A última entrevista a José Cutileiro. "Portugal tem um problema de pobreza e do que vem com ela. Enquanto o país não enriquecer, não se sai de onde se está"

01-01-2021
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Esta é uma conversa inédita, que teve lugar no dia 12 de fevereiro deste ano, ainda a Organização Mundial de Saúde não tinha decretado a pandemia e, acreditava-se, o novo coronavírus era um vírus circunscrito à China.

"E o que fizeram ao médico, coitadinho... O médico deve ficar na história da China como Martim Moniz ficou na nossa", comentava então meio a sério, meio a brincar José Cutileiro, que também passou pela licenciatura em Medicina.

O encontro, num hotel no Guincho, foi marcado para o fim do dia, não fosse ser chamado de repente para visitar alguma casa, que agora, que estava a mudar-se de Bruxelas para Portugal, procurava para viver com a mulher.

Um dos temas da conversa seria o seu mais recente livro, "Desabafos e Divagações de um Cético", mas acabou por ser a entrevista um brevíssimo inventário da uma vida: 85 anos por Portugal e pelo mundo, a fazer diplomacia, mas não só.

Várias vezes ao longo da conversa se percebe o cansaço e fala, sem falar, no seu já debilitado estado de saúde, sempre com sentido de humor. Quando o fotógrafo chega ele, que já anda devagar e muitas vezes na cadeira de rodas, lembra que neste momento está "inamovível".

"Estamos à procura de casa, já devo ter encontrado uma. Venho viver para Portugal, agora que a minha mulher, que trabalhava na Comissão Europeia, acabou o seu contrato e reformou-se. O que é uma grande mudança - tenho vivido muitas vezes em Portugal e venho todos os verões - mas o último emprego que tive aqui foi em 1988, era diretor-geral político no Ministério dos Estrangeiros. Depois disso nunca mais trabalhei aqui. Estou a meter o pé na água outra vez, e é curioso, porque há coisas que mudaram muito em Portugal e há coisas que não mudaram nada. É impressionante."

Aproveito a deixa e começamos a conversa, uma sucessão de histórias.

O que é que não mudou nada?

Uma espécie de... Uma maneira de estar nas coisas, entre uns computadores que ainda não se sabe bem como funcionam e uns compadres que já não funcionam tão bem como funcionavam. E há assim uma certa doçura no meio disto tudo, mas há também um grande desperdício. Quer dizer, é muito difícil manter uma espécie de bem-estar consigo e com os outros e, ao mesmo tempo, fazer as coisas com alguma eficácia. É, basicamente, isso que não mudou.

Sou diplomata de carreira, fui para a diplomacia em 1974, depois do 25 de Abril, e comecei por estar na Embaixada em Londres, como conselheiro cultural - nomeado, de resto, por Mário Soares, que era ministro dos [Negócios] Estrangeiros. O embaixador era um homem muito inteligente e simpático, mas que tinha tido uma história na oposição, tinha estado preso em Caxias, não me lembro bem porquê, o Albano Nogueira. Ele dizia que se tivéssemos um problema num lavatório em Londres e chamássemos um canalizador inglês, o tipo olhava, dizia que eram 15 libras e que teria de voltar no dia seguinte com um mate [colega]. Se chamássemos um português, ele olhava um bocadinho e depois perguntava: "O senhor tem por aí, por acaso, um bocadinho de guita?" [ri].

Diz-se que o homem é um animal de hábitos. Custa-lhe a mudança?

Já tenho pouco tempo para me habituar. Mas com certeza que vou habituar-me, não sou a pequena sueca [Greta Thunberg]. Quando se é novo e meio maluco revoltamo-nos contra o ambiente. Quando se é velho adaptamo-nos ao ambiente.

A maneira de ver as coisas muda com a idade? Como olha para o mundo aos 85 anos?

Da mesma maneira que olhei sempre. Antigamente o mundo não era certamente melhor. De resto, quando eu era miúdo, ainda durante a Segunda Guerra Mundial, e logo a seguir, havia um livro de um alemão, Erich Kästner - vim a saber mais tarde que era um opositor de Hitler e tinha tido problemas, mas que nessa altura escrevia livros para crianças - que eu lia: "Emílio e os Detectives".

Sei perfeitamente, também li. O autor foi também jornalista.

Então recorda que a senhora Tischbein, mãe do Emílio, tinha uns amigos de uma certa idade que achavam que o mundo era melhor no tempo deles porque, diziam - e nunca mais me esqueci, porque achei muito engraçado - "o céu era mais azul e as cabeças dos bois eram maiores". O céu é igual e os bois a gente já quase não os vê.

Passo desse livro para o seu mais recente, "Inventário, Desabafos e Divagações de um Cético".

O livro Inventário tem uma seleção de crónicas, cerca de 100, retiradas de um grupo de mais de 300, escritas para o blogue de uma amiga, que morreu em outubro, a Vera Futscher Pereira. A certa altura, deixei de escrever já não sei para que jornal e pedi-lhe asilo político, por assim dizer. Escrevia sobre o que me apetecia e ela foi uma excelente editora. Tive vários editores ao longo dos anos, não tenho razões de queixa de nenhum, mas houve dois de quem gostei mais do que dos outros; um foi ela, outro foi o Victor Cunha Rego, mas isso era quando eu escrevia uma coisa chamada Kotter - durante muitos anos publiquei, primeiro no jornal diário "A Tarde", depois no Semanário e mais tarde n'"O Independente", uma coisa que se chamava "Bilhetes de Colares", assinados A. B. Kotter, que era um homossexual velho inglês, antigo espião, que vivia em Colares, e que eram traduzidos para português pelo escriba dele que, suspeitava-se vagamente, pudesse ser amante, mas era basicamente um ex-comando. E o Kotter... Porque é que estou a falar do Kotter?

Veio a propósito das suas crónicas e dos seus editores preferidos.

Ah, porque o Victor dizia-me de vez em quando: "Devias falar mais nos cães" e umas coisas assim. A Vera gostava mais de umas coisas do que doutras, ia-me guiando sem me magoar.

O que significava falar mais nos cães?

Era dar um tom de mais sossego, de tranquilidade.

Hoje fala-se muito de cães e de gatos, mas penso que o sentido é outro.

Porquê?

Há uma humanização dos animais.

É verdade. Como andamos à procura de casa, outro dia, num bairro, reparei na quantidade de cocó de cão que há na rua... As pessoas passeiam os seus cães, mas não vão, como nos outros países civilizados, com um saquinho de plástico na mão para apanhar aquilo. Gostam do bicho, mas mais nada.

créditos: Paulo Rascão / MadreMedia

Voltando ao livro: "Desabafos e divagações de um cético". Considera-se cético?

Sou. Não sou cético no sentido especializado dos filósofos céticos, mas sou cético na medida em que, por exemplo, não sou crente, sou ateu - nem sequer sou batizado - e, em princípio, é bom que as coisas possam ser provadas. Mas o sub-título do livro, de resto, apareceu no fim; o meu editor, que é um óptimo editor, o Duarte Bárbara, disse que era preciso um sub-título e eu disse-lho ao telefone, saiu assim.

Fez Medicina, mudou para a Antropologia. Passou da Medicina para a Antropologia. Porquê?

Tinha feito o curso de Medicina aqui, mas resolvi ser antropólogo, fiz o diploma Antropologia em Oxford em - o tempo passa - 1964, e tive uma distinção que me permitiu preparar imediatamente uma tese de doutoramento e fazer uma coisa que não se faz muito em antropologia: vir trabalhar para o meu país. Em vez de ir trabalhar para o meio do Bongo Bongo, como dizem os ingleses, trabalhei no Alentejo, que é de onde eu venho. Escrevi um livro publicado em inglês em 1971, chamado "A Portuguese Rural Society", que é baseado na minha tese de doutoramento e que, depois da mudança de regime aqui, foi traduzido para português. Tentei encontrar um nome menos chato, mas lembro-me de ter feito buscas e só me apareciam coisas sobre peasants e peasantry [componeses e campo], que no século XVII eram mal vistos. Como não havia nada simpático, acabei por chamar-lhe assim. A tradução para português foi feita por um agrónomo e acabou por ficar, e muito bem, "Ricos e Pobres no Alentejo". Passado três anos a London School of Economics abriu um concurso, candidatei-me e fui lecionar. Tinha pedido uma licença sabática para o ano seguinte, sem saber muito bem o que iria fazer, quando houve o 25 de Abril. Mudou tudo.

Como lhe chegou a notícia do 25 de Abril, quando soube?

Soube de manhã. Estava no gabinete da London School of Economics e a minha mulher telefonou-me. Um amigo nosso que vivia perto, o João Monjardino, tinha-lhe telefonado a dizer que o irmão, o Carlos Monjardino, da Fundação Oriente, tinha telefonado de Paris a dizer que tinha havido uma revolução em Portugal. E eu perguntei-lhe: "De esquerda ou de direita?", porque estava realmente muito longe das coisas. Depois do 1.º de Maio, que foi extremamente animado, cheguei a Lisboa e já não havia PIDE, estavam uns guardas fiscais na alfândega e um miúdo de camisa branca, impecável, diz-me: "Seja bem-vindo a este país livre". Nunca mais me esqueci.

Num país deste tamanho, regionalização é para dar mais tachos a meia dúzia de tipos que vão ter mais secretárias e mais Mercedes e mais telefones e mais não sei o quê. Vão custar uma quantidade de dinheiro

Volto um pouco atrás para lhe perguntar se é a favor ou contra a regionalização?

Contra. Num país deste tamanho, regionalização é para dar mais tachos a meia dúzia de tipos que vão ter mais secretárias e mais Mercedes e mais telefones e mais não sei o quê. Vão custar uma quantidade de dinheiro. Sou contra. Sempre fui, acho completamente disparatado. Havia uma senhora - coitadinha, morreu há pouco tempo - que era uma católica de esquerda convicta, que esteve num governo do Soares, era secretária de Estado não sei de quê [Manuela Silva, secretária de Estado do Planeamento] e tinha feito um programa a definir regiões, e o Soares estava assim meio a dormir no Conselho de Ministros e, de repente: "Ó minha senhora, mas o que é isto, onde é que é o Minho?!" [ri].

Este governo PS, liderado por António Costa, é a favor da regionalização.

Podem ser o que quiserem, eu sou inteiramente contra, acho um disparate total. Aquilo a que, lamentavelmente, se chama a classe política - uma coisa horrível, termos chegado a uma fase do mundo em que temos de falar de classe política... Dantes fazia-se política, havia uns tipos que estavam na política.

Estavam na política, como estavam secretários de Estado, estavam ministros? Hoje são políticos, são secretários de Estado, são ministros. É diferente?

É. Às vezes havia um ou outro que se tornava mais eminente em Portugal ou no estrangeiro e que era mais conhecido por isso, mas isto agora... Eu estou muito longe, sabe, e os velhos perdem a paciência para certas coisas.

Para que coisas se perde a paciência?

Para tudo. Quando eu era miúdo, havia um avançado - eu era sportinguista...

Já não é?

Agora não sou nada, provocando a indignação dos meus compatriotas. Há uns 20 anos estava eu em Londres, paguei o café com cartão e estava lá o meu nome, Cutileiro. E o tipo diz: "É português?" "Sou, sou". "É do Sporting ou do Benfica?" Respondi; "Ahq...". O tipo ficou zangado...

Mas interrompi a história sobre o avançado...

Havia um avançado-centro muito conhecido nessa altura, o Fernando Peyroteo, e eu não percebia - a minha família era uma família da oposição, anti-salazarista - e eu não percebia porque é que o Peyroteo não era presidente. O Peyroteo é que devia ser presidente. Depois, com o tempo, percebemos que isso não é assim. Mas a certa altura passa-se uma coisa que é quase ao contrário: conhecemos menos bem as pessoas mais novas, já não as distinguimos umas das outras e desinteressamo-nos um pouco.

Mesmo antes de ser embaixador viveu em diversos países. Como era regressar a Portugal?

Quando tinha 17 anos vivi seis meses no Afeganistão. O meu pai era médico, ensinava na Faculdade de Medicina e estava na Direção-Geral de Saúde, e teve um problema grave de desentendimento e de mau tratamento pela DGS e arranjou um lugar na Organização Mundial de Saúde em Genève, onde estivemos um tempo, e depois aceitou ser professor de Medicina Social em Cabul. Adoeceu entretanto, de maneira que acabámos por passar lá seis em vez dos três anos previsto, mas foi o primeiro sítio onde vivi fora e o meu primeiro regresso a Portugal. E é engraçado, porque durante muitos anos foi assim: chegava-se a um país onde as pessoas estavam tristes e era como se fossem todas para um casamento, tudo muito arranjadinho.

Tive muitas vezes a sensação de que a pessoa mais importante em Maputo, quando lá estive, era Samora Machel e a segunda era o embaixador de Portugal. E se o embaixador de Portugal fosse um cavalo, ainda assim era o embaixador de Portugal

Voltou a sair quase dez anos depois, e então sim, demorou a regressar. Europa, Estados Unidos, África, locais muito diferentes em termos culturais.

Estive em Portugal até aos 27 ou 28 anos, indo a Espanha umas vezes, nada de especial, e depois fui para Oxford, onde vivi oito anos, mas fiz cá o trabalho de campo. Estive seis anos em Londres, três anos em Estrasburgo, no Conselho da Europa, três anos em Maputo, como embaixador, dois anos na Suécia, na Conferência de Segurança Europeia. Era engraçado ser embaixador em sítios como Maputo. Agora não sei como é, mas antes achava-se que os miúdos com mais talento, os melhores, quando fossem postos no estrangeiro pela primeira vez deviam ir para esses postos, não deviam ir para Paris e para Londres, para onde geralmente há a tendência de levar os melhores, porque é o que apetece mais. Mas para países como Moçambique, pelo menos nessa altura, Portugal ainda era uma potência. Tive muitas vezes a sensação de que a pessoa mais importante em Maputo, quando lá estive, era Samora Machel e a segunda era o embaixador de Portugal. E se o embaixador de Portugal fosse um cavalo, ainda assim era o embaixador de Portugal. Isso já deve ter amainado muito, mas ainda há uma relação muito especial entre ex-colónias e ex-metrópole, é uma coisa sui generis, muito complicada, mas que dá normalmente razões de satisfação provavelmente aos dois lados e provavelmente diferentes.

Como eram as relações entre Portugal e Moçambique, quando esteve em Maputo?

Quando cheguei a Moçambique as relações oficiais eram muito más. Aliás, a certa altura convidei para almoçar, mas ele não vinha a minha casa, o diretor do gabinete do presidente Machel, um homem chamado Luís Bernando Honwana, que é escritor, muito engraçado e muito inteligente - ainda é vivo. Convidei-o para almoçar num restaurante, mas aquilo foi tratado por um intermediário, que era o meu conselheiro cultural, um padre que, sob o nome José Capela, escrevia livros sobre a história económica de Moçambique. Chamava-se José Soares Martins, já morreu, muito ligado à Frelimo e que tinha sido nomeado não sei por quem adido cultural na embaixada em Maputo, e era amigo do Honwana. Fui eu buscar o Honwana à Presidência no meu carro e fui ao gabinete dele, estava de pé a mexer nuns papéis, e perguntou: "Vocês têm confiança no Soares Martins?" "Temos, porquê?", respondi. "Porque nós também". [ri] As relações eram muito más, mas depois melhoraram, resolveu-se o problema da banca, eles tinham nacionalizado uns bancos portugueses, e Sá Carneiro fez muito por resolver isso. E quando, depois, os ministros moçambicanos vinham a minha casa e, depois do jantar, no café, se passam as aguardentes, havia conhaques franceses diversos, mas os tipos iam diretos para o Carvalho Ribeiro & Ferreira [marca de aguardente]. Era assim. E se, por um lado, não se pode exagerar isto e pensar que temos um papel muito especial nesses países porque fomos colonizadores, por outro não se pode também esquecer completamente esse facto, como se não fosse nada. Porque foi qualquer coisa, foi qualquer coisa da sua importância.

Fez tropa?

Não, fiquei isento. Na altura em que fui às sortes não havia ainda Guerra Colonial, de maneira que fiquei livre.

Lembro-me de que o governo português tinha na altura uns letreiros nas montras que diziam: "Angola é nossa". Nunca vi um que dissesse "Moçambique é nosso" ou "Guiné é nossa"

Tem acompanhado a novela Luanda Leaks?

Há vários países, não só africanos, mas em África isso é muito abundante, em que quem está no poder apanha a riqueza e deixa ficar o resto ao Deus dará. E depois as famílias têm uma grande importância e fazem-se coisas... A justiça terá de provar o que houver a provar, mas não é nada que espante. O pai José Eduardo dos Santos hoje vive em Barcelona, num condomínio protegido... Isto pode ver-se de várias maneiras: ele era do MPLA, foi escolhido, depois da morte de Agostinho Neto, provavelmente porque era o que tinha a cor mais escura. O MPLA era muito português, muito mestiço, e tem muitos vícios portugueses, acho eu, caraterísticos. Seja como for, ele foi escolhido e era um rapaz de Angola, que tinha estudado na Rússia, que fez a sua carreira e que depois chegou ao cimo do poder e fez algum dinheiro, muito dinheiro, e depois os filhos fizeram mais dinheiro. O que, visto do ponto de vista da família, não está mal [ri]. O pior é tentar conciliar isso com um Estado moderno e com os direitos e deveres dos cidadãos angolanos, quer sejam mandados, quer mandem, como é o caso. Portugal, nesta história, infelizmente... Lembro-me de que o governo português tinha na altura uns letreiros nas montras que diziam: "Angola é nossa". Nunca vi um que dissesse "Moçambique é nosso" ou "Guiné é nossa". E houve uns tempos, ultimamente, em que a gente chegava a perguntar-se se eles não poderiam dizer que Portugal era deles. É assim, houve chefes corruptos em toda a parte e este é um caso vistoso, ainda por cima é uma mulher, dá mais nas vistas.

Em Portugal fizeram-se referendos sobre a regionalização e o aborto. O Reino Unido levou a referendo a permanência ou não na União Europeia e acaba de deixar a UE.

O referendo é o processo ideal dos populistas, é uma coisa feita para dar mau resultado. E deu, a meu ver. Embora eles por fim tenham ido atrás de Boris Johnson. Penso que a saída dos britânicos da União Europeia é má, para eles e também para a União Europeia. Durante estes três anos, vistos de fora, os ingleses pareciam um bando de loucos, às vezes, mas durante muitos anos não foi assim, tinham duas coisas que acredito que fazem falta à União Europeia: muito bom senso e, na maioria das questões, uma certa decência na maneira de tratar as coisas entre grandes e pequenos. E esse equilíbrio vai-se, nós ficamos nas mãos...

[sobre o Brexit] O referendo é o processo ideal dos populistas, é uma coisa feita para dar mau resultado. E deu, a meu ver

Entretanto muitas coisas se passaram, os países estão cada vez com menos vergonha.

Tem razão, ainda por cima os ingleses tinham outra coisa: tinham sido o único e verdadeiro vencedor da Segunda Guerra Mundial que estava na União Europeia, porque a Alemanha tinha sido vencida e a França foi salva de ser vencida pelo De Gaulle, que fez uma coisa formidável, pôs a França no Conselho de Segurança - porque aos ingleses também lhes convinha - e fez da França um país vencedor. Mas a França foi um país de colaboracionistas, largamente. De maneira que temos a França, que quando lhe dá para ser francesa é perigosa, e a Alemanha, que esteve décadas a fingir que não tinha força, porque não podia e porque estava envergonhada, e que está a perder a vergonha a pouco e pouco. É pena, porque a Alemanha pagou muito caro o Hitler - e alguns devem achar que a conta está paga. E se a conta está paga é uma chatice, vêm ao de cima certas características alemãs absolutamente imparáveis e complicadas. Agora há uma crise enorme com a CDU e com a senhora AKK [Annegret Kramp-Karrenbauer não se vai candidatar ao cargo de chanceler em 2021 e vai abdicar da chefia dos democratas-cristãos alemães no final do ano]. E isso é mau.

temos a França, que quando lhe dá para ser francesa é perigosa, e a Alemanha, que esteve décadas a fingir que não tinha força, porque não podia e porque estava envergonhada, e que está a perder a vergonha a pouco e pouco

O Reino Unido foi muitas vezes acusado de ser responsável por a Europa não fazer mais pela sua defesa.

Pois, mas isso aconteceu assim porque aos outros dava-lhes muito jeito não gastar dinheiro em defesa. E os ingleses, que gastavam muito em defesa - juntamente com a França eram os dois que gastavam quase tanto como devia ser - queriam manter a aliança com os Estados Unidos, e eu percebo isso, porque não há defesa da Europa ocidental, ou da Europa anti-russa, se quiser, sem os Estados Unidos. De maneira que, voltando ao começo, é uma chatice os ingleses terem saído.

E se lhes corre bem a vida?

Essa é uma pergunta. Isso pode animar outros a quererem sair. E aqui há duas coisas: a primeira é que penso que não lhes vai correr bem a vida, a segunda é que, se lhes correr bem a vida, é porque têm recursos que nem todos os outros têm. Mas acredito que não lhes vai correr particularmente bem, porque veja, a União Europeia só é uma potência no comércio. Aí são 500 milhões [população], e quando vai negociar uma coisa com 500 milhões por trás, tem um peso, com 50 ou 60 milhões, que são os ingleses, tem outro peso.

créditos: Paulo Rascão / MadreMedia

Percebe o que Boris Johnson quer para o Reino Unido?

Espero que ele tenha percebido. Ele escreveu uma biografia de Churchill e identifica-se muito com Churchill, mas não é da mesma cepa. O Churchill não ficou na história por ser aldrabão, por exemplo, por ter inventado coisas absurdas sobre fosse o que fosse para seu benefício político ou para dar nas vistas. Boris Johnson é um jornalista dotado, nunca li os livros dele, mas li muitos artigos. Julgo que vai ter de negociar com a Europa e vai ter de ceder em algumas coisas, senão isto não vai estar arrumado nos próximos anos e isso pode abrir vários caminhos.

Muitos afirmam que não temos líderes. Como é que caracterizaria os líderes de hoje, nacionais e internacionais?

Quando há muito tempo sem guerra, baixa a qualidade da liderança. Tivemos o Churchill, o Roosevelt e, se quiser ser horrível, o Hitler. Foi quando houve guerra. Sem guerra isso vai indo para baixo a pouco e pouco. Como poderia ser diferente? A pergunta é boa, até porque os critérios pelos quais, durante uns decénios, se foram escolhendo líderes não parecem corresponder já ao que as pessoas querem. Não é por acaso que temos Trump nos Estados Unidos, que tivemos o Brexit e Inglaterra e que temos outros fenómenos, como o AfD na Alemanha. Aparece gente a querer coisas que estão fora do cânone tradicional das democracias organizadas europeias ou americanas. Vamos ver o que isso dá.

Quando há muito tempo sem guerra, baixa a qualidade da liderança

Numa entrevista afirmou a dada altura que "esta espécie de indiferença pela verdade em relação ao Estado é uma grande falha nacional". Continua a ser assim?

Em relação à verdade, sem dúvida. Em relação ao Estado, há muitas maneiras de olhar para o Estado. Agora, verdades são verdades ou são mentiras, não há as duas hipóteses. As pessoas aproveitam áreas em que é muito difícil saber o que é verdade ou o que é mentira, porque não há discussões profundas. E há outra forma mais ligada ao senso comum, que é a forma de um júri em inglês, "twelve good men and two". Aviltar isto, fazer baixar a verdade, é muito mau e vai-se pagar.

o posto em que eu achei que estava a participar numa coisa muito importante e gostei disso foi quando fui embaixador na África do Sul e o Mandela foi libertado

A propósito de inventário, se tivesse de fazer um sobre o que lhe deu mais gozo fazer?

O que me deu mais gozo não teve que ver com o nosso país. Provavelmente, o posto em que eu achei que estava a participar numa coisa muito importante e gostei disso foi quando fui embaixador na África do Sul e o Mandela foi libertado. Foi uma época extraordinária, era mais fácil para mim perceber do que para os embaixadores que viessem de países que não tinham tido qualquer coisa como o 25 de Abril antes, havia semelhanças. Agora, para Portugal fiz o melhor que sabia e que podia em vários sítios.

Conheceu bem Nelson Mandela? O que recorda e pode contar sobre ele?

Conheci muito bem. Conheci os companheiros de luta dele, a mulher, a ex-mulher, falei com ele várias vezes e falei com ele logo a seguir à libertação. E ele foi impecável, sempre. Tínhamos um interesse em comum, era que a comunidade de origem portuguesa na África do Sul não se viesse embora, ficasse lá e contribuísse para o desenvolvimento. E ele ajudou muito nisso e eu fiz o que pude pelo meu lado.

O que se lembra das conversas com ele, que esperanças tinha?

Ele era um senhor. Fui a casa deles, uma casa muito modesta nessa altura, a casa da segunda mulher, da Winnie Mandela, sentámo-nos num sofá com uma capulana muito puída, mas o senhor estava em casa, era o dono daquela casa, daquilo tudo. E quando ele foi libertado já se sabia que ia ser libertado para um dia tomar conta daquilo. E a conversa começou de uma maneira extraordinária, ele disse-me: "É uma vergonha, mas nunca estive no seu país". O homem tinha estado 28 anos preso. E depois acrescentou: "Em 1961", (ou 1962, já não me lembro), "voei para Dakar de Paris e fizemos escala em Lisboa. Saímos do avião, fomos para o edifício do aeroporto enquanto abasteciam o avião, ou qualquer coisa, e enquanto estava no aeroporto ofereceram-me uma garrafa de vinho do Porto. Ainda oferecem garrafas de vinho do Porto?" [ri]. Impecável. Ele era, de resto, um aristocrata, vinha de uma família real [tribal] Transkei. E até podia ser um vigarista, mas era assim, um senhor, não há outra palavra.

As pessoas não gostavam dele, ou achavam-no ordinário ou pouco estadista ou o que fosse, mas sem o Soares tínhamos apanhado aqui uma bordoada brutal. O PC tinha tomado conta disto, o Kissinger tinha com certeza mandado para cá a tropa

Sei que chegou a filiar-se no Partido Socialista, mas como se definiria politicamente?

Era mais à direita, mas o Soares convidou-me, disse-me que gostava que eu fosse para o partido, e eu inscrevi-me. Saí muito pouco tempo depois. O Sá Carneiro, uma vez, meio a brincar, disse-me: "Qualquer dia levo-o para o PSD". E eu respondia: "Não, não me leva para o PSD. Nunca estive interessado em nenhum partido e estive no PS por causa do Soares". Porque o Soares, com todos os defeitos que tinha, era uma personagem às vezes... As pessoas não gostavam dele, ou achavam-no ordinário ou pouco estadista ou o que fosse, mas sem o Soares tínhamos apanhado aqui uma bordoada brutal. O PC tinha tomado conta disto, o Kissinger tinha com certeza mandado para cá a tropa... E o Soares permitiu, basicamente, que o poder nunca caísse nas mãos do PC, depois do Vasco Gonçalves. E isso porque havia umas coisas em que o Soares acreditava mesmo: uma era a democracia - complementar, como se reconhece - e a outra era a Europa. Eram duas coisas firmes. E era um homem de uma enorme coragem, física e moral. O Eanes teve um papel muito importante, o Melo Antunes teve um papel muito importante, mas o Soares foi fundamental.

Usou uma vez a expressão "os grandes moralistas não devem ter família". Consegue ser objetivo nas críticas que faz?

Consigo. Fui educado a não privilegiar a família. Os médicos eram o que fossem, ser irmão, primo ou tio não interessava. A pessoa ou fazia bem o que tinha de fazer ou não fazia. O meu pai nisso era quase uma espécie de calvinista, não sei como é que isso aconteceu, mas era isso.

O seu pai morreu muito cedo...

Morreu com 44 anos, suicidou-se.

Que idade tinha na altura?

Tinha 21 anos.

Portugal é um país traumatizado? Porquê?

Todos os países são com certeza países traumatizados. Portugal viveu 48 anos de um sistema para-fascista, se quiser, e isso deixa uma marca. Antes disse tinha tido um século de Inquisição. Voltando ao meu pai, o meu pai tinha um apego extraordinário à verdade e às obrigações que isso traz consigo. E tinha também um grande sentido de humor, e podia ser extremamente sarcástico, mas nunca talhando aí. Isso marcou-me certamente para sempre.

A outra coisa que o meu pai dizia é que nós não devíamos ser descendentes dos que foram à Índia, éramos descendentes dos que cá tinham ficado

Herdou o sentido de humor dele.

Sim, também tenho. O meu pai, entre outras coisas [ri]... Há duas histórias dele que lhe vou contar: havia a certa altura, em Portugal, um problema de Febre de Malta, que é Brucelose. Apareceu de repente. E havia também um jovem médico, que tinha acabado de se formar, que vim a conhecer mais tarde, era muito inteligente e simpático, que foi aluno do meu pai na faculdade. E um dia o diretor-geral de saúde disse ao meu pai: "Sabe, acho que resolvemos o problema da Brucelose, pus lá o Queiroga". E o meu pai disse: "Desculpe, mas o que o senhor resolveu foi o problema do Queiroga". E nisto, Portugal ainda é muito assim. A outra coisa que o meu pai dizia é que nós não devíamos ser descendentes dos que foram à Índia, éramos descendentes dos que cá tinham ficado [ri].

este homem que lá está [Xi Jinping] foi declarado para a vida. O Trump deve achar admirável, mas é muito mau sinal. Há qualquer coisa de assustador na hegemonia da China em relação aos valores das pessoas

Como antropólogo, pensa com especial curiosidade naquilo em que o homem se está a transformar?

Há aqui diversas dimensões. Há uma dimensão de longo prazo, em que o prazo é tão longo que não me sinto com competência, com conhecimento, para saber como serão as coisas, nomeadamente como nos iremos adaptar a questões como a inteligência artificial, por exemplo. E em que medida nós, como espécie, vamos evoluir. Porque estamos num certo degrau, mas não é o último, não vivemos num mundo criacionista, não somos o aboutissement, o resultado final, estamos numa fase. Mas como cada fase demora milhares de anos, é muito difícil imaginar o futuro. Outra coisa são as chatices mais próximas, e há uma enorme, que é a China. Durante uns anos, desde Deng Xiaoping, vivemos na Europa, e não sei se alguns deles viveram na China, a noção de que, por fim, talvez tivéssemos razão, talvez haja um certo número de valores mais ou menos universais que devem ser defendidos. E a China caminhava para isso, fazendo esta coisa de ter um presidente e um vice-presidente que lhe ia suceder, havia uma série de entraves. E agora não, este homem que lá está [Xi Jinping] foi declarado para a vida. O Trump deve achar admirável, mas é muito mau sinal. Há qualquer coisa de assustador na hegemonia da China em relação aos valores das pessoas. Isto é o que eu sinto, não sou filósofo. Havia um filme contra a pena de morte, de um realizador francês, em que um capelão, a certa altura, quando ele já está cansado, abandonado à morte, lhe diz: "Tu es immortel et irremplaçable" [tu és imortal e insubstituível]. Imortal, creio que não, mas insubstituíveis somos todos. E quando se olha para a China não se tem a noção de que essa perceção esteja lá. A vantagem da democracia é podermos mudar quem manda em nós de quatro em quatro ou de cinco em cinco anos sem se pegar tudo à pancada outra vez. E isso seria preferível em toda a parte.

A participação em eleições em Portugal é cada vez menor, as pessoas demonstram pouco interesse. Porquê?

A razão principal, penso eu, é a preguiça e a indiferença. A democracia dá trabalho e muitas pessoas não são suficientemente diligentes. Aliás, há uma coisa que Hannah Arendt escreveu a contar o trabalho que dá a democracia. Dá muito menos trabalho a gente deixar-se governar. Mas aí volto a Churchill, que dizia que a democracia era a pior forma de governo, tirando todas as outras. Penso que quando se diz que a democracia não serve todos os países, quer-se dizer basicamente que ainda não estão preparados, não são suficientemente espertos para saber olhar por eles. E isso, quanto a mim, é ridículo e absurdo.

Uma crónica do livro Inventário acaba com uma pergunta: "Como se mete na ordem heróis do mar e um nobre povo assim?" Tem resposta?

Isso foi por causa da história de Tancos, que a meu ver é impressionante. Mas não sei. Não se esqueça que os militares fazem um juramento, podem morrer pela pátria, não podem fazer barafustas como esta. Para mim é muito mais grave uma instituição como a militar ser apanhada no meio de uma coisa destas.

O que é que Portugal tem de resolver para avançar?

Portugal tem de enriquecer, é basicamente isso. E é difícil, porque os portugueses não têm tradições de poupança, devia-se trabalhar mais nessa direção. Porque, como lhe digo, Portugal tem um problema de pobreza e do que vem com ela. Enquanto o país não enriquecer, não se sai de onde se está. E, parece-me, a tendência não vai ser nessa direção, porque os governos querem facilitar a vida às pessoas para poderem ser reeleitos.

Esta é uma conversa inédita, que teve lugar no dia 12 de fevereiro deste ano, ainda a Organização Mundial de Saúde não tinha decretado a pandemia e, acreditava-se, o novo coronavírus era um vírus circunscrito à China.

"E o que fizeram ao médico, coitadinho... O médico deve ficar na história da China como Martim Moniz ficou na nossa", comentava então meio a sério, meio a brincar José Cutileiro, que também passou pela licenciatura em Medicina.

O encontro, num hotel no Guincho, foi marcado para o fim do dia, não fosse ser chamado de repente para visitar alguma casa, que agora, que estava a mudar-se de Bruxelas para Portugal, procurava para viver com a mulher.

Um dos temas da conversa seria o seu mais recente livro, "Desabafos e Divagações de um Cético", mas acabou por ser a entrevista um brevíssimo inventário da uma vida: 85 anos por Portugal e pelo mundo, a fazer diplomacia, mas não só.

Várias vezes ao longo da conversa se percebe o cansaço e fala, sem falar, no seu já debilitado estado de saúde, sempre com sentido de humor. Quando o fotógrafo chega ele, que já anda devagar e muitas vezes na cadeira de rodas, lembra que neste momento está "inamovível".

"Estamos à procura de casa, já devo ter encontrado uma. Venho viver para Portugal, agora que a minha mulher, que trabalhava na Comissão Europeia, acabou o seu contrato e reformou-se. O que é uma grande mudança - tenho vivido muitas vezes em Portugal e venho todos os verões - mas o último emprego que tive aqui foi em 1988, era diretor-geral político no Ministério dos Estrangeiros. Depois disso nunca mais trabalhei aqui. Estou a meter o pé na água outra vez, e é curioso, porque há coisas que mudaram muito em Portugal e há coisas que não mudaram nada. É impressionante."

Aproveito a deixa e começamos a conversa, uma sucessão de histórias.

O que é que não mudou nada?

Uma espécie de... Uma maneira de estar nas coisas, entre uns computadores que ainda não se sabe bem como funcionam e uns compadres que já não funcionam tão bem como funcionavam. E há assim uma certa doçura no meio disto tudo, mas há também um grande desperdício. Quer dizer, é muito difícil manter uma espécie de bem-estar consigo e com os outros e, ao mesmo tempo, fazer as coisas com alguma eficácia. É, basicamente, isso que não mudou.

Sou diplomata de carreira, fui para a diplomacia em 1974, depois do 25 de Abril, e comecei por estar na Embaixada em Londres, como conselheiro cultural - nomeado, de resto, por Mário Soares, que era ministro dos [Negócios] Estrangeiros. O embaixador era um homem muito inteligente e simpático, mas que tinha tido uma história na oposição, tinha estado preso em Caxias, não me lembro bem porquê, o Albano Nogueira. Ele dizia que se tivéssemos um problema num lavatório em Londres e chamássemos um canalizador inglês, o tipo olhava, dizia que eram 15 libras e que teria de voltar no dia seguinte com um mate [colega]. Se chamássemos um português, ele olhava um bocadinho e depois perguntava: "O senhor tem por aí, por acaso, um bocadinho de guita?" [ri].

Diz-se que o homem é um animal de hábitos. Custa-lhe a mudança?

Já tenho pouco tempo para me habituar. Mas com certeza que vou habituar-me, não sou a pequena sueca [Greta Thunberg]. Quando se é novo e meio maluco revoltamo-nos contra o ambiente. Quando se é velho adaptamo-nos ao ambiente.

A maneira de ver as coisas muda com a idade? Como olha para o mundo aos 85 anos?

Da mesma maneira que olhei sempre. Antigamente o mundo não era certamente melhor. De resto, quando eu era miúdo, ainda durante a Segunda Guerra Mundial, e logo a seguir, havia um livro de um alemão, Erich Kästner - vim a saber mais tarde que era um opositor de Hitler e tinha tido problemas, mas que nessa altura escrevia livros para crianças - que eu lia: "Emílio e os Detectives".

Sei perfeitamente, também li. O autor foi também jornalista.

Então recorda que a senhora Tischbein, mãe do Emílio, tinha uns amigos de uma certa idade que achavam que o mundo era melhor no tempo deles porque, diziam - e nunca mais me esqueci, porque achei muito engraçado - "o céu era mais azul e as cabeças dos bois eram maiores". O céu é igual e os bois a gente já quase não os vê.

Passo desse livro para o seu mais recente, "Inventário, Desabafos e Divagações de um Cético".

O livro Inventário tem uma seleção de crónicas, cerca de 100, retiradas de um grupo de mais de 300, escritas para o blogue de uma amiga, que morreu em outubro, a Vera Futscher Pereira. A certa altura, deixei de escrever já não sei para que jornal e pedi-lhe asilo político, por assim dizer. Escrevia sobre o que me apetecia e ela foi uma excelente editora. Tive vários editores ao longo dos anos, não tenho razões de queixa de nenhum, mas houve dois de quem gostei mais do que dos outros; um foi ela, outro foi o Victor Cunha Rego, mas isso era quando eu escrevia uma coisa chamada Kotter - durante muitos anos publiquei, primeiro no jornal diário "A Tarde", depois no Semanário e mais tarde n'"O Independente", uma coisa que se chamava "Bilhetes de Colares", assinados A. B. Kotter, que era um homossexual velho inglês, antigo espião, que vivia em Colares, e que eram traduzidos para português pelo escriba dele que, suspeitava-se vagamente, pudesse ser amante, mas era basicamente um ex-comando. E o Kotter... Porque é que estou a falar do Kotter?

Veio a propósito das suas crónicas e dos seus editores preferidos.

Ah, porque o Victor dizia-me de vez em quando: "Devias falar mais nos cães" e umas coisas assim. A Vera gostava mais de umas coisas do que doutras, ia-me guiando sem me magoar.

O que significava falar mais nos cães?

Era dar um tom de mais sossego, de tranquilidade.

Hoje fala-se muito de cães e de gatos, mas penso que o sentido é outro.

Porquê?

Há uma humanização dos animais.

É verdade. Como andamos à procura de casa, outro dia, num bairro, reparei na quantidade de cocó de cão que há na rua... As pessoas passeiam os seus cães, mas não vão, como nos outros países civilizados, com um saquinho de plástico na mão para apanhar aquilo. Gostam do bicho, mas mais nada.

créditos: Paulo Rascão / MadreMedia

Voltando ao livro: "Desabafos e divagações de um cético". Considera-se cético?

Sou. Não sou cético no sentido especializado dos filósofos céticos, mas sou cético na medida em que, por exemplo, não sou crente, sou ateu - nem sequer sou batizado - e, em princípio, é bom que as coisas possam ser provadas. Mas o sub-título do livro, de resto, apareceu no fim; o meu editor, que é um óptimo editor, o Duarte Bárbara, disse que era preciso um sub-título e eu disse-lho ao telefone, saiu assim.

Fez Medicina, mudou para a Antropologia. Passou da Medicina para a Antropologia. Porquê?

Tinha feito o curso de Medicina aqui, mas resolvi ser antropólogo, fiz o diploma Antropologia em Oxford em - o tempo passa - 1964, e tive uma distinção que me permitiu preparar imediatamente uma tese de doutoramento e fazer uma coisa que não se faz muito em antropologia: vir trabalhar para o meu país. Em vez de ir trabalhar para o meio do Bongo Bongo, como dizem os ingleses, trabalhei no Alentejo, que é de onde eu venho. Escrevi um livro publicado em inglês em 1971, chamado "A Portuguese Rural Society", que é baseado na minha tese de doutoramento e que, depois da mudança de regime aqui, foi traduzido para português. Tentei encontrar um nome menos chato, mas lembro-me de ter feito buscas e só me apareciam coisas sobre peasants e peasantry [componeses e campo], que no século XVII eram mal vistos. Como não havia nada simpático, acabei por chamar-lhe assim. A tradução para português foi feita por um agrónomo e acabou por ficar, e muito bem, "Ricos e Pobres no Alentejo". Passado três anos a London School of Economics abriu um concurso, candidatei-me e fui lecionar. Tinha pedido uma licença sabática para o ano seguinte, sem saber muito bem o que iria fazer, quando houve o 25 de Abril. Mudou tudo.

Como lhe chegou a notícia do 25 de Abril, quando soube?

Soube de manhã. Estava no gabinete da London School of Economics e a minha mulher telefonou-me. Um amigo nosso que vivia perto, o João Monjardino, tinha-lhe telefonado a dizer que o irmão, o Carlos Monjardino, da Fundação Oriente, tinha telefonado de Paris a dizer que tinha havido uma revolução em Portugal. E eu perguntei-lhe: "De esquerda ou de direita?", porque estava realmente muito longe das coisas. Depois do 1.º de Maio, que foi extremamente animado, cheguei a Lisboa e já não havia PIDE, estavam uns guardas fiscais na alfândega e um miúdo de camisa branca, impecável, diz-me: "Seja bem-vindo a este país livre". Nunca mais me esqueci.

Num país deste tamanho, regionalização é para dar mais tachos a meia dúzia de tipos que vão ter mais secretárias e mais Mercedes e mais telefones e mais não sei o quê. Vão custar uma quantidade de dinheiro

Volto um pouco atrás para lhe perguntar se é a favor ou contra a regionalização?

Contra. Num país deste tamanho, regionalização é para dar mais tachos a meia dúzia de tipos que vão ter mais secretárias e mais Mercedes e mais telefones e mais não sei o quê. Vão custar uma quantidade de dinheiro. Sou contra. Sempre fui, acho completamente disparatado. Havia uma senhora - coitadinha, morreu há pouco tempo - que era uma católica de esquerda convicta, que esteve num governo do Soares, era secretária de Estado não sei de quê [Manuela Silva, secretária de Estado do Planeamento] e tinha feito um programa a definir regiões, e o Soares estava assim meio a dormir no Conselho de Ministros e, de repente: "Ó minha senhora, mas o que é isto, onde é que é o Minho?!" [ri].

Este governo PS, liderado por António Costa, é a favor da regionalização.

Podem ser o que quiserem, eu sou inteiramente contra, acho um disparate total. Aquilo a que, lamentavelmente, se chama a classe política - uma coisa horrível, termos chegado a uma fase do mundo em que temos de falar de classe política... Dantes fazia-se política, havia uns tipos que estavam na política.

Estavam na política, como estavam secretários de Estado, estavam ministros? Hoje são políticos, são secretários de Estado, são ministros. É diferente?

É. Às vezes havia um ou outro que se tornava mais eminente em Portugal ou no estrangeiro e que era mais conhecido por isso, mas isto agora... Eu estou muito longe, sabe, e os velhos perdem a paciência para certas coisas.

Para que coisas se perde a paciência?

Para tudo. Quando eu era miúdo, havia um avançado - eu era sportinguista...

Já não é?

Agora não sou nada, provocando a indignação dos meus compatriotas. Há uns 20 anos estava eu em Londres, paguei o café com cartão e estava lá o meu nome, Cutileiro. E o tipo diz: "É português?" "Sou, sou". "É do Sporting ou do Benfica?" Respondi; "Ahq...". O tipo ficou zangado...

Mas interrompi a história sobre o avançado...

Havia um avançado-centro muito conhecido nessa altura, o Fernando Peyroteo, e eu não percebia - a minha família era uma família da oposição, anti-salazarista - e eu não percebia porque é que o Peyroteo não era presidente. O Peyroteo é que devia ser presidente. Depois, com o tempo, percebemos que isso não é assim. Mas a certa altura passa-se uma coisa que é quase ao contrário: conhecemos menos bem as pessoas mais novas, já não as distinguimos umas das outras e desinteressamo-nos um pouco.

Mesmo antes de ser embaixador viveu em diversos países. Como era regressar a Portugal?

Quando tinha 17 anos vivi seis meses no Afeganistão. O meu pai era médico, ensinava na Faculdade de Medicina e estava na Direção-Geral de Saúde, e teve um problema grave de desentendimento e de mau tratamento pela DGS e arranjou um lugar na Organização Mundial de Saúde em Genève, onde estivemos um tempo, e depois aceitou ser professor de Medicina Social em Cabul. Adoeceu entretanto, de maneira que acabámos por passar lá seis em vez dos três anos previsto, mas foi o primeiro sítio onde vivi fora e o meu primeiro regresso a Portugal. E é engraçado, porque durante muitos anos foi assim: chegava-se a um país onde as pessoas estavam tristes e era como se fossem todas para um casamento, tudo muito arranjadinho.

Tive muitas vezes a sensação de que a pessoa mais importante em Maputo, quando lá estive, era Samora Machel e a segunda era o embaixador de Portugal. E se o embaixador de Portugal fosse um cavalo, ainda assim era o embaixador de Portugal

Voltou a sair quase dez anos depois, e então sim, demorou a regressar. Europa, Estados Unidos, África, locais muito diferentes em termos culturais.

Estive em Portugal até aos 27 ou 28 anos, indo a Espanha umas vezes, nada de especial, e depois fui para Oxford, onde vivi oito anos, mas fiz cá o trabalho de campo. Estive seis anos em Londres, três anos em Estrasburgo, no Conselho da Europa, três anos em Maputo, como embaixador, dois anos na Suécia, na Conferência de Segurança Europeia. Era engraçado ser embaixador em sítios como Maputo. Agora não sei como é, mas antes achava-se que os miúdos com mais talento, os melhores, quando fossem postos no estrangeiro pela primeira vez deviam ir para esses postos, não deviam ir para Paris e para Londres, para onde geralmente há a tendência de levar os melhores, porque é o que apetece mais. Mas para países como Moçambique, pelo menos nessa altura, Portugal ainda era uma potência. Tive muitas vezes a sensação de que a pessoa mais importante em Maputo, quando lá estive, era Samora Machel e a segunda era o embaixador de Portugal. E se o embaixador de Portugal fosse um cavalo, ainda assim era o embaixador de Portugal. Isso já deve ter amainado muito, mas ainda há uma relação muito especial entre ex-colónias e ex-metrópole, é uma coisa sui generis, muito complicada, mas que dá normalmente razões de satisfação provavelmente aos dois lados e provavelmente diferentes.

Como eram as relações entre Portugal e Moçambique, quando esteve em Maputo?

Quando cheguei a Moçambique as relações oficiais eram muito más. Aliás, a certa altura convidei para almoçar, mas ele não vinha a minha casa, o diretor do gabinete do presidente Machel, um homem chamado Luís Bernando Honwana, que é escritor, muito engraçado e muito inteligente - ainda é vivo. Convidei-o para almoçar num restaurante, mas aquilo foi tratado por um intermediário, que era o meu conselheiro cultural, um padre que, sob o nome José Capela, escrevia livros sobre a história económica de Moçambique. Chamava-se José Soares Martins, já morreu, muito ligado à Frelimo e que tinha sido nomeado não sei por quem adido cultural na embaixada em Maputo, e era amigo do Honwana. Fui eu buscar o Honwana à Presidência no meu carro e fui ao gabinete dele, estava de pé a mexer nuns papéis, e perguntou: "Vocês têm confiança no Soares Martins?" "Temos, porquê?", respondi. "Porque nós também". [ri] As relações eram muito más, mas depois melhoraram, resolveu-se o problema da banca, eles tinham nacionalizado uns bancos portugueses, e Sá Carneiro fez muito por resolver isso. E quando, depois, os ministros moçambicanos vinham a minha casa e, depois do jantar, no café, se passam as aguardentes, havia conhaques franceses diversos, mas os tipos iam diretos para o Carvalho Ribeiro & Ferreira [marca de aguardente]. Era assim. E se, por um lado, não se pode exagerar isto e pensar que temos um papel muito especial nesses países porque fomos colonizadores, por outro não se pode também esquecer completamente esse facto, como se não fosse nada. Porque foi qualquer coisa, foi qualquer coisa da sua importância.

Fez tropa?

Não, fiquei isento. Na altura em que fui às sortes não havia ainda Guerra Colonial, de maneira que fiquei livre.

Lembro-me de que o governo português tinha na altura uns letreiros nas montras que diziam: "Angola é nossa". Nunca vi um que dissesse "Moçambique é nosso" ou "Guiné é nossa"

Tem acompanhado a novela Luanda Leaks?

Há vários países, não só africanos, mas em África isso é muito abundante, em que quem está no poder apanha a riqueza e deixa ficar o resto ao Deus dará. E depois as famílias têm uma grande importância e fazem-se coisas... A justiça terá de provar o que houver a provar, mas não é nada que espante. O pai José Eduardo dos Santos hoje vive em Barcelona, num condomínio protegido... Isto pode ver-se de várias maneiras: ele era do MPLA, foi escolhido, depois da morte de Agostinho Neto, provavelmente porque era o que tinha a cor mais escura. O MPLA era muito português, muito mestiço, e tem muitos vícios portugueses, acho eu, caraterísticos. Seja como for, ele foi escolhido e era um rapaz de Angola, que tinha estudado na Rússia, que fez a sua carreira e que depois chegou ao cimo do poder e fez algum dinheiro, muito dinheiro, e depois os filhos fizeram mais dinheiro. O que, visto do ponto de vista da família, não está mal [ri]. O pior é tentar conciliar isso com um Estado moderno e com os direitos e deveres dos cidadãos angolanos, quer sejam mandados, quer mandem, como é o caso. Portugal, nesta história, infelizmente... Lembro-me de que o governo português tinha na altura uns letreiros nas montras que diziam: "Angola é nossa". Nunca vi um que dissesse "Moçambique é nosso" ou "Guiné é nossa". E houve uns tempos, ultimamente, em que a gente chegava a perguntar-se se eles não poderiam dizer que Portugal era deles. É assim, houve chefes corruptos em toda a parte e este é um caso vistoso, ainda por cima é uma mulher, dá mais nas vistas.

Em Portugal fizeram-se referendos sobre a regionalização e o aborto. O Reino Unido levou a referendo a permanência ou não na União Europeia e acaba de deixar a UE.

O referendo é o processo ideal dos populistas, é uma coisa feita para dar mau resultado. E deu, a meu ver. Embora eles por fim tenham ido atrás de Boris Johnson. Penso que a saída dos britânicos da União Europeia é má, para eles e também para a União Europeia. Durante estes três anos, vistos de fora, os ingleses pareciam um bando de loucos, às vezes, mas durante muitos anos não foi assim, tinham duas coisas que acredito que fazem falta à União Europeia: muito bom senso e, na maioria das questões, uma certa decência na maneira de tratar as coisas entre grandes e pequenos. E esse equilíbrio vai-se, nós ficamos nas mãos...

[sobre o Brexit] O referendo é o processo ideal dos populistas, é uma coisa feita para dar mau resultado. E deu, a meu ver

Entretanto muitas coisas se passaram, os países estão cada vez com menos vergonha.

Tem razão, ainda por cima os ingleses tinham outra coisa: tinham sido o único e verdadeiro vencedor da Segunda Guerra Mundial que estava na União Europeia, porque a Alemanha tinha sido vencida e a França foi salva de ser vencida pelo De Gaulle, que fez uma coisa formidável, pôs a França no Conselho de Segurança - porque aos ingleses também lhes convinha - e fez da França um país vencedor. Mas a França foi um país de colaboracionistas, largamente. De maneira que temos a França, que quando lhe dá para ser francesa é perigosa, e a Alemanha, que esteve décadas a fingir que não tinha força, porque não podia e porque estava envergonhada, e que está a perder a vergonha a pouco e pouco. É pena, porque a Alemanha pagou muito caro o Hitler - e alguns devem achar que a conta está paga. E se a conta está paga é uma chatice, vêm ao de cima certas características alemãs absolutamente imparáveis e complicadas. Agora há uma crise enorme com a CDU e com a senhora AKK [Annegret Kramp-Karrenbauer não se vai candidatar ao cargo de chanceler em 2021 e vai abdicar da chefia dos democratas-cristãos alemães no final do ano]. E isso é mau.

temos a França, que quando lhe dá para ser francesa é perigosa, e a Alemanha, que esteve décadas a fingir que não tinha força, porque não podia e porque estava envergonhada, e que está a perder a vergonha a pouco e pouco

O Reino Unido foi muitas vezes acusado de ser responsável por a Europa não fazer mais pela sua defesa.

Pois, mas isso aconteceu assim porque aos outros dava-lhes muito jeito não gastar dinheiro em defesa. E os ingleses, que gastavam muito em defesa - juntamente com a França eram os dois que gastavam quase tanto como devia ser - queriam manter a aliança com os Estados Unidos, e eu percebo isso, porque não há defesa da Europa ocidental, ou da Europa anti-russa, se quiser, sem os Estados Unidos. De maneira que, voltando ao começo, é uma chatice os ingleses terem saído.

E se lhes corre bem a vida?

Essa é uma pergunta. Isso pode animar outros a quererem sair. E aqui há duas coisas: a primeira é que penso que não lhes vai correr bem a vida, a segunda é que, se lhes correr bem a vida, é porque têm recursos que nem todos os outros têm. Mas acredito que não lhes vai correr particularmente bem, porque veja, a União Europeia só é uma potência no comércio. Aí são 500 milhões [população], e quando vai negociar uma coisa com 500 milhões por trás, tem um peso, com 50 ou 60 milhões, que são os ingleses, tem outro peso.

créditos: Paulo Rascão / MadreMedia

Percebe o que Boris Johnson quer para o Reino Unido?

Espero que ele tenha percebido. Ele escreveu uma biografia de Churchill e identifica-se muito com Churchill, mas não é da mesma cepa. O Churchill não ficou na história por ser aldrabão, por exemplo, por ter inventado coisas absurdas sobre fosse o que fosse para seu benefício político ou para dar nas vistas. Boris Johnson é um jornalista dotado, nunca li os livros dele, mas li muitos artigos. Julgo que vai ter de negociar com a Europa e vai ter de ceder em algumas coisas, senão isto não vai estar arrumado nos próximos anos e isso pode abrir vários caminhos.

Muitos afirmam que não temos líderes. Como é que caracterizaria os líderes de hoje, nacionais e internacionais?

Quando há muito tempo sem guerra, baixa a qualidade da liderança. Tivemos o Churchill, o Roosevelt e, se quiser ser horrível, o Hitler. Foi quando houve guerra. Sem guerra isso vai indo para baixo a pouco e pouco. Como poderia ser diferente? A pergunta é boa, até porque os critérios pelos quais, durante uns decénios, se foram escolhendo líderes não parecem corresponder já ao que as pessoas querem. Não é por acaso que temos Trump nos Estados Unidos, que tivemos o Brexit e Inglaterra e que temos outros fenómenos, como o AfD na Alemanha. Aparece gente a querer coisas que estão fora do cânone tradicional das democracias organizadas europeias ou americanas. Vamos ver o que isso dá.

Quando há muito tempo sem guerra, baixa a qualidade da liderança

Numa entrevista afirmou a dada altura que "esta espécie de indiferença pela verdade em relação ao Estado é uma grande falha nacional". Continua a ser assim?

Em relação à verdade, sem dúvida. Em relação ao Estado, há muitas maneiras de olhar para o Estado. Agora, verdades são verdades ou são mentiras, não há as duas hipóteses. As pessoas aproveitam áreas em que é muito difícil saber o que é verdade ou o que é mentira, porque não há discussões profundas. E há outra forma mais ligada ao senso comum, que é a forma de um júri em inglês, "twelve good men and two". Aviltar isto, fazer baixar a verdade, é muito mau e vai-se pagar.

o posto em que eu achei que estava a participar numa coisa muito importante e gostei disso foi quando fui embaixador na África do Sul e o Mandela foi libertado

A propósito de inventário, se tivesse de fazer um sobre o que lhe deu mais gozo fazer?

O que me deu mais gozo não teve que ver com o nosso país. Provavelmente, o posto em que eu achei que estava a participar numa coisa muito importante e gostei disso foi quando fui embaixador na África do Sul e o Mandela foi libertado. Foi uma época extraordinária, era mais fácil para mim perceber do que para os embaixadores que viessem de países que não tinham tido qualquer coisa como o 25 de Abril antes, havia semelhanças. Agora, para Portugal fiz o melhor que sabia e que podia em vários sítios.

Conheceu bem Nelson Mandela? O que recorda e pode contar sobre ele?

Conheci muito bem. Conheci os companheiros de luta dele, a mulher, a ex-mulher, falei com ele várias vezes e falei com ele logo a seguir à libertação. E ele foi impecável, sempre. Tínhamos um interesse em comum, era que a comunidade de origem portuguesa na África do Sul não se viesse embora, ficasse lá e contribuísse para o desenvolvimento. E ele ajudou muito nisso e eu fiz o que pude pelo meu lado.

O que se lembra das conversas com ele, que esperanças tinha?

Ele era um senhor. Fui a casa deles, uma casa muito modesta nessa altura, a casa da segunda mulher, da Winnie Mandela, sentámo-nos num sofá com uma capulana muito puída, mas o senhor estava em casa, era o dono daquela casa, daquilo tudo. E quando ele foi libertado já se sabia que ia ser libertado para um dia tomar conta daquilo. E a conversa começou de uma maneira extraordinária, ele disse-me: "É uma vergonha, mas nunca estive no seu país". O homem tinha estado 28 anos preso. E depois acrescentou: "Em 1961", (ou 1962, já não me lembro), "voei para Dakar de Paris e fizemos escala em Lisboa. Saímos do avião, fomos para o edifício do aeroporto enquanto abasteciam o avião, ou qualquer coisa, e enquanto estava no aeroporto ofereceram-me uma garrafa de vinho do Porto. Ainda oferecem garrafas de vinho do Porto?" [ri]. Impecável. Ele era, de resto, um aristocrata, vinha de uma família real [tribal] Transkei. E até podia ser um vigarista, mas era assim, um senhor, não há outra palavra.

As pessoas não gostavam dele, ou achavam-no ordinário ou pouco estadista ou o que fosse, mas sem o Soares tínhamos apanhado aqui uma bordoada brutal. O PC tinha tomado conta disto, o Kissinger tinha com certeza mandado para cá a tropa

Sei que chegou a filiar-se no Partido Socialista, mas como se definiria politicamente?

Era mais à direita, mas o Soares convidou-me, disse-me que gostava que eu fosse para o partido, e eu inscrevi-me. Saí muito pouco tempo depois. O Sá Carneiro, uma vez, meio a brincar, disse-me: "Qualquer dia levo-o para o PSD". E eu respondia: "Não, não me leva para o PSD. Nunca estive interessado em nenhum partido e estive no PS por causa do Soares". Porque o Soares, com todos os defeitos que tinha, era uma personagem às vezes... As pessoas não gostavam dele, ou achavam-no ordinário ou pouco estadista ou o que fosse, mas sem o Soares tínhamos apanhado aqui uma bordoada brutal. O PC tinha tomado conta disto, o Kissinger tinha com certeza mandado para cá a tropa... E o Soares permitiu, basicamente, que o poder nunca caísse nas mãos do PC, depois do Vasco Gonçalves. E isso porque havia umas coisas em que o Soares acreditava mesmo: uma era a democracia - complementar, como se reconhece - e a outra era a Europa. Eram duas coisas firmes. E era um homem de uma enorme coragem, física e moral. O Eanes teve um papel muito importante, o Melo Antunes teve um papel muito importante, mas o Soares foi fundamental.

Usou uma vez a expressão "os grandes moralistas não devem ter família". Consegue ser objetivo nas críticas que faz?

Consigo. Fui educado a não privilegiar a família. Os médicos eram o que fossem, ser irmão, primo ou tio não interessava. A pessoa ou fazia bem o que tinha de fazer ou não fazia. O meu pai nisso era quase uma espécie de calvinista, não sei como é que isso aconteceu, mas era isso.

O seu pai morreu muito cedo...

Morreu com 44 anos, suicidou-se.

Que idade tinha na altura?

Tinha 21 anos.

Portugal é um país traumatizado? Porquê?

Todos os países são com certeza países traumatizados. Portugal viveu 48 anos de um sistema para-fascista, se quiser, e isso deixa uma marca. Antes disse tinha tido um século de Inquisição. Voltando ao meu pai, o meu pai tinha um apego extraordinário à verdade e às obrigações que isso traz consigo. E tinha também um grande sentido de humor, e podia ser extremamente sarcástico, mas nunca talhando aí. Isso marcou-me certamente para sempre.

A outra coisa que o meu pai dizia é que nós não devíamos ser descendentes dos que foram à Índia, éramos descendentes dos que cá tinham ficado

Herdou o sentido de humor dele.

Sim, também tenho. O meu pai, entre outras coisas [ri]... Há duas histórias dele que lhe vou contar: havia a certa altura, em Portugal, um problema de Febre de Malta, que é Brucelose. Apareceu de repente. E havia também um jovem médico, que tinha acabado de se formar, que vim a conhecer mais tarde, era muito inteligente e simpático, que foi aluno do meu pai na faculdade. E um dia o diretor-geral de saúde disse ao meu pai: "Sabe, acho que resolvemos o problema da Brucelose, pus lá o Queiroga". E o meu pai disse: "Desculpe, mas o que o senhor resolveu foi o problema do Queiroga". E nisto, Portugal ainda é muito assim. A outra coisa que o meu pai dizia é que nós não devíamos ser descendentes dos que foram à Índia, éramos descendentes dos que cá tinham ficado [ri].

este homem que lá está [Xi Jinping] foi declarado para a vida. O Trump deve achar admirável, mas é muito mau sinal. Há qualquer coisa de assustador na hegemonia da China em relação aos valores das pessoas

Como antropólogo, pensa com especial curiosidade naquilo em que o homem se está a transformar?

Há aqui diversas dimensões. Há uma dimensão de longo prazo, em que o prazo é tão longo que não me sinto com competência, com conhecimento, para saber como serão as coisas, nomeadamente como nos iremos adaptar a questões como a inteligência artificial, por exemplo. E em que medida nós, como espécie, vamos evoluir. Porque estamos num certo degrau, mas não é o último, não vivemos num mundo criacionista, não somos o aboutissement, o resultado final, estamos numa fase. Mas como cada fase demora milhares de anos, é muito difícil imaginar o futuro. Outra coisa são as chatices mais próximas, e há uma enorme, que é a China. Durante uns anos, desde Deng Xiaoping, vivemos na Europa, e não sei se alguns deles viveram na China, a noção de que, por fim, talvez tivéssemos razão, talvez haja um certo número de valores mais ou menos universais que devem ser defendidos. E a China caminhava para isso, fazendo esta coisa de ter um presidente e um vice-presidente que lhe ia suceder, havia uma série de entraves. E agora não, este homem que lá está [Xi Jinping] foi declarado para a vida. O Trump deve achar admirável, mas é muito mau sinal. Há qualquer coisa de assustador na hegemonia da China em relação aos valores das pessoas. Isto é o que eu sinto, não sou filósofo. Havia um filme contra a pena de morte, de um realizador francês, em que um capelão, a certa altura, quando ele já está cansado, abandonado à morte, lhe diz: "Tu es immortel et irremplaçable" [tu és imortal e insubstituível]. Imortal, creio que não, mas insubstituíveis somos todos. E quando se olha para a China não se tem a noção de que essa perceção esteja lá. A vantagem da democracia é podermos mudar quem manda em nós de quatro em quatro ou de cinco em cinco anos sem se pegar tudo à pancada outra vez. E isso seria preferível em toda a parte.

A participação em eleições em Portugal é cada vez menor, as pessoas demonstram pouco interesse. Porquê?

A razão principal, penso eu, é a preguiça e a indiferença. A democracia dá trabalho e muitas pessoas não são suficientemente diligentes. Aliás, há uma coisa que Hannah Arendt escreveu a contar o trabalho que dá a democracia. Dá muito menos trabalho a gente deixar-se governar. Mas aí volto a Churchill, que dizia que a democracia era a pior forma de governo, tirando todas as outras. Penso que quando se diz que a democracia não serve todos os países, quer-se dizer basicamente que ainda não estão preparados, não são suficientemente espertos para saber olhar por eles. E isso, quanto a mim, é ridículo e absurdo.

Uma crónica do livro Inventário acaba com uma pergunta: "Como se mete na ordem heróis do mar e um nobre povo assim?" Tem resposta?

Isso foi por causa da história de Tancos, que a meu ver é impressionante. Mas não sei. Não se esqueça que os militares fazem um juramento, podem morrer pela pátria, não podem fazer barafustas como esta. Para mim é muito mais grave uma instituição como a militar ser apanhada no meio de uma coisa destas.

O que é que Portugal tem de resolver para avançar?

Portugal tem de enriquecer, é basicamente isso. E é difícil, porque os portugueses não têm tradições de poupança, devia-se trabalhar mais nessa direção. Porque, como lhe digo, Portugal tem um problema de pobreza e do que vem com ela. Enquanto o país não enriquecer, não se sai de onde se está. E, parece-me, a tendência não vai ser nessa direção, porque os governos querem facilitar a vida às pessoas para poderem ser reeleitos.

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