Há uma nova janela para a casa e o estúdio de Amália. Em "Ensaios", ouvimo-la como nunca a ouvíramos

01-01-2021
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Os fados ensaiados em casa e os fados testados e gravados em estúdio

O primeiro dos dois discos, referente às gravações em estúdio, desdobra-se em 20 temas e em ensaios no estúdio, sim, mas também àquilo que Frederico Santiago chamou “takes experimentais no estúdio”. O coordenador da edição explica o que significa isso: “No estúdio não se trata só de ensaios: temos também os takes experimentais, que é um produto acabado”. O que Frederico Santiago quer dizer com isto é que as gravações de ensaio coexistem com takes que poderiam ser definitivos, mas não foram — já não é o ensaio de determinado fado, é a gravação cuidada de determinado fado.

Sendo “mais ou menos da época do Com Que Voz“, o afamado disco que Amália editou em março de 1970, “o repertório [destes dois CDs] é bastante diferente — parte vem a ser editado mais tarde e já vem a encontrar a Amália com uma voz completamente diferente”, nota Frederico Santiago. Traduzindo: “Estamos perante coisas novas que o Alain [Oulman] fez para a Amália nesta altura, com fados inéditos”.

Nas gravações de estúdio, ouvimos ensaios e um take experimental de “Sete Estradas”, com palavras de Armindo Rodrigues (poeta opositor do Estado Novo, que foi por diversos preso) e que Amália acabaria por não editar; e quatro temas que incluiria vários anos mais tarde no disco Cantigas Numa Língua Antiga, de 1977, aqui em múltiplas versões. São eles “Meu Amor é Marinheiro”, “Rosa Vermelha”, “Alfama” e “Perdigão”.

Dos quatro fados do primeiro disco, aquele de que se ouvem mais versões é “Rosa Vermelha”, com Fontes Rocha na guitarra, Oulman no piano e Amália na voz à procura de reinvenções, de versões cada vez melhores, de diferentes ambientes sonoros. Mas “Alfama” é outra das grandes pérolas: revelado mais de uma mão cheia de anos depois em disco, é um dos grandes fados de Amália e tem uma história curiosa que o livro que acompanha a edição detalha.

À data, a ideia de Oulman era compor um disco inteiro para Amália em conjunto com Ary dos Santos, com fados todos eles relativos aos bairros lisboetas. Aparentemente, o único que “ficou em condições” foi “Alfama”, porque Ary dos Santos fez “alguns, mas muito à pressa”. E também houve mudanças de versos: se na versão final se ouve a expressão a silêncio magoado, esta fora colocada em substituição de a manjerico e a cravo. Porquê? Palavra a Alain Oulman: “Estávamos a voltar para a horta, uma tendência que ele [Ary dos Santos] tinha quando não encontrava mais ideias”.

Alguns destes fados estão também no segundo disco, com gravações de ensaios caseiros que decorreram na famosa sala da casa de Amália na Rua de São Bento, em Lisboa, algures entre o final de 1970 e início de 1971. “Sete Estradas”, o tal que Amália nunca editaria em disco de estúdio, é um dos que não ouvimos só gravado no estúdio mas também em ensaio caseiro; “Perdigão”, “Rosa Vermelha” e “Alfama” são outros.

Há porém fados cantados em casa, mas não em estúdio. Um deles é “Nunca Ninguém Viu Ninguém”, uma composição de Oulamn feita sobre um poema de Cecília Meireles, aqui cantado sobretudo pelo compositor (a fadista só o trauteia) e que a Amália gravaria mais tarde mas nunca editaria. Outro é “Gondarém”, que aqui surge numa versão totalmente diferente da que seria editada em Cantigas Numa Língua Antiga (ao contrário do que acontece com as gravações caseiras de “Abril” e “Perdigão”): se no disco de 1977 tem drama e peso trágico com fartura, neste ensaio é alegre, com acompanhamento quase folclórico e palmas batidas a marcar o ritmo.

Ouve-se também, nestas sessões em casa de Amália, um tema mais ligeiro e cómico, “Com a Vossa Licença”, uma espécie de tango cantado por Alain Oulman no arranque (e depois também pela fadista) que destoa bastante dos restantes. Acabaria por nunca ser editado e Frederico Santiago tem uma tese sobre o porquê: ao contrário do que às vezes se julga, Amália tinha um poder grande de decisão em relação ao rumo da sua obra. “É sempre o gosto dela que impera. Não é por acaso que este ‘Com Vossa Licença’ ficou pelo caminho, de certeza que achou que aquele não era um texto para ela”.

Somam-se a isso Amália a cantar “Abril” e as gravações de ensaio de Oulman a cantar para a fadista “As Facas” (também incluído em Cantigas Numa Língua Antiga), “Fui à Fonte Lavar os Cabelos”, “Alfama”, “Tirai os Olhos de Mim” e “Eu Não Tinha” e temos o segundo disco ‘caseiro’ completo.

O que os ensaios mostram: a “co-composição”, o virtuosismo, o trabalho

No texto que acompanha a edição (cuidada) destes ensaios de Amália Rodrigues, Frederico Santiago deixa várias notas. Vinca, por exemplo, a importância de notar o trabalho musical de procura aqui evidenciado, por oposição apenas às ideias de inspiração e talento natural (válidas mas insuficientes para pintar todo o retrato). Destaca também um “virtuosismo vocal e artístico” notório nas sessões e uma “procura de caminhos emocionais de Amália” — o que chama de “procura de um ambiente para cada obra”.

A influência de Amália neste repertório e no modo de interpretar é tão clara, aliás, que leva a que em “Rosa Vermelha”, do qual “sobreviveram mais provas gravadas”, possa-se até falar em “co-composição entre Amália e Alain Oulman”, refere Frederico Santiago — desconstruindo, assim, a ideia de que os fados chegariam na sua versão final à fadista que não faria grandes comentários sobre as melodias e acompanhamentos, limitando-se a cantar.

Os fados ensaiados em casa e os fados testados e gravados em estúdio

O primeiro dos dois discos, referente às gravações em estúdio, desdobra-se em 20 temas e em ensaios no estúdio, sim, mas também àquilo que Frederico Santiago chamou “takes experimentais no estúdio”. O coordenador da edição explica o que significa isso: “No estúdio não se trata só de ensaios: temos também os takes experimentais, que é um produto acabado”. O que Frederico Santiago quer dizer com isto é que as gravações de ensaio coexistem com takes que poderiam ser definitivos, mas não foram — já não é o ensaio de determinado fado, é a gravação cuidada de determinado fado.

Sendo “mais ou menos da época do Com Que Voz“, o afamado disco que Amália editou em março de 1970, “o repertório [destes dois CDs] é bastante diferente — parte vem a ser editado mais tarde e já vem a encontrar a Amália com uma voz completamente diferente”, nota Frederico Santiago. Traduzindo: “Estamos perante coisas novas que o Alain [Oulman] fez para a Amália nesta altura, com fados inéditos”.

Nas gravações de estúdio, ouvimos ensaios e um take experimental de “Sete Estradas”, com palavras de Armindo Rodrigues (poeta opositor do Estado Novo, que foi por diversos preso) e que Amália acabaria por não editar; e quatro temas que incluiria vários anos mais tarde no disco Cantigas Numa Língua Antiga, de 1977, aqui em múltiplas versões. São eles “Meu Amor é Marinheiro”, “Rosa Vermelha”, “Alfama” e “Perdigão”.

Dos quatro fados do primeiro disco, aquele de que se ouvem mais versões é “Rosa Vermelha”, com Fontes Rocha na guitarra, Oulman no piano e Amália na voz à procura de reinvenções, de versões cada vez melhores, de diferentes ambientes sonoros. Mas “Alfama” é outra das grandes pérolas: revelado mais de uma mão cheia de anos depois em disco, é um dos grandes fados de Amália e tem uma história curiosa que o livro que acompanha a edição detalha.

À data, a ideia de Oulman era compor um disco inteiro para Amália em conjunto com Ary dos Santos, com fados todos eles relativos aos bairros lisboetas. Aparentemente, o único que “ficou em condições” foi “Alfama”, porque Ary dos Santos fez “alguns, mas muito à pressa”. E também houve mudanças de versos: se na versão final se ouve a expressão a silêncio magoado, esta fora colocada em substituição de a manjerico e a cravo. Porquê? Palavra a Alain Oulman: “Estávamos a voltar para a horta, uma tendência que ele [Ary dos Santos] tinha quando não encontrava mais ideias”.

Alguns destes fados estão também no segundo disco, com gravações de ensaios caseiros que decorreram na famosa sala da casa de Amália na Rua de São Bento, em Lisboa, algures entre o final de 1970 e início de 1971. “Sete Estradas”, o tal que Amália nunca editaria em disco de estúdio, é um dos que não ouvimos só gravado no estúdio mas também em ensaio caseiro; “Perdigão”, “Rosa Vermelha” e “Alfama” são outros.

Há porém fados cantados em casa, mas não em estúdio. Um deles é “Nunca Ninguém Viu Ninguém”, uma composição de Oulamn feita sobre um poema de Cecília Meireles, aqui cantado sobretudo pelo compositor (a fadista só o trauteia) e que a Amália gravaria mais tarde mas nunca editaria. Outro é “Gondarém”, que aqui surge numa versão totalmente diferente da que seria editada em Cantigas Numa Língua Antiga (ao contrário do que acontece com as gravações caseiras de “Abril” e “Perdigão”): se no disco de 1977 tem drama e peso trágico com fartura, neste ensaio é alegre, com acompanhamento quase folclórico e palmas batidas a marcar o ritmo.

Ouve-se também, nestas sessões em casa de Amália, um tema mais ligeiro e cómico, “Com a Vossa Licença”, uma espécie de tango cantado por Alain Oulman no arranque (e depois também pela fadista) que destoa bastante dos restantes. Acabaria por nunca ser editado e Frederico Santiago tem uma tese sobre o porquê: ao contrário do que às vezes se julga, Amália tinha um poder grande de decisão em relação ao rumo da sua obra. “É sempre o gosto dela que impera. Não é por acaso que este ‘Com Vossa Licença’ ficou pelo caminho, de certeza que achou que aquele não era um texto para ela”.

Somam-se a isso Amália a cantar “Abril” e as gravações de ensaio de Oulman a cantar para a fadista “As Facas” (também incluído em Cantigas Numa Língua Antiga), “Fui à Fonte Lavar os Cabelos”, “Alfama”, “Tirai os Olhos de Mim” e “Eu Não Tinha” e temos o segundo disco ‘caseiro’ completo.

O que os ensaios mostram: a “co-composição”, o virtuosismo, o trabalho

No texto que acompanha a edição (cuidada) destes ensaios de Amália Rodrigues, Frederico Santiago deixa várias notas. Vinca, por exemplo, a importância de notar o trabalho musical de procura aqui evidenciado, por oposição apenas às ideias de inspiração e talento natural (válidas mas insuficientes para pintar todo o retrato). Destaca também um “virtuosismo vocal e artístico” notório nas sessões e uma “procura de caminhos emocionais de Amália” — o que chama de “procura de um ambiente para cada obra”.

A influência de Amália neste repertório e no modo de interpretar é tão clara, aliás, que leva a que em “Rosa Vermelha”, do qual “sobreviveram mais provas gravadas”, possa-se até falar em “co-composição entre Amália e Alain Oulman”, refere Frederico Santiago — desconstruindo, assim, a ideia de que os fados chegariam na sua versão final à fadista que não faria grandes comentários sobre as melodias e acompanhamentos, limitando-se a cantar.

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