Lendo e relendo

01-09-2019
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Marcelo
Rebelo de Sousa antecipou-se a anunciar que iria vetar a Lei de Bases da
Saúde (LBS) se esta for aprovada só com os votos do PS, PCP,
Verdes e Bloco de Esquerda. Segundo a revista Sábado, escudada em informação do Público, a decisão
está tomada e não haverá LBS sem o voto da direita, pelo menos do PSD.

O Chefe de
Estado entende como necessário um consenso de “regime” para a nova LBS resistir
em próximas legislaturas. Neste sentido, em entrevista à agência Lusa, a propósito do 3.º aniversário da
sua eleição, Marcelo afirmou rejeitar uma LBS “fixista”, que seja “o triunfo de
uma conjuntura”, pelo que não deve existir “grande clivagem entre PS e PSD”, já
que uma LBS sempre a mudar “não é compatível com investimentos a médio e longo
prazo na saúde”.

***

Face a esta
postura presidencial, as reações não se fizeram esperar.

Em crónica
sob o título “O peso da ideologia no
debate da saúde”, Pedro Gomes refere na 105FM, a 1 de fevereiro, que António Costa, em
clima de campanha eleitoral para eleições legislativas, levou à Assembleia da
República (AR) uma proposta de LBS, que pretende aprovar com qualquer maioria
parlamentar, estando preparado para fazer as concessões necessárias para obter
um voto favorável. Esquece que todas as maiorias são legítimas.

Diz o cronista que a LBS não pode transformar-se em
campo de batalha entre um SNS (Serviço Nacional de Saúde) exclusivamente público e um SNS participado por
privados e aponta o facto de parte substancial da discussão liderada pelos partidos
de esquerda sobre esta lei assentar na recusa das parcerias público-privadas e
da intervenção de privados na prestação de serviços de saúde que o SNS não tem
capacidade de assegurar. Esquece-se, porém, de denunciar as negociatas que os
privados, a sós ou associados ao Estado, fazem no quadro da prestação de
serviços de saúde e nem sempre com a qualidade que apregoam. E talvez esqueça que
a atual greve de enfermeiros pode estar a tentar desacreditar o serviço nacional
de saúde. Disto pode ser sintoma a proclamação explícita de que “VAMOS
PARALISAR O SNS!” (vd JN, de 31
de janeiro), um peditório de 400 mil euros –
quem sabe se não financiado por privados, já que, para alguns profissionais, a
greve nunca se estende ao setor privado. E, no caso de médicos e enfermeiros,
isto é claro (mormente nesta).     

Julga que o debate feito desenvolvido naqueles termos
pela esquerda está inquinado, por não interessar discutir a prestação de
cuidados de saúde por parte de unidades de saúde públicas em confronto com os
hospitais privados ou com as parcerias público-privadas, pois o importante “é
perceber qual a melhor forma de prestar os cuidados de saúde aos portugueses,
gerindo bem os recursos disponíveis”. Ora, este é mesmo ponto: discutir o papel
do Estado na prestação de serviços essenciais e saber até que ponto o Estado
tolhe ou não a iniciativa privada e se os privados, com sede do lucro e à custa
do Estado, menosprezam os cuidados aos utentes ou, renunciando ao excesso de
lucro, se dispõem a servir o bem-estar dos clientes.     

Depois, sentencia que “a nova Lei tem de permitir a
cada governo, eleitoralmente legitimado pelo povo, a possibilidade de escolher
a melhor solução para a prestação dos cuidados de saúde, em cada momento”, pelo
que rever a LBS “para a transformar num espartilho ideológico em que só uma
parte do país se reveja e que impeça a prestação de cuidados de saúde por
privados ao Serviço Nacional de Saúde é uma solução inaceitável em democracia”.
E, porfiando que a natureza tendencialmente gratuita do SNS e o princípio da
universalidade não são prejudicados pela intervenção do setor privado, cuja atuação
deve ser fiscalizada e avaliada pelo Estado”, diz que “o Presidente da
República tem a obrigação política de vetar uma Lei de Bases que limite as
escolhas dos próximos governos em matéria de saúde”.

Vital Moreira, no blogue Causa nossa, da conta do artigo de Leal da Costa (Secretário
de Estado da Saúde no XIX Governo e Ministro da Saúde no XX Governo, de 33 dias) no Observador,
que propõe a universalização da ADSE nos seguintes traços: financiamento
através duma contribuição de saúde dedicada universal, de montante variável,
segundo os rendimentos de cada um; provisão de cuidados de saúde a cargo duma
pluralidade de prestadores privados convencionados, à escolha dos
beneficiários; e remuneração dos cuidados de saúde de acordo com normas
estabelecidas ou acordadas com o financiador – mas com a manutenção do atual
SNS como subsistema autónomo residual, financiado pelo orçamento, à margem do
novo sistema.

Vital Moreira diz tratar-se de
substituir o atual modelo “beveridgiano” por uma variante do sistema
“bismarckiano” a conjugar “o financiamento
público, por via de uma contribuição dos beneficiários, com a provisão de
cuidados de saúde através de entidades, públicas ou privadas, aderentes ao
sistema”. E, referindo que o articulista sustenta que o modelo “não careceria
de revisão constitucional, pois respeitaria os requisitos constitucionais da
universalidade, generalidade e tendencial gratuitidade”, o constitucionalista
contrapõe: 

“Este modelo
alternativo [afasta-se] substantivamente da solução constitucional, que prevê
claramente não somente o financiamento público mas também, por princípio, a
provisão pública de cuidados de saúde no âmbito do SNS”.

E Moreira questiona-se se os
partidos da direita adotarão esta alternativa ao
SNS ou se continuarão a apostar na manutenção do regime consagrado na atual LBS
rumo à sua “asfixia e implosão”  pela “crescente privatização, por via de
‘subcontratação’, da função de prestação do sistema público de saúde” ou pelo “desenvolvimento
de um sistema privado de saúde alternativo (seguros de saúde), explorando as crescentes insuficiências e deficiências do
SNS”.

***

No dia da publicação
da entrevista presidencial, António Costa afirmou querer aprovar a nova LBS
“não com uma maioria qualquer” mas com a que “criou, apoiou e desenvolveu” o
SNS. Referia-se naturalmente à Lei n.º 56/79, de 15 de setembro. E, em resposta
a Fernando Negrão no debate parlamentar, declarou:

“Há uma coisa que posso garantir: na origem
do SNS não está o PSD, porque o PSD votou contra o SNS. É por isso que é muito
importante que a Lei de Bases da Saúde em discussão na Assembleia da República
seja aprovada, não por uma maioria qualquer, mas pela maioria que criou,
apoiou, defendeu e desenvolveu o SNS e nessa maioria
Vossa Excelência não se inclui.”.

No dia 25 de
janeiro, a proposta de lei do Governo e os projetos de lei do CDS e do PSD para
a Lei de Bases da Saúde baixaram, por 60 dias, à comissão competente, a
comissão de saúde, sem votação. Tal deliberação foi tomada a requerimento do
PCP e aprovada por todos os deputados. 

***

O líder
parlamentar e presidente do PS devolveu a Belém o recado sobre a LBS. Isto é, se
Marcelo decidir vetar a lei por esta ser apenas aprovada pela esquerda, os
socialistas admitem confirmá-la. Disse Carlos César aos jornalistas a este
respeito:

“Se o Presidente da República vetar a lei de
bases que for aprovada, avaliaremos as razões pelas quais o faz. Evidentemente
que a qualidade daqueles que votaram a favor não é nunca, nem pode ser, razão
para mudarmos de opinião.”.

No final da
reunião da sua bancada parlamentar, o dirigente socialista tentou não entrar em
choque com Marcelo Rebelo de Sousa, dizendo que tinha lido as palavras do
Presidente – que deu a entender que não promulgaria uma LBS​
que fosse aprovada só por PS, PCP, PEV e BE – como um recado ao PSD. E
explicitou num estilo heterocompositivo ou a branquear as palavras do Chefe de
Estado:

“Penso que estava a estimular o PSD no sentido
de se aproximar da perspetiva que os outros partidos também têm sobre a organização
do sistema de saúde”.
O argumento do Presidente a sustentar a necessidade
de um maior consenso para que a lei não ande sempre a ser mudada não colhe
apoios junto dos socialistas. César lembra que a atual legislação em vigor – a
Lei n.º 48/90, de 24 de agosto e legislação complementar – foi apenas aprovada
pelo PSD e pelo CDS e está em vigor há 28 anos. E explicou:

“As leis de bases
não são duradouras ou deixam de ser por serem votadas por um ou mais partidos,
pela direita ou pela esquerda. A lei de bases que temos em vigor tem 28 anos de
aplicação, foi uma lei votada apenas pela direita, pelo PSD e pelo CDS, e
promulgada pelo senhor Presidente da República de então, Mário Soares.
Portanto, o que queremos é um debate livre, que não está condicionado, em que
procuraremos os maiores consensos possíveis o que é bom que aconteça.”.

Antevendo o
que o Presidente poderá vir a fazer em razão das suas posições públicas, Carlos
César diz que será uma lei confirmada, explicitando:  

“Não se tratando certamente de uma lei que
tenha inconstitucionalidades, a Assembleia avaliará, se por acaso o senhor
Presidente da República vetar, a forma de a reconfirmar, com ou sem alterações”.

Liliana
Valente esclarece apressadamente (como veremos adiante) no Púbico
o que pode acontecer:

“O ser com ou sem alterações tem implicações
neste caso. De acordo com a Constituição, uma lei da Assembleia da República
vetada politicamente pelo Presidente pode ser confirmada com uma maioria
reforçada ou de dois terços pelos deputados, se não tiver alterações; ou por
uma maioria simples de deputados, se o texto sofrer alterações. Se uma maioria
reforçada ou de dois terços será difícil de alcançar, o PS conseguirá confirmar
facilmente uma lei desde que introduza algumas alterações ao texto.”.

***

Está
visto que o Presidente não se contém na tendência compulsiva de comentar,
prever e até decidir. É a governação através da comunicação social, a que não
pode proceder pela via orgânica e que tem dado os seus resultados. E penso que
não se pode dizer que o Presidente pura e simplesmente não tem funções
executivas. É claro que promulgar um diploma não é um mero ato formal e notarial
é um ato de que depende a existência jurídica da lei, do decreto-lei ou do
decreto regulamentar. É uma decisão tão relevante como o veto político.

Se o Presidente
promulga um diploma nos termos constitucionais, não tem de dar as explicações a
que Marcelo nos habituou. Mas, se submete ao TC (Tribunal
Constitucional) o
juízo de constitucionalidade e aquele órgão de soberania se pronuncia pela
inconstitucionalidade de alguma ou algumas das normas, o Presidente tem de o vetar
com base no teor do acórdão; se opta pelo veto político dum diploma do
Parlamento, terá de o devolver acompanhado de mensagem fundamentada; e se se
trata de um diploma do Governo, basta que o informe por escrito sobre o sentido
da sua decisão de veto. E pode opor o veto político a diploma que o TC declarou
não ferido de inconstitucionalidade.

Pode
chamar-se a estes atos (próprios do Presidente) – de promulgação com ordem de publicação,
assinatura, submissão ao TC, veto por inconstitucionalidade e veto político,
além dos decretos simples do Governo ou do Presidente – atividade executiva, de
controlo, de moderação, de autenticação, de solidariedade institucional… Não se
pode é negar que a sua atividade seja uma qualquer destas vertentes. Aliás,
quando se instituiu a divisão do poder em “legislativo, executivo e judicial”,
dizia-se que o poder legislativo cabia às cortes, o executivo ao rei (que
o exercia por si e/ou pelos seus ministros: em Inglaterra o Governo é o Governo
de Sua Majestade e em Espanha os decretos do Governo são decretos reais) e o judicial aos tribunais. O rei
não mandava; reinava.

Porém, o
veto, como a promulgação, só pode recair sobre diploma aprovado. O Chefe de
Estado não pode anunciar um ato a prazo. Já Jorge Sampaio cometeu o erro de
unilateralmente pré-anunciar uma dissolução parlamentar e teve sorte porque o
Parlamento teve a generosidade de discutir e aprovar o orçamento para o ano
seguinte já sob o látego da dissolução. Agora, Marcelo, professor de direito
público, condiciona, por esta e outras vias, a iniciativa e o processo
legislativo, sabendo que a iniciativa não lhe cabe e que não pode interferir no
processo.    

Porém,
não é verdade que o veto só pode incidir no conteúdo do diploma. Ao invés da
promulgação, que não significa a concordância do Presidente, mas que não
encontra motivos de ordem política para se opor ao diploma, o veto político
pode incidir sobre o conteúdo (mesmo ao nível da constitucionalidade,
pois o Presidente só é obrigado a submeter ao TC o diploma se tiver dúvidas
quanto à constitucionalidade),
como sobre o processo e as circunstâncias. Isso também sucede com o juízo da
constitucionalidade. Recordo que Sampaio vetou a LBE (Leis
de Bases da Educação)
por alegadamente a matéria não ter sido objeto da necessária e ampla discussão.
Na altura, entendeu-se (e não foi desmentido) que foi por não considerar
sólida a maioria formada na AR – insuficiência que lhe permitiu a futura dissolução.
E Marcelo já vetou por razões processuais. Foi, por exemplo, o caso do
financiamento dos partidos. E é neste ponto que bate a pretensão de Marcelo. A
aprovação da lei pelo bloco central dá-lhe mais garantias de perenidade. Porém,
é de duvidosa ética constitucional o Presidente fazer juízo político da
validade duma maioria.

Sobre os
acordos de regime, que são desejáveis, deve dizer-se que devem ser aceites
quando são resultantes de “acordo” prévio ao projeto ou à proposta de lei. Não
pode o Presidente forçar um acordo de regime com um veto. Na falta ou
insuficiência de acordo, cabe à maioria deliberar. Não vejo que um partido
possa servir de arma de arremesso para um veto. Quando muito, seria legitimável
um veto a diploma aprovado por uma coligação negativa em que o Presidente visse
dificuldades em o Governo dar execução à matéria. Também, como dizem J. Canotilho
e V. Moreira (Constituição
da República Portuguesa Anotada, vol II, 2.ª ed., Coimbra
Editora, 1985 – pd 133-135),
o Presidente não deve indicar as condições em que promulgará um diploma. E Marcelo
já o fez quando da lei de financiamento dos partidos e fá-lo agora.   

Todavia, é de considerar que um
veto não é um ato definitivo. Tratando-se de um diploma do Governo, que não é
devolvido ao Governo, pode este transformá-lo em proposta de lei a apresentar à
AR, podendo esta dar seguimento a esta iniciativa legislativa. Porém,
tratando-se de um diploma da AR, se o Presidente da República exercer o direito
de veto, deve solicitar nova apreciação do diploma em mensagem fundamentada. E
pode ocorrer um dos seguintes cenários: o diploma não é confirmado e fica a
situação resolvida; o diploma é confirmado e o Presidente deverá promulga-lo no
prazo de oito dias a contar da sua receção.

Para a confirmação
do diploma, é necessária a maioria absoluta dos deputados em efetividade de
funções, exceto para os decretos da AR que se revistam da forma de lei orgânica
(ou que versem sobre: relações externas; limites entre o setor público, o
setor privado e o setor cooperativo e social de propriedade dos meios de produção; e regulamentação dos atos eleitorais
previstos na Constituição, que não revista a forma de lei orgânica) – casos é que se exige a maioria
de dois terços dos deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta
dos deputados em efetividade de funções (vd art.º 136.º da CRP). Mas, a haver emendas ao texto, será considerado um novo diploma com as consequências
daí decorrentes.

***

Enfim,
é preciso respeitar a democracia formal e material!

2019.02.02 –
Louro de Carvalho

Marcelo
Rebelo de Sousa antecipou-se a anunciar que iria vetar a Lei de Bases da
Saúde (LBS) se esta for aprovada só com os votos do PS, PCP,
Verdes e Bloco de Esquerda. Segundo a revista Sábado, escudada em informação do Público, a decisão
está tomada e não haverá LBS sem o voto da direita, pelo menos do PSD.

O Chefe de
Estado entende como necessário um consenso de “regime” para a nova LBS resistir
em próximas legislaturas. Neste sentido, em entrevista à agência Lusa, a propósito do 3.º aniversário da
sua eleição, Marcelo afirmou rejeitar uma LBS “fixista”, que seja “o triunfo de
uma conjuntura”, pelo que não deve existir “grande clivagem entre PS e PSD”, já
que uma LBS sempre a mudar “não é compatível com investimentos a médio e longo
prazo na saúde”.

***

Face a esta
postura presidencial, as reações não se fizeram esperar.

Em crónica
sob o título “O peso da ideologia no
debate da saúde”, Pedro Gomes refere na 105FM, a 1 de fevereiro, que António Costa, em
clima de campanha eleitoral para eleições legislativas, levou à Assembleia da
República (AR) uma proposta de LBS, que pretende aprovar com qualquer maioria
parlamentar, estando preparado para fazer as concessões necessárias para obter
um voto favorável. Esquece que todas as maiorias são legítimas.

Diz o cronista que a LBS não pode transformar-se em
campo de batalha entre um SNS (Serviço Nacional de Saúde) exclusivamente público e um SNS participado por
privados e aponta o facto de parte substancial da discussão liderada pelos partidos
de esquerda sobre esta lei assentar na recusa das parcerias público-privadas e
da intervenção de privados na prestação de serviços de saúde que o SNS não tem
capacidade de assegurar. Esquece-se, porém, de denunciar as negociatas que os
privados, a sós ou associados ao Estado, fazem no quadro da prestação de
serviços de saúde e nem sempre com a qualidade que apregoam. E talvez esqueça que
a atual greve de enfermeiros pode estar a tentar desacreditar o serviço nacional
de saúde. Disto pode ser sintoma a proclamação explícita de que “VAMOS
PARALISAR O SNS!” (vd JN, de 31
de janeiro), um peditório de 400 mil euros –
quem sabe se não financiado por privados, já que, para alguns profissionais, a
greve nunca se estende ao setor privado. E, no caso de médicos e enfermeiros,
isto é claro (mormente nesta).     

Julga que o debate feito desenvolvido naqueles termos
pela esquerda está inquinado, por não interessar discutir a prestação de
cuidados de saúde por parte de unidades de saúde públicas em confronto com os
hospitais privados ou com as parcerias público-privadas, pois o importante “é
perceber qual a melhor forma de prestar os cuidados de saúde aos portugueses,
gerindo bem os recursos disponíveis”. Ora, este é mesmo ponto: discutir o papel
do Estado na prestação de serviços essenciais e saber até que ponto o Estado
tolhe ou não a iniciativa privada e se os privados, com sede do lucro e à custa
do Estado, menosprezam os cuidados aos utentes ou, renunciando ao excesso de
lucro, se dispõem a servir o bem-estar dos clientes.     

Depois, sentencia que “a nova Lei tem de permitir a
cada governo, eleitoralmente legitimado pelo povo, a possibilidade de escolher
a melhor solução para a prestação dos cuidados de saúde, em cada momento”, pelo
que rever a LBS “para a transformar num espartilho ideológico em que só uma
parte do país se reveja e que impeça a prestação de cuidados de saúde por
privados ao Serviço Nacional de Saúde é uma solução inaceitável em democracia”.
E, porfiando que a natureza tendencialmente gratuita do SNS e o princípio da
universalidade não são prejudicados pela intervenção do setor privado, cuja atuação
deve ser fiscalizada e avaliada pelo Estado”, diz que “o Presidente da
República tem a obrigação política de vetar uma Lei de Bases que limite as
escolhas dos próximos governos em matéria de saúde”.

Vital Moreira, no blogue Causa nossa, da conta do artigo de Leal da Costa (Secretário
de Estado da Saúde no XIX Governo e Ministro da Saúde no XX Governo, de 33 dias) no Observador,
que propõe a universalização da ADSE nos seguintes traços: financiamento
através duma contribuição de saúde dedicada universal, de montante variável,
segundo os rendimentos de cada um; provisão de cuidados de saúde a cargo duma
pluralidade de prestadores privados convencionados, à escolha dos
beneficiários; e remuneração dos cuidados de saúde de acordo com normas
estabelecidas ou acordadas com o financiador – mas com a manutenção do atual
SNS como subsistema autónomo residual, financiado pelo orçamento, à margem do
novo sistema.

Vital Moreira diz tratar-se de
substituir o atual modelo “beveridgiano” por uma variante do sistema
“bismarckiano” a conjugar “o financiamento
público, por via de uma contribuição dos beneficiários, com a provisão de
cuidados de saúde através de entidades, públicas ou privadas, aderentes ao
sistema”. E, referindo que o articulista sustenta que o modelo “não careceria
de revisão constitucional, pois respeitaria os requisitos constitucionais da
universalidade, generalidade e tendencial gratuitidade”, o constitucionalista
contrapõe: 

“Este modelo
alternativo [afasta-se] substantivamente da solução constitucional, que prevê
claramente não somente o financiamento público mas também, por princípio, a
provisão pública de cuidados de saúde no âmbito do SNS”.

E Moreira questiona-se se os
partidos da direita adotarão esta alternativa ao
SNS ou se continuarão a apostar na manutenção do regime consagrado na atual LBS
rumo à sua “asfixia e implosão”  pela “crescente privatização, por via de
‘subcontratação’, da função de prestação do sistema público de saúde” ou pelo “desenvolvimento
de um sistema privado de saúde alternativo (seguros de saúde), explorando as crescentes insuficiências e deficiências do
SNS”.

***

No dia da publicação
da entrevista presidencial, António Costa afirmou querer aprovar a nova LBS
“não com uma maioria qualquer” mas com a que “criou, apoiou e desenvolveu” o
SNS. Referia-se naturalmente à Lei n.º 56/79, de 15 de setembro. E, em resposta
a Fernando Negrão no debate parlamentar, declarou:

“Há uma coisa que posso garantir: na origem
do SNS não está o PSD, porque o PSD votou contra o SNS. É por isso que é muito
importante que a Lei de Bases da Saúde em discussão na Assembleia da República
seja aprovada, não por uma maioria qualquer, mas pela maioria que criou,
apoiou, defendeu e desenvolveu o SNS e nessa maioria
Vossa Excelência não se inclui.”.

No dia 25 de
janeiro, a proposta de lei do Governo e os projetos de lei do CDS e do PSD para
a Lei de Bases da Saúde baixaram, por 60 dias, à comissão competente, a
comissão de saúde, sem votação. Tal deliberação foi tomada a requerimento do
PCP e aprovada por todos os deputados. 

***

O líder
parlamentar e presidente do PS devolveu a Belém o recado sobre a LBS. Isto é, se
Marcelo decidir vetar a lei por esta ser apenas aprovada pela esquerda, os
socialistas admitem confirmá-la. Disse Carlos César aos jornalistas a este
respeito:

“Se o Presidente da República vetar a lei de
bases que for aprovada, avaliaremos as razões pelas quais o faz. Evidentemente
que a qualidade daqueles que votaram a favor não é nunca, nem pode ser, razão
para mudarmos de opinião.”.

No final da
reunião da sua bancada parlamentar, o dirigente socialista tentou não entrar em
choque com Marcelo Rebelo de Sousa, dizendo que tinha lido as palavras do
Presidente – que deu a entender que não promulgaria uma LBS​
que fosse aprovada só por PS, PCP, PEV e BE – como um recado ao PSD. E
explicitou num estilo heterocompositivo ou a branquear as palavras do Chefe de
Estado:

“Penso que estava a estimular o PSD no sentido
de se aproximar da perspetiva que os outros partidos também têm sobre a organização
do sistema de saúde”.
O argumento do Presidente a sustentar a necessidade
de um maior consenso para que a lei não ande sempre a ser mudada não colhe
apoios junto dos socialistas. César lembra que a atual legislação em vigor – a
Lei n.º 48/90, de 24 de agosto e legislação complementar – foi apenas aprovada
pelo PSD e pelo CDS e está em vigor há 28 anos. E explicou:

“As leis de bases
não são duradouras ou deixam de ser por serem votadas por um ou mais partidos,
pela direita ou pela esquerda. A lei de bases que temos em vigor tem 28 anos de
aplicação, foi uma lei votada apenas pela direita, pelo PSD e pelo CDS, e
promulgada pelo senhor Presidente da República de então, Mário Soares.
Portanto, o que queremos é um debate livre, que não está condicionado, em que
procuraremos os maiores consensos possíveis o que é bom que aconteça.”.

Antevendo o
que o Presidente poderá vir a fazer em razão das suas posições públicas, Carlos
César diz que será uma lei confirmada, explicitando:  

“Não se tratando certamente de uma lei que
tenha inconstitucionalidades, a Assembleia avaliará, se por acaso o senhor
Presidente da República vetar, a forma de a reconfirmar, com ou sem alterações”.

Liliana
Valente esclarece apressadamente (como veremos adiante) no Púbico
o que pode acontecer:

“O ser com ou sem alterações tem implicações
neste caso. De acordo com a Constituição, uma lei da Assembleia da República
vetada politicamente pelo Presidente pode ser confirmada com uma maioria
reforçada ou de dois terços pelos deputados, se não tiver alterações; ou por
uma maioria simples de deputados, se o texto sofrer alterações. Se uma maioria
reforçada ou de dois terços será difícil de alcançar, o PS conseguirá confirmar
facilmente uma lei desde que introduza algumas alterações ao texto.”.

***

Está
visto que o Presidente não se contém na tendência compulsiva de comentar,
prever e até decidir. É a governação através da comunicação social, a que não
pode proceder pela via orgânica e que tem dado os seus resultados. E penso que
não se pode dizer que o Presidente pura e simplesmente não tem funções
executivas. É claro que promulgar um diploma não é um mero ato formal e notarial
é um ato de que depende a existência jurídica da lei, do decreto-lei ou do
decreto regulamentar. É uma decisão tão relevante como o veto político.

Se o Presidente
promulga um diploma nos termos constitucionais, não tem de dar as explicações a
que Marcelo nos habituou. Mas, se submete ao TC (Tribunal
Constitucional) o
juízo de constitucionalidade e aquele órgão de soberania se pronuncia pela
inconstitucionalidade de alguma ou algumas das normas, o Presidente tem de o vetar
com base no teor do acórdão; se opta pelo veto político dum diploma do
Parlamento, terá de o devolver acompanhado de mensagem fundamentada; e se se
trata de um diploma do Governo, basta que o informe por escrito sobre o sentido
da sua decisão de veto. E pode opor o veto político a diploma que o TC declarou
não ferido de inconstitucionalidade.

Pode
chamar-se a estes atos (próprios do Presidente) – de promulgação com ordem de publicação,
assinatura, submissão ao TC, veto por inconstitucionalidade e veto político,
além dos decretos simples do Governo ou do Presidente – atividade executiva, de
controlo, de moderação, de autenticação, de solidariedade institucional… Não se
pode é negar que a sua atividade seja uma qualquer destas vertentes. Aliás,
quando se instituiu a divisão do poder em “legislativo, executivo e judicial”,
dizia-se que o poder legislativo cabia às cortes, o executivo ao rei (que
o exercia por si e/ou pelos seus ministros: em Inglaterra o Governo é o Governo
de Sua Majestade e em Espanha os decretos do Governo são decretos reais) e o judicial aos tribunais. O rei
não mandava; reinava.

Porém, o
veto, como a promulgação, só pode recair sobre diploma aprovado. O Chefe de
Estado não pode anunciar um ato a prazo. Já Jorge Sampaio cometeu o erro de
unilateralmente pré-anunciar uma dissolução parlamentar e teve sorte porque o
Parlamento teve a generosidade de discutir e aprovar o orçamento para o ano
seguinte já sob o látego da dissolução. Agora, Marcelo, professor de direito
público, condiciona, por esta e outras vias, a iniciativa e o processo
legislativo, sabendo que a iniciativa não lhe cabe e que não pode interferir no
processo.    

Porém,
não é verdade que o veto só pode incidir no conteúdo do diploma. Ao invés da
promulgação, que não significa a concordância do Presidente, mas que não
encontra motivos de ordem política para se opor ao diploma, o veto político
pode incidir sobre o conteúdo (mesmo ao nível da constitucionalidade,
pois o Presidente só é obrigado a submeter ao TC o diploma se tiver dúvidas
quanto à constitucionalidade),
como sobre o processo e as circunstâncias. Isso também sucede com o juízo da
constitucionalidade. Recordo que Sampaio vetou a LBE (Leis
de Bases da Educação)
por alegadamente a matéria não ter sido objeto da necessária e ampla discussão.
Na altura, entendeu-se (e não foi desmentido) que foi por não considerar
sólida a maioria formada na AR – insuficiência que lhe permitiu a futura dissolução.
E Marcelo já vetou por razões processuais. Foi, por exemplo, o caso do
financiamento dos partidos. E é neste ponto que bate a pretensão de Marcelo. A
aprovação da lei pelo bloco central dá-lhe mais garantias de perenidade. Porém,
é de duvidosa ética constitucional o Presidente fazer juízo político da
validade duma maioria.

Sobre os
acordos de regime, que são desejáveis, deve dizer-se que devem ser aceites
quando são resultantes de “acordo” prévio ao projeto ou à proposta de lei. Não
pode o Presidente forçar um acordo de regime com um veto. Na falta ou
insuficiência de acordo, cabe à maioria deliberar. Não vejo que um partido
possa servir de arma de arremesso para um veto. Quando muito, seria legitimável
um veto a diploma aprovado por uma coligação negativa em que o Presidente visse
dificuldades em o Governo dar execução à matéria. Também, como dizem J. Canotilho
e V. Moreira (Constituição
da República Portuguesa Anotada, vol II, 2.ª ed., Coimbra
Editora, 1985 – pd 133-135),
o Presidente não deve indicar as condições em que promulgará um diploma. E Marcelo
já o fez quando da lei de financiamento dos partidos e fá-lo agora.   

Todavia, é de considerar que um
veto não é um ato definitivo. Tratando-se de um diploma do Governo, que não é
devolvido ao Governo, pode este transformá-lo em proposta de lei a apresentar à
AR, podendo esta dar seguimento a esta iniciativa legislativa. Porém,
tratando-se de um diploma da AR, se o Presidente da República exercer o direito
de veto, deve solicitar nova apreciação do diploma em mensagem fundamentada. E
pode ocorrer um dos seguintes cenários: o diploma não é confirmado e fica a
situação resolvida; o diploma é confirmado e o Presidente deverá promulga-lo no
prazo de oito dias a contar da sua receção.

Para a confirmação
do diploma, é necessária a maioria absoluta dos deputados em efetividade de
funções, exceto para os decretos da AR que se revistam da forma de lei orgânica
(ou que versem sobre: relações externas; limites entre o setor público, o
setor privado e o setor cooperativo e social de propriedade dos meios de produção; e regulamentação dos atos eleitorais
previstos na Constituição, que não revista a forma de lei orgânica) – casos é que se exige a maioria
de dois terços dos deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta
dos deputados em efetividade de funções (vd art.º 136.º da CRP). Mas, a haver emendas ao texto, será considerado um novo diploma com as consequências
daí decorrentes.

***

Enfim,
é preciso respeitar a democracia formal e material!

2019.02.02 –
Louro de Carvalho

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