As pinturas pré-históricas do Abrigo da Pala Pinta

01-01-2021
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Texto de Gonçalo Pereira

Coimbra, 1921. Numa aula do Curso de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade local, Vergílio Correia, reputado arqueólogo e historiador, fala de arte pré-histórica, mostrando aos alunos alguns dos poucos exemplos conhecidos à data de pinturas e gravuras rupestres pós-paleolíticas da Península Ibérica. Um dos alunos, Horácio de Mesquita, dirige-se ao professor, dando nota de que, na sua terra, Carlão, no concelho transmontano de Alijó, num abrigo granítico conhecido quase exclusivamente por caçadores ao qual davam o nome de Pala Pinta, se podiam observar desenhos pintados a vermelho semelhantes aos que lhe acabara de mostrar.

O docente desafia o aluno a reproduzi-los por decalque. Pouco depois, publicam na revista “Terra Portuguesa” um artigo conjunto noticiando o achado, o que tornou a Pala Pinta o segundo local conhecido com arte rupestre pré-histórica na região, que contava já com as famosas pinturas do Cachão da Rapa, publicadas por Jerónimo Contador de Argote em 1734.

Embora reconhecendo não ser um especialista, Horácio de Mesquita não deixou de sugerir algumas hipóteses de interpretação para os grafismos que viu pintados. “Será um acto de magia?”, perguntava. “Relacionar-se-á, como tantos outros, com alguma cerimónia fúnebre?” Ou seria “a documentação da passagem de algum cometa?” A curiosa referência de Horácio Mesquita a um cometa talvez não seja alheia à expectativa criada em 1910 em torno da passagem, nesse ano, do cometa Halley pela cercania da Terra.

“Não sabiam o que era. Mas era mau de certeza…”

Tal como José Leite de Vasconcelos testemunhou na sua recolha etnográfica, a passagem despertou receios latentes, recordando antigos dizeres das populações transmontanas. “Em Alvações do Corgo, o povo andava aterrado, porque dizia que o cometa era um homem muito alto e muito mau, com as barbas [ou seja, a cauda] muito grandes, que tinha devorado a mulher e os filhos e vinha agora devorar-nos todos”, notou. “Em Baião, explicavam que a cometa era uma mulher, que tinha comido os filhos e, como não tinha nem céu nem inferno, andava errante pelo ar e deixava cair objectos cortantes, como facas, machados, picaretas (…)” João Fernandes, astrónomo da Universidade de Coimbra, resume, com graça, o espírito da época: “Não sabiam o que era. Mas era mau de certeza…”

A uniformidade cromática, a ausência de sobreposições e a uniformidade estilística entre os signos são indícios que levaram os arqueólogos a admitir precocemente que o dispositivo figurativo da Pala Pinta teria resultado de uma só fase de execução. Também o carácter celeste dos motivos mais expressivos foi consensual, sendo mesmo referido pelo reputado Henri Breuil como um curioso precedente das personagens solares divinizadas que irá mais tarde emergir nas civilizações da Mesopotâmia. Com base no seu aspecto circular, muitas das vezes concêntrico ou raiado, a tradição da disciplina tem encarado estes motivos como associados de alguma forma a evocações da nossa estrela.

O assunto parecia não dar origem a grandes debates até que, em 2008, o arqueólogo Paulo Lima, então estudante da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, visitou o abrigo na companhia de colegas. A evocação celeste de alguns motivos pareceu-lhe evidente, mas a sua associação ao Sol, pelo contrário, afigurava-se ambígua. Tal como a Horácio de Mesquita, alguns motivos pareciam evocar mais a aparência que um cometa pode desenvolver durante um avistamento. Contudo, o estado delido de algumas figuras da Pala Pinta não permitiu uma leitura muito clara.

“Juntos, somos como o radiologista que faz o exame ao paciente para o médico poder depois traçar o diagnóstico”, brinca Luís Bravo Pereira.

Na impossibilidade de viajar ao passado, Luís Bravo Pereira e Hugo Pires trouxeram-no para o presente. O primeiro é responsável pela fotografia multiespectral, que resulta da conjugação numa única imagem, para além das bandas RGB que o olho humano naturalmente processa, de imagens captadas em diferentes comprimentos de onda do espectro electromagnético. O segundo lida com a fotogrametria e a digitalização tridimensional. “Juntos, somos como o radiologista que faz o exame ao paciente para o médico poder depois traçar o diagnóstico”, brinca Luís Bravo Pereira. “No fundo, prolongamos os sentidos humanos para que, com base numa acuidade visual melhorada, se possa chegar mais perto dos contornos iniciais dos motivos, mitigando o efeito de milénios de erosão natural. ”

As vantagens para o estudo da arte pré-histórica com a adopção deste tipo de tecnologias são substanciais, pois passa a ser possível dispor e manipular dados numa plataforma 3D interactiva, permitindo estabelecer a correcta articulação espacial entre os motivos. “Durante o século XX, o registo ficou muito ligado à capacidade de interpretação do investigador que a estudava, decalcando-a e retirando dela informação”, diz Hugo Pires. Ora, o decalque é subjectivo e depende do que o observador consegue ver. Num caso como o da Pala Pinta, o pigmento usado nas pinturas é muito semelhante a pigmentos naturais existentes na rocha e a erosão danificou algumas áreas. “A nossa parte do trabalho visa limpar ao máximo a sujidade dos ‘óculos’ do observador. Com radiação não visível (infravermelha e ultravioleta), detectamos e contrastamos pormenores não visíveis a olho nu”, diz.

A vantagem não é despicienda. Há uma década, o mesmo equipamento ocupava a área de uma sala e tinha reduzida aplicação numa encosta como a de Carlão. “Agora, levamos tudo o que precisamos numa mochila e demorámos apenas uma hora para recolher dados para a fotografia multiespectral e a modelação 3D”, diz Luís Bravo Pereira. Para a elaboração do modelo tridimensional, acrescenta Hugo Pires, “foram realizadas três dezenas de fotogramas que, após um processo de cálculo fotogramétrico para reconstituição da origem e direcção de cada raio de luz captado, originaram cerca de dez milhões de pontos medidos sobre a superfície do abrigo”.

“E, pela primeira vez na Pala Pinta, dispusemos de meios para integrar numa plataforma 3D todo o dispositivo figurativo que se distribui por locais e superfícies afastadas”.

Associando estes pontos através de uma malha de triângulos reconstruiu-se digitalmente a morfologia do abrigo com um elevado grau de detalhe e fiabilidade. “Temo que muitos investigadores não estejam preparados para tirarmos o véu do tempo aos objectos e já nos aconteceu especialistas considerarem que estas imagens pudessem ter sido manipuladas”, conta Hugo Pires.

Com imagens dos motivos inseridas numa plataforma 3D interactiva, Paulo Lima pôde fundamentar a sua proposta interpretativa para os painéis. A tradição da arqueologia em trabalhar estatisticamente conduziu à eleição do painel como unidade estatística, o que acabou por gerar uma fragmentação do registo, dificultando correlações entre motivos da mesma composição. “Ora, uma composição vive do conjunto, não é fragmentável”, diz. “E, pela primeira vez na Pala Pinta, dispusemos de meios para integrar numa plataforma 3D todo o dispositivo figurativo que se distribui por locais e superfícies afastadas”.

Certo dia, ao voltar as costas aos painéis pintados da Pala Pinta, Paulo Lima olhou o horizonte que se vislumbra a partir do abrigo e ao voltar-se de novo para o painel observou que uma pequena mancha escura, que a geologia confirmaria natural, em conjunto com a rede de fissuras, assumia uma estrutura que parecia mimetizar caprichosamente o perfil montanhoso que se avista do abrigo. Constatou de seguida que “todo o dispositivo de figuras esteliformes se encontrava acima desta estrutura”. Teriam as características pré-existentes sido integradas na composição como linha do horizonte?, questionou. “A ser assim, a mancha arredondada que se prolonga pouco acima das fissuras corresponderia ao cume mais alto e que se destaca no horizonte de visibilidade do abrigo – o monte cónico da Senhora da Cunha.” Por outras palavras, a integração das características geológicas na composição teria correspondido a uma intenção dos autores em estabelecer uma correlação espacial entre as suas conjecturas astronómicas e o território das suas vivências.

“Poderá a sua peculiar configuração corresponder a uma intenção em representar um ‘sujeito’ em perspectiva, um observador colocado de forma a orientar o olhar de quem observa o painel?”

Aceitando a premissa de que acima da linha de fissura se encontram motivos associados ao céu, teremos então, abaixo dela, os motivos associados à superfície da Terra. Um motivo serpentiforme, detectado pela primeira vez neste abrigo em resultado da aplicação das metodologias espectrais, parece apoiar a hipótese. Assim como uma figura antropomórfica que se destaca no sector inferior direito do painel principal. “Poderá a sua peculiar configuração corresponder a uma intenção em representar um ‘sujeito’ em perspectiva, um observador colocado de forma a orientar o olhar de quem observa o painel?”

A conjectura é controversa. Os motivos da arte esquemática pré-histórica são passíveis de múltiplas interpretações. Porém, como resume Paulo Lima, “devido ao seu carácter esquemático nem sempre estamos atentos ao detalhe e à sofisticação técnica e estética desta arte. Em arqueologia, partimos do princípio de que se existe mais do que um motivo no mesmo painel é porque só um não foi suficiente para o desenvolvimento da narrativa. Ora, eu proponho que quem pintou aquelas imagens sabia o que fazia e elas devem ser vistas como a expressão gráfica de um conhecimento e de uma prática especializada”.

Aos poucos, à medida que formulava a proposta que o levou a defender com sucesso a dissertação de mestrado em Arqueologia na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Paulo Lima debatia-se com outra conjectura. “Se ali se encontrar uma invocação estruturalmente coerente com as fases desenvolvidas durante o evento de um cometa, será possível determinar, com base na eventual trajectória, a que astro em particular se poderiam estar a referir?”

Nasceu assim o ramo coimbrão do projecto, apadrinhado por João Fernandes e desenvolvido por Tiago Pessoa no seu mestrado em Astrofísica e Instrumentação para o Espaço da Universidade de Coimbra. “Despistámos vários corpos celestes, assumindo, como me parece natural, que eles representariam o extraordinário e não o que viam todas as noites”, diz João Fernandes. “Despistámos nebulosas, supernovas, planetas – não encaixavam.” Recuperou-se então a ideia original de Horácio de Mesquita. E se esta comunidade tivesse avistado um cometa, fenómeno regular na história humana, expresso na visibilidade de um corpo celeste brilhante, com uma ou duas caudas, e cuja configuração e posição no firmamento se vai alterando durante semanas ou meses?

Paulo Lima reconhece a ousadia da proposta, mas tem uma resposta na ponta da língua: “Durante quase um século, encaixaram-se todas as representações deste tipo na categoria dos soliformes. Eram sóis, mesmo que a sua configuração variasse, inclusivamente na mesma composição! Ora, um cometa, com a particularidade das alterações da sua aparência e o desenvolvimento das suas caudas, parece adequar-se tão bem, ou melhor, aos motivos da Pala Pinta.”

“O meu projecto propõe que pode ter sido um destes quatro cometas, mas também poderá ter sido outro que não conhecemos ou que até já se encontre extinto.”

A procura de um cometa suspeito constituiu o trabalho de mestrado de Tiago Pessoa. Aceitando como válidas as conjecturas de Paulo Lima e baseando-se nos parâmetros orbitais dos cometas conhecidos, reverteu matematicamente as suas órbitas, tendo em conta a janela do firmamento que se avista do abrigo, e identificou mais de mil cometas que por aí transitariam no intervalo cronológico definido: de 5500 a.C. ao ano 0 – um período alargado em virtude da inexistência de uma datação de referência para as pinturas. “Desses, excluindo aqueles onde não há informação sobre as suas magnitudes absolutas (brilho), cheguei a 680 cometas. Identifiquei, por fim, quatro suspeitos: o cometa Kowal-Vavrova, visível sob o céu do abrigo por 59 dias em 1421 a.C., o cometa Biela, visível por 63 dias em 2365 a.C., o cometa Väisälä 1 visível por 61 dias em 3784 a.C. e o cometa P/2004 VR8 que, entre todos, é aquele cuja trajectória mais se assemelha à inferida a partir das pinturas do abrigo que se terá mantido visível por 143 dias em 4626 a.C.”, refere Tiago Pessoa.

O exercício multidisciplinar foi acolhido com entusiasmo na Universidade de Coimbra, mas Tiago Pessoa é cauteloso. “O meu projecto propõe que pode ter sido um destes quatro cometas, mas também poderá ter sido outro que não conhecemos ou que até já se encontre extinto.”

Houve quem recusasse estas propostas de ruptura, mas “a tecnologia, as propostas de interpretação e o contraditório fazem parte do jogo científico”, diz Paulo Lima. “O estudo da arte pré-histórica não procura respostas definitivas”, acrescenta. “Todavia, se estivermos diante da invocação real do avistamento de um cometa, este recôndito abrigo de Alijó precederá em vários séculos os textos babilónicos até hoje reconhecidos como o mais antigo registo humano de um destes fascinantes eventos astronómicos.”

Leia mais e veja as imagens com máxima resolução no site do Projecto Pala Pinta. Leia a opinião do director da revista no seu blogue.

Ficha técnica das imagens

Fotografia de luz visível e imagem espectral: Luís Bravo Pereira (Escola Das Artes, Universidade Católica Portuguesa). Decalque digital e reconstrução virtual: Paulo Lima (Centro de Estudos de Arqueologia, Artes e Ciências do Património). Fotogrametria: Hugo Pires (Centro de Investigação em Ciências Geoespaciais, Universidade do Porto; e Superfície, Lda.). Tiago Pessoa (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra); João Fernandes (Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra).

Texto de Gonçalo Pereira

Coimbra, 1921. Numa aula do Curso de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade local, Vergílio Correia, reputado arqueólogo e historiador, fala de arte pré-histórica, mostrando aos alunos alguns dos poucos exemplos conhecidos à data de pinturas e gravuras rupestres pós-paleolíticas da Península Ibérica. Um dos alunos, Horácio de Mesquita, dirige-se ao professor, dando nota de que, na sua terra, Carlão, no concelho transmontano de Alijó, num abrigo granítico conhecido quase exclusivamente por caçadores ao qual davam o nome de Pala Pinta, se podiam observar desenhos pintados a vermelho semelhantes aos que lhe acabara de mostrar.

O docente desafia o aluno a reproduzi-los por decalque. Pouco depois, publicam na revista “Terra Portuguesa” um artigo conjunto noticiando o achado, o que tornou a Pala Pinta o segundo local conhecido com arte rupestre pré-histórica na região, que contava já com as famosas pinturas do Cachão da Rapa, publicadas por Jerónimo Contador de Argote em 1734.

Embora reconhecendo não ser um especialista, Horácio de Mesquita não deixou de sugerir algumas hipóteses de interpretação para os grafismos que viu pintados. “Será um acto de magia?”, perguntava. “Relacionar-se-á, como tantos outros, com alguma cerimónia fúnebre?” Ou seria “a documentação da passagem de algum cometa?” A curiosa referência de Horácio Mesquita a um cometa talvez não seja alheia à expectativa criada em 1910 em torno da passagem, nesse ano, do cometa Halley pela cercania da Terra.

“Não sabiam o que era. Mas era mau de certeza…”

Tal como José Leite de Vasconcelos testemunhou na sua recolha etnográfica, a passagem despertou receios latentes, recordando antigos dizeres das populações transmontanas. “Em Alvações do Corgo, o povo andava aterrado, porque dizia que o cometa era um homem muito alto e muito mau, com as barbas [ou seja, a cauda] muito grandes, que tinha devorado a mulher e os filhos e vinha agora devorar-nos todos”, notou. “Em Baião, explicavam que a cometa era uma mulher, que tinha comido os filhos e, como não tinha nem céu nem inferno, andava errante pelo ar e deixava cair objectos cortantes, como facas, machados, picaretas (…)” João Fernandes, astrónomo da Universidade de Coimbra, resume, com graça, o espírito da época: “Não sabiam o que era. Mas era mau de certeza…”

A uniformidade cromática, a ausência de sobreposições e a uniformidade estilística entre os signos são indícios que levaram os arqueólogos a admitir precocemente que o dispositivo figurativo da Pala Pinta teria resultado de uma só fase de execução. Também o carácter celeste dos motivos mais expressivos foi consensual, sendo mesmo referido pelo reputado Henri Breuil como um curioso precedente das personagens solares divinizadas que irá mais tarde emergir nas civilizações da Mesopotâmia. Com base no seu aspecto circular, muitas das vezes concêntrico ou raiado, a tradição da disciplina tem encarado estes motivos como associados de alguma forma a evocações da nossa estrela.

O assunto parecia não dar origem a grandes debates até que, em 2008, o arqueólogo Paulo Lima, então estudante da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, visitou o abrigo na companhia de colegas. A evocação celeste de alguns motivos pareceu-lhe evidente, mas a sua associação ao Sol, pelo contrário, afigurava-se ambígua. Tal como a Horácio de Mesquita, alguns motivos pareciam evocar mais a aparência que um cometa pode desenvolver durante um avistamento. Contudo, o estado delido de algumas figuras da Pala Pinta não permitiu uma leitura muito clara.

“Juntos, somos como o radiologista que faz o exame ao paciente para o médico poder depois traçar o diagnóstico”, brinca Luís Bravo Pereira.

Na impossibilidade de viajar ao passado, Luís Bravo Pereira e Hugo Pires trouxeram-no para o presente. O primeiro é responsável pela fotografia multiespectral, que resulta da conjugação numa única imagem, para além das bandas RGB que o olho humano naturalmente processa, de imagens captadas em diferentes comprimentos de onda do espectro electromagnético. O segundo lida com a fotogrametria e a digitalização tridimensional. “Juntos, somos como o radiologista que faz o exame ao paciente para o médico poder depois traçar o diagnóstico”, brinca Luís Bravo Pereira. “No fundo, prolongamos os sentidos humanos para que, com base numa acuidade visual melhorada, se possa chegar mais perto dos contornos iniciais dos motivos, mitigando o efeito de milénios de erosão natural. ”

As vantagens para o estudo da arte pré-histórica com a adopção deste tipo de tecnologias são substanciais, pois passa a ser possível dispor e manipular dados numa plataforma 3D interactiva, permitindo estabelecer a correcta articulação espacial entre os motivos. “Durante o século XX, o registo ficou muito ligado à capacidade de interpretação do investigador que a estudava, decalcando-a e retirando dela informação”, diz Hugo Pires. Ora, o decalque é subjectivo e depende do que o observador consegue ver. Num caso como o da Pala Pinta, o pigmento usado nas pinturas é muito semelhante a pigmentos naturais existentes na rocha e a erosão danificou algumas áreas. “A nossa parte do trabalho visa limpar ao máximo a sujidade dos ‘óculos’ do observador. Com radiação não visível (infravermelha e ultravioleta), detectamos e contrastamos pormenores não visíveis a olho nu”, diz.

A vantagem não é despicienda. Há uma década, o mesmo equipamento ocupava a área de uma sala e tinha reduzida aplicação numa encosta como a de Carlão. “Agora, levamos tudo o que precisamos numa mochila e demorámos apenas uma hora para recolher dados para a fotografia multiespectral e a modelação 3D”, diz Luís Bravo Pereira. Para a elaboração do modelo tridimensional, acrescenta Hugo Pires, “foram realizadas três dezenas de fotogramas que, após um processo de cálculo fotogramétrico para reconstituição da origem e direcção de cada raio de luz captado, originaram cerca de dez milhões de pontos medidos sobre a superfície do abrigo”.

“E, pela primeira vez na Pala Pinta, dispusemos de meios para integrar numa plataforma 3D todo o dispositivo figurativo que se distribui por locais e superfícies afastadas”.

Associando estes pontos através de uma malha de triângulos reconstruiu-se digitalmente a morfologia do abrigo com um elevado grau de detalhe e fiabilidade. “Temo que muitos investigadores não estejam preparados para tirarmos o véu do tempo aos objectos e já nos aconteceu especialistas considerarem que estas imagens pudessem ter sido manipuladas”, conta Hugo Pires.

Com imagens dos motivos inseridas numa plataforma 3D interactiva, Paulo Lima pôde fundamentar a sua proposta interpretativa para os painéis. A tradição da arqueologia em trabalhar estatisticamente conduziu à eleição do painel como unidade estatística, o que acabou por gerar uma fragmentação do registo, dificultando correlações entre motivos da mesma composição. “Ora, uma composição vive do conjunto, não é fragmentável”, diz. “E, pela primeira vez na Pala Pinta, dispusemos de meios para integrar numa plataforma 3D todo o dispositivo figurativo que se distribui por locais e superfícies afastadas”.

Certo dia, ao voltar as costas aos painéis pintados da Pala Pinta, Paulo Lima olhou o horizonte que se vislumbra a partir do abrigo e ao voltar-se de novo para o painel observou que uma pequena mancha escura, que a geologia confirmaria natural, em conjunto com a rede de fissuras, assumia uma estrutura que parecia mimetizar caprichosamente o perfil montanhoso que se avista do abrigo. Constatou de seguida que “todo o dispositivo de figuras esteliformes se encontrava acima desta estrutura”. Teriam as características pré-existentes sido integradas na composição como linha do horizonte?, questionou. “A ser assim, a mancha arredondada que se prolonga pouco acima das fissuras corresponderia ao cume mais alto e que se destaca no horizonte de visibilidade do abrigo – o monte cónico da Senhora da Cunha.” Por outras palavras, a integração das características geológicas na composição teria correspondido a uma intenção dos autores em estabelecer uma correlação espacial entre as suas conjecturas astronómicas e o território das suas vivências.

“Poderá a sua peculiar configuração corresponder a uma intenção em representar um ‘sujeito’ em perspectiva, um observador colocado de forma a orientar o olhar de quem observa o painel?”

Aceitando a premissa de que acima da linha de fissura se encontram motivos associados ao céu, teremos então, abaixo dela, os motivos associados à superfície da Terra. Um motivo serpentiforme, detectado pela primeira vez neste abrigo em resultado da aplicação das metodologias espectrais, parece apoiar a hipótese. Assim como uma figura antropomórfica que se destaca no sector inferior direito do painel principal. “Poderá a sua peculiar configuração corresponder a uma intenção em representar um ‘sujeito’ em perspectiva, um observador colocado de forma a orientar o olhar de quem observa o painel?”

A conjectura é controversa. Os motivos da arte esquemática pré-histórica são passíveis de múltiplas interpretações. Porém, como resume Paulo Lima, “devido ao seu carácter esquemático nem sempre estamos atentos ao detalhe e à sofisticação técnica e estética desta arte. Em arqueologia, partimos do princípio de que se existe mais do que um motivo no mesmo painel é porque só um não foi suficiente para o desenvolvimento da narrativa. Ora, eu proponho que quem pintou aquelas imagens sabia o que fazia e elas devem ser vistas como a expressão gráfica de um conhecimento e de uma prática especializada”.

Aos poucos, à medida que formulava a proposta que o levou a defender com sucesso a dissertação de mestrado em Arqueologia na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Paulo Lima debatia-se com outra conjectura. “Se ali se encontrar uma invocação estruturalmente coerente com as fases desenvolvidas durante o evento de um cometa, será possível determinar, com base na eventual trajectória, a que astro em particular se poderiam estar a referir?”

Nasceu assim o ramo coimbrão do projecto, apadrinhado por João Fernandes e desenvolvido por Tiago Pessoa no seu mestrado em Astrofísica e Instrumentação para o Espaço da Universidade de Coimbra. “Despistámos vários corpos celestes, assumindo, como me parece natural, que eles representariam o extraordinário e não o que viam todas as noites”, diz João Fernandes. “Despistámos nebulosas, supernovas, planetas – não encaixavam.” Recuperou-se então a ideia original de Horácio de Mesquita. E se esta comunidade tivesse avistado um cometa, fenómeno regular na história humana, expresso na visibilidade de um corpo celeste brilhante, com uma ou duas caudas, e cuja configuração e posição no firmamento se vai alterando durante semanas ou meses?

Paulo Lima reconhece a ousadia da proposta, mas tem uma resposta na ponta da língua: “Durante quase um século, encaixaram-se todas as representações deste tipo na categoria dos soliformes. Eram sóis, mesmo que a sua configuração variasse, inclusivamente na mesma composição! Ora, um cometa, com a particularidade das alterações da sua aparência e o desenvolvimento das suas caudas, parece adequar-se tão bem, ou melhor, aos motivos da Pala Pinta.”

“O meu projecto propõe que pode ter sido um destes quatro cometas, mas também poderá ter sido outro que não conhecemos ou que até já se encontre extinto.”

A procura de um cometa suspeito constituiu o trabalho de mestrado de Tiago Pessoa. Aceitando como válidas as conjecturas de Paulo Lima e baseando-se nos parâmetros orbitais dos cometas conhecidos, reverteu matematicamente as suas órbitas, tendo em conta a janela do firmamento que se avista do abrigo, e identificou mais de mil cometas que por aí transitariam no intervalo cronológico definido: de 5500 a.C. ao ano 0 – um período alargado em virtude da inexistência de uma datação de referência para as pinturas. “Desses, excluindo aqueles onde não há informação sobre as suas magnitudes absolutas (brilho), cheguei a 680 cometas. Identifiquei, por fim, quatro suspeitos: o cometa Kowal-Vavrova, visível sob o céu do abrigo por 59 dias em 1421 a.C., o cometa Biela, visível por 63 dias em 2365 a.C., o cometa Väisälä 1 visível por 61 dias em 3784 a.C. e o cometa P/2004 VR8 que, entre todos, é aquele cuja trajectória mais se assemelha à inferida a partir das pinturas do abrigo que se terá mantido visível por 143 dias em 4626 a.C.”, refere Tiago Pessoa.

O exercício multidisciplinar foi acolhido com entusiasmo na Universidade de Coimbra, mas Tiago Pessoa é cauteloso. “O meu projecto propõe que pode ter sido um destes quatro cometas, mas também poderá ter sido outro que não conhecemos ou que até já se encontre extinto.”

Houve quem recusasse estas propostas de ruptura, mas “a tecnologia, as propostas de interpretação e o contraditório fazem parte do jogo científico”, diz Paulo Lima. “O estudo da arte pré-histórica não procura respostas definitivas”, acrescenta. “Todavia, se estivermos diante da invocação real do avistamento de um cometa, este recôndito abrigo de Alijó precederá em vários séculos os textos babilónicos até hoje reconhecidos como o mais antigo registo humano de um destes fascinantes eventos astronómicos.”

Leia mais e veja as imagens com máxima resolução no site do Projecto Pala Pinta. Leia a opinião do director da revista no seu blogue.

Ficha técnica das imagens

Fotografia de luz visível e imagem espectral: Luís Bravo Pereira (Escola Das Artes, Universidade Católica Portuguesa). Decalque digital e reconstrução virtual: Paulo Lima (Centro de Estudos de Arqueologia, Artes e Ciências do Património). Fotogrametria: Hugo Pires (Centro de Investigação em Ciências Geoespaciais, Universidade do Porto; e Superfície, Lda.). Tiago Pessoa (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra); João Fernandes (Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra).

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