Das palavras aos atos: o efeito Chega na expressão de ódio e violência racial

30-11-2020
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Um estudo publicado em 2019 na revista American Journal of Political Science refere o “efeito de legitimação” que implica a entrada de um partido radical no parlamento – as pessoas que com ele se identificam sentem-se mais à vontade para expressar perspetivas extremas, que antes evitariam, receando a crítica social.

A eleição de André Ventura nas Legislativas de 2019 – caraterizado por apoiantes e simpatizantes como o político que diz o que muitos pensam mas não têm coragem de dizer – abriu uma caixa de pandora sem precedentes em Portugal. A sua entrada na Assembleia da República foi o gatilho para a normalização do discurso de ódio racista que já há muito circulava nas conversas de café, nas redes sociais ou nos comentários online às notícias de órgãos de comunicação social.

No espaço de um ano, o país que era considerado exceção ao crescimento da extrema-direita na Europa confrontou-se com acontecimentos até então inéditos – desde a sugestão de um deputado eleito (André Ventura) de que uma deputada eleita (Joacine Katar Moreira) fosse “devolvida ao seu país de origem” até à escalada de ameaças a dirigentes anti-racistas, antifascistas e três deputadas, em agosto.

Contudo, não faltaram avisos por parte de vários documentos nacionais e internacionais. O Relatório Anual de Segurança Interna 2019, que analisa as estatísticas da criminalidade em Portugal nesse mesmo ano, dava conta da reorganização e reciclagem do discurso da extrema-direita, recrutando elementos junto de franjas sociais a que normalmente não acediam, mas também da tendência para a multiplicidade de atividades online e em ambiente offline, ainda que de forma ocasional neste último caso (p. 82).

Antes disso, em 2018, o relatório da Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI) sobre Portugal já alertava para a existência de “centenas de mensagens carregadas de ódio, particularmente nos fóruns dos grupos da extrema direita na Internet”, visando e representando de forma negativa “especialmente os ciganos, os negros, os muçulmanos e as pessoas LGBT” (p. 20). O mesmo relatório, apesar de reconhecer a presença de racismo e de discurso de ódio na esfera pública, notava, “com satisfação”, que em Portugal políticos e outras figuras públicas, de uma forma geral, não faziam comentários racistas, homofóbicos ou transfóbicos (p. 19). Mas já aqui o nome de André Ventura aparece no relatório como uma exceção a esta regra, quando, em 2017, na qualidade de candidato do PSD nas autárquicas de Loures, proferiu declarações racistas e xenófobas sobre a comunidade cigana, em entrevistas ao Notícias ao Minuto e ao jornal i.

No livro A Nova Direita Anti-Sistema. O Caso do Chega (2020), de Riccardo Marchi, João Gomes de Almeida, assessor de campanha de Ventura desde as autárquicas de Loures até às europeias de 2019, reconhece que a projeção mediática destas declarações foi um ganho evidente (p. 39). Também entrevistado pelo autor do livro, Ventura admite: “É aí que eu começo a trilhar o caminho que dá origem ao Chega” (p. 39).

André Ventura recusa continuamente o rótulo de racista e xenófobo, para si e para o seu partido, além de ser um negacionista enfático da existência de racismo em Portugal. A verdade é que tem sabido capitalizar o discurso de ódio em relação aos que estrategicamente elegeu como bodes expiatórios: as “minorias que só querem direitos e não querem deveres.” A sondagem da Aximage realizada para o Jornal Económico, em novembro de 2019, mostrava aliás que o Chega mais do que duplicou as intenções de voto, um mês depois das legislativas. A entrada de Ventura no parlamento e a institucionalização do Chega transformaram-no, pois, no político que diz o que muitos pensam e passaram a ter mais à vontade para expressar.

A eleição de Ventura também deu alento a grupos radicais de extrema-direita, que vão ganhando espaço de manobra no território aberto pelo Chega. Se especialistas como Marchi acreditam que o surgimento de um partido de direita radical seca as franjas mais violentas, por ser uma alternativa institucional, acontecimentos recentes fazem cair por terra a tese de que a ascensão do Chega não corresponde a um aumento de violência. Em entrevista ao jornal Público, Álvaro Vasconcelos, fundador do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais de Lisboa, sublinha que são partidos como o Chega que potenciam a emergência de grupos mais radicais, que “começam a achar que têm mais aceitação” e “encontram ânimo na banalização do discurso racista”, partindo para a ação.

A vandalização de edifícios como a sede da SOS Racismo ou as ameaças endereçadas a deputadas e dirigentes de associações antifascistas e antirracistas podem, por isso, ser vistos como o culminar de um contexto político favorecido pela visibilidade e normalização de um discurso assumido pelo Chega. Se as palavras não são só palavras (porque ferem, humilham, discriminam), podem também incitar a atos concretos, de violência e de intimidação.

Em Portugal, no espaço de um ano, o discurso de ódio ganhou uma visibilidade nunca dantes vista – e, das palavras, passou-se a atos intoleráveis em democracia.

Veja também:

Acompanhe o especial Extremos

É um projeto patrocinado pela Fundação Calouste Gulbenkian que terá uma expressão multimédia e que incluirá um conjunto de grandes reportagens que a SIC emitirá em fevereiro de 2021. O projeto resulta de uma parceria estabelecida entre a SIC e a NOVA FCSH e pretende mergulhar no difícil tópico do “populismo radical que alimenta a direita nacionalista e antissistema europeia” - título que esconderá derivas em direção aos extremos; em direção ao quadro que molda a extrema direita.

Um estudo publicado em 2019 na revista American Journal of Political Science refere o “efeito de legitimação” que implica a entrada de um partido radical no parlamento – as pessoas que com ele se identificam sentem-se mais à vontade para expressar perspetivas extremas, que antes evitariam, receando a crítica social.

A eleição de André Ventura nas Legislativas de 2019 – caraterizado por apoiantes e simpatizantes como o político que diz o que muitos pensam mas não têm coragem de dizer – abriu uma caixa de pandora sem precedentes em Portugal. A sua entrada na Assembleia da República foi o gatilho para a normalização do discurso de ódio racista que já há muito circulava nas conversas de café, nas redes sociais ou nos comentários online às notícias de órgãos de comunicação social.

No espaço de um ano, o país que era considerado exceção ao crescimento da extrema-direita na Europa confrontou-se com acontecimentos até então inéditos – desde a sugestão de um deputado eleito (André Ventura) de que uma deputada eleita (Joacine Katar Moreira) fosse “devolvida ao seu país de origem” até à escalada de ameaças a dirigentes anti-racistas, antifascistas e três deputadas, em agosto.

Contudo, não faltaram avisos por parte de vários documentos nacionais e internacionais. O Relatório Anual de Segurança Interna 2019, que analisa as estatísticas da criminalidade em Portugal nesse mesmo ano, dava conta da reorganização e reciclagem do discurso da extrema-direita, recrutando elementos junto de franjas sociais a que normalmente não acediam, mas também da tendência para a multiplicidade de atividades online e em ambiente offline, ainda que de forma ocasional neste último caso (p. 82).

Antes disso, em 2018, o relatório da Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI) sobre Portugal já alertava para a existência de “centenas de mensagens carregadas de ódio, particularmente nos fóruns dos grupos da extrema direita na Internet”, visando e representando de forma negativa “especialmente os ciganos, os negros, os muçulmanos e as pessoas LGBT” (p. 20). O mesmo relatório, apesar de reconhecer a presença de racismo e de discurso de ódio na esfera pública, notava, “com satisfação”, que em Portugal políticos e outras figuras públicas, de uma forma geral, não faziam comentários racistas, homofóbicos ou transfóbicos (p. 19). Mas já aqui o nome de André Ventura aparece no relatório como uma exceção a esta regra, quando, em 2017, na qualidade de candidato do PSD nas autárquicas de Loures, proferiu declarações racistas e xenófobas sobre a comunidade cigana, em entrevistas ao Notícias ao Minuto e ao jornal i.

No livro A Nova Direita Anti-Sistema. O Caso do Chega (2020), de Riccardo Marchi, João Gomes de Almeida, assessor de campanha de Ventura desde as autárquicas de Loures até às europeias de 2019, reconhece que a projeção mediática destas declarações foi um ganho evidente (p. 39). Também entrevistado pelo autor do livro, Ventura admite: “É aí que eu começo a trilhar o caminho que dá origem ao Chega” (p. 39).

André Ventura recusa continuamente o rótulo de racista e xenófobo, para si e para o seu partido, além de ser um negacionista enfático da existência de racismo em Portugal. A verdade é que tem sabido capitalizar o discurso de ódio em relação aos que estrategicamente elegeu como bodes expiatórios: as “minorias que só querem direitos e não querem deveres.” A sondagem da Aximage realizada para o Jornal Económico, em novembro de 2019, mostrava aliás que o Chega mais do que duplicou as intenções de voto, um mês depois das legislativas. A entrada de Ventura no parlamento e a institucionalização do Chega transformaram-no, pois, no político que diz o que muitos pensam e passaram a ter mais à vontade para expressar.

A eleição de Ventura também deu alento a grupos radicais de extrema-direita, que vão ganhando espaço de manobra no território aberto pelo Chega. Se especialistas como Marchi acreditam que o surgimento de um partido de direita radical seca as franjas mais violentas, por ser uma alternativa institucional, acontecimentos recentes fazem cair por terra a tese de que a ascensão do Chega não corresponde a um aumento de violência. Em entrevista ao jornal Público, Álvaro Vasconcelos, fundador do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais de Lisboa, sublinha que são partidos como o Chega que potenciam a emergência de grupos mais radicais, que “começam a achar que têm mais aceitação” e “encontram ânimo na banalização do discurso racista”, partindo para a ação.

A vandalização de edifícios como a sede da SOS Racismo ou as ameaças endereçadas a deputadas e dirigentes de associações antifascistas e antirracistas podem, por isso, ser vistos como o culminar de um contexto político favorecido pela visibilidade e normalização de um discurso assumido pelo Chega. Se as palavras não são só palavras (porque ferem, humilham, discriminam), podem também incitar a atos concretos, de violência e de intimidação.

Em Portugal, no espaço de um ano, o discurso de ódio ganhou uma visibilidade nunca dantes vista – e, das palavras, passou-se a atos intoleráveis em democracia.

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É um projeto patrocinado pela Fundação Calouste Gulbenkian que terá uma expressão multimédia e que incluirá um conjunto de grandes reportagens que a SIC emitirá em fevereiro de 2021. O projeto resulta de uma parceria estabelecida entre a SIC e a NOVA FCSH e pretende mergulhar no difícil tópico do “populismo radical que alimenta a direita nacionalista e antissistema europeia” - título que esconderá derivas em direção aos extremos; em direção ao quadro que molda a extrema direita.

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