas pelos ministérios e outras instituições; permitiu que o serviço de investigação criminal e a PGR passassem a ter uma atuação sem precedentes na investigação e condução aos tribunais de crimes contra o erário público, dando sinais claros de que o clima de impunidade está a acabar e removeu os últimos fatores de bloqueio à institucionalização das autarquias.”

ANGOLA ADEUS, SAGRADA FAMÍLIA António Costa chega na segunda-feira a Luanda para uma visita de dois dias a Angola. Vai encontrar um país diferente do que aquele que João Lourenço herdou há cerca de um ano. José Eduardo dos Santos, que governou com mão de ferro durante 40 anos, deixou o MPLA e é agora um homem só e amargurado TEXTO GUSTAVO COSTA EM LUANDA

Há uma semana, José Eduardo dos Santos abandonava a vida política ativa, mesmo depois de ter feito mea culpa pelos erros de governação, já ninguém dava voltas à cabeça para perceber o alcance da acusação tão demolidora que o novo líder do MPLA desferiu para pôr definitivamente em causa a cumplicidade deste com a corrupção. “Nessa cruzada de luta, o MPLA deve tomar a dianteira, ocupar a primeira trincheira, assumir o papel de vanguarda, mesmo que os primeiros a tombar sejam militantes ou altos dirigentes do partido que tenham cometido algum delito ou que, pelo seu comportamento social, estejam a sujar o seu bom nome”, disse, debaixo de uma estrondosa ovação, João Lourenço. E rematou: “No caso destes últimos serem dirigentes do MPLA, não permitiremos que comportamentos condenáveis desta minoria gananciosa manchem o bom nome do partido.” O recado estava dado e tinha destinatários bem identificados — José Eduardo dos Santos, alguns dos seus filhos e alguns governantes e deputados a contas com a Justiça por estarem envolvidos em alegados casos de corrupção. Naquele momento, nunca como antes, ganharia atualidade o poema de Drummond de Andrade: “E agora, José?/ A festa acabou,/ a luz apagou,/ o povo sumiu,/ a noite esfriou”.

José Eduardo dos Santos não queria acreditar que, já há um ano, estava em marcha uma irreversível reviravolta que haveria de o destronar da condição de pretenso “alfa e ómega” da política angolana em que havia sido erigido, nos últimos 39 anos, por sonâmbulo desejo dos seus seguidores. Rodeado por um círculo de usurários, alguns dos quais integrantes do próprio clã familiar, e “enleado até ao pescoço numa teia de compromissos obscuros, o antigo líder do MPLA deixou empalidecer de vez um passado de relevo patriótico”, afirma o investigador Fernando Pereira. Doutrinado na mesma escola soviética que o seu antecessor, João Lourenço era visto como um “oficial às ordens” de Dos Santos Há um ano, após quatro décadas de um regime oligárquico, os angolanos viam ascender ao poder um novo rosto: João Lourenço. Folheava-se aqui uma nova página na história de um país, que se preparava para enterrar um modelo de liderança e de governação ineficaz, que o tempo se encarregara, há muito, de declarar falido. Iniciava-se então um tempo em que ninguém se lembraria do papel-chave desempenhado por Zedu na pacificação de Angola, na preservação da unidade e no estabelecimento do espírito de reconciliação nacional.

O que, por certo, este não esperaria é que após ter participado no seu último ato em público como Presidente da República numerosa parte da guarda pretoriana que, protegida por ilimitada impunidade, durante anos se vergou à sua figura, se bandeasse para o outro lado, depois de se ter apropriado dos mais apetecíveis recursos do Estado. Agora, na companhia do novo Presidente estava Ana Dias Lourenço, antiga ministra do Plano e alta funcionária do Banco Mundial, cuja competência técnica e experiência governativa passaram a constituir, desde o primeiro dia, ativos de peso no apoio às reformas encetadas pelo marido. “Está a impor-se além do estatuto decorativo das anteriores primeiras-damas”, diz Rosalina Sebastião, professora universitária. Depois de uma longa travessia do deserto, o surgimento do marido no firmamento da política angolana pressagiava para muita gente a continuação da aula anterior. Doutrinado na mesma escola soviética que o seu antecessor, este antigo comissário político das FAPLA — o extinto exército do MPLA — foi visto em diversos círculos políticos como mais um “oficial às ordens” de José Eduardo dos Santos. O líder da UNITA, o maior partido da oposição, Isaías Samakuva, num comentário jocoso, chegou mesmo a apelidá-lo de “motorista” que seguiria a rota indicada pelo “patrão”. João Lourenço encontrou um país com um nível de corrupção galopante, um tecido social destroçado e uma economia em escombros João Lourenço anotou a lista dos que no poder e na oposição achavam que tudo não passaria de uma mudança de cosmética e não disse nada. “Como o outro, também é de parcas palavras, mas é enérgico a agir”, diz um colega de turma da antiga Escola Industrial de Silva Porto. No seio do MPLA não faltava também quem afiançasse que João Lourenço, depois de ter sido escolhido por José Eduardo dos Santos para sucessor, como sinal de gratidão, não passaria de um “pau mandado” do antigo Presidente. Em vésperas de abandonar o poder, ao tomar decisões destinadas a limitar o poder do sucessor e com este gesto dar um sinal claro de que pretendia transformar o substituto num “Presidente-fantoche”, José Eduardo dos Santos terá cavado, em definitivo, a sua “sepultura política”. Nunca, como naquele momento, ganhara tanta acutilância a famosa imagem, que esteve sempre colada à sua agenda secreta: “Vou, mas fico, e estão aqui os deveres de casa...” O jogo de sombras de Zedu era ali exposto. Essa tentativa de transformar o novo Presidente numa presa dócil e a pretensão de manter, mesmo à distância, o controlo do país, acabariam por ter um efeito de ricochete em vários círculos da sociedade. Conhecedor de todos os cantos da casa, João Lourenço sabia que ia substituir um político que se diz ser dotado de um notável instinto maquiavélico, mas sabia também que estaria diante de um homem reservado e rancoroso, que, no passado, já ficara meses sem dirigir a palavra ao chefe da sua guarda pessoal. Depois de ter desafiado o antigo líder do MPLA “a ser escravo da sua palavra”, em alusão ao anúncio do abandono da Presidência do país em 2001, o próprio João Lourenço não esquecia o fogacho de intrigas que, sem contemplações, haveriam de ser disparadas contra ele e, mais tarde, o ostracismo a que acabaria por ser votado pelo seu antigo tutor. Observador atento da forma humilhante como este havia reduzido a pó as expectativas políticas e pessoais de Fernando Dias dos Santos, “Nandó”, e de Manuel Vicente enquanto seus vice-presidentes, o novo chefe de Estado preferiu, por esta razão, entrar em cena com pés de lã, sem desvendar as cartas. “A bonomia era falsa, as aparências não passavam de mera coincidência e fez bem para não espantar a caça”, defende o ativista Frederico Jeremias. Com a lição bem estudada, João Lourenço ignorou todos os seus detratores, e os meses seguintes viriam a demonstrar exatamente o contrário, consumando a revolta do feitiço contra o feiticeiro: da mesma forma que Eduardo dos Santos se desfizera da herança de Agostinho Neto, João Lourenço, com pinças, também lhe seguiu as pegadas, começou a fazer o seu próprio caminho e paulatinamente a impor o seu próprio poder. “Com essa firmeza pôs fim ao clima de cobardia geral em que até então vivíamos”, confessa Isaac dos Anjos, membro do comité central do MPLA. Em cima do palco emergiria, por isso, um político surpreendente que, apetrechado de forte personalidade, se apresentou determinado a fazer vincar a sua autoridade. “Tem a vantagem de ser militar, mas temos de reconhecer que ninguém esperava que se impusesse com tão ousada independência e que se distanciasse tão rapidamente do passado governativo do antigo Presidente”, confessou ao Expresso o escritor Jacques dos Santos. Para enfrentar este novo desafio, desde o primeiro momento João Lourenço contou com o apoio de alguns dirigentes históricos do MPLA, desiludidos com o estilo de governação de José Eduardo dos Santos nos últimos anos. Este seria o período em que mais se acentuou a obsessão que tinha pelo culto da personalidade ao estilo norte-coreano e a expansão de um regime neopatrimonial a favor dos “príncipes e princesas” da sua família. À mesa do banquete sentava-se também uma corte constituída por “duques, condes e santos condestáveis”. Capitaneada pelo antigo chefe da Casa Militar e um dos homens mais ricos do regime, general Hélder Vieira Dias, “Kopelipa”, essa corte, no Palácio da Cidade Alta (a sede do MPLA), formava o séquito dos servidores aparentemente mais fiéis a Eduardo dos Santos: Leopoldino do Nascimento, o general das comunicações, tido como “a voz e os ouvidos do dono”; Aldemiro da Conceição, o confidente da contrainformação; o general José Maria, antigo chefe dos serviços de segurança interna; Paulo Kassoma, padrasto de um dos filhos e seu último secretário-geral do MPLA; ou Manuel Rabelais, antigo homem-forte do Grecima, o ‘brinquedo’ de comunicação institucional gerido por dois dos filhos, Tchizé dos Santos e Coreon Du, nunca deixaram de fazer parte da orquestra. Perseguindo o “assalto ao castelo”, uma vasta corte de figurantes do bailado espalhados pelas várias escadarias do poder político, militar, judicial e empresarial público e privado tinham em comum a mesma ideia: a ordem de saque! João Lourenço bateu à porta do FMI para fechar com carácter de urgência um acordo com aquela instituição financeira internacional No plano partidário, a desilusão dava lugar a desavenças internas geradas pela perda de algumas praças eleitorais tradicionalmente dominadas pelo MPLA, como Cabinda, Lunda-Sul e Cacuaco. Era, porém, no domínio do controlo das riquezas do país concentrado num grupo restrito que gravitava em torno de José Eduardo dos Santos, com predominância para a sua família, que se jogaria o futuro de João Lourenço. Para alguns analistas, a iminência da perda de negócios milionários que haviam sido entregues de mão beijada pelo antigo Presidente terá precipitado o desvario de decisões, que não poderia deixar de irritar profundamente quem o viesse a substituir. E assim sucedeu com João Lourenço ao herdar um país com acentuadas assimetrias, que, aos olhos da população e dos investidores, estão a dividi-lo em Luanda e no resto. O novo Presidente angolano encontrou um país com um nível de corrupção galopante, um tecido social ética e moralmente destroçado e uma economia em escombros. Ao sentar-se no cadeirão presidencial, João Lourenço sabia o que o esperava: um pacote legislativo fabricado à última hora à medida dos interesses da família Dos Santos. Tudo fora feito com conta, peso e medida. Desde as Forças Armadas, passando pela Polícia até à Banca, João Lourenço estava “proibido” de proceder a qualquer tipo de alteração às “orientações” do antigo chefe de Estado. Desde muito cedo, porém, dentro e fora do “aparelho partidário”, começaram a erguer-se vozes contrárias a essa maquinação. Ponto de discórdia consensual em toda a sociedade, a pretensão de Zedu de se entronizar como “Presidente-emérito” de Angola terá sido um dos raros pontos em que vastos sectores com larga influência no MPLA e a oposição em bloco convergiram as suas posições, acabando por chumbar a medida. Com as contas condenadas a saírem furadas, o antigo Presidente ignorara que o seu sucessor haveria de vestir o mesmo “casaco” constitucional que envergara durante 38 anos. Com paciência de chinês, João Lourenço foi desmontando a teia de negócios urdida por Eduardo dos Santos, enviando, um a um, para o caixote do lixo, todos os decretos que aquele, ingenuamente, julgava que seriam respeitados à letra. “Subestimou a capacidade reativa de João Lourenço e revelou que, afinal, não conhecia o seu sucessor”, disse ao Expresso o sociólogo Amadeu Florindo. José Eduardo dos Santos esqueceu-se que quem lhe ia suceder far-se-ia acompanhar por uma equipa preparada para ‘desminar’ um terreno que havia sido cravejado de muitas armadilhas. Para o agrónomo Fernando Pacheco, presidente do Observatório Político-Social de Angola, num ano João Lourenço ultrapassou todas as expectativas: “Soube assegurar a liberdade para os trabalhadores passarem a usar o direito à greve e vem satisfazendo algumas reivindicações que anteriormente eram esquecidas pelos ministérios e outras instituições; permitiu que o serviço de investigação criminal e a PGR passassem a ter uma atuação sem precedentes na investigação e condução aos tribunais de crimes contra o erário público, dando sinais claros de que o clima de impunidade está a acabar e removeu os últimos fatores de bloqueio à institucionalização das autarquias.”

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