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13-10-2020
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Aconteceu no dia 15 de outubro de 2017, e entrou pela noite fora, o incêndio na freguesia de Santo Isidoro, concelho de Mafra. A frente de incêndio fez aquilo que tinha a fazer sem conhecer obstáculos: avançou, recuou, virou, sempre conforme o vento impunha. Esta volatilidade causou pânico e alívio às pessoas que assistiam e que tinham ali as suas casas mas o alívio foi sempre relativo. É certo que cada mudança de direcção iria pôr em perigo outras pessoas, outras casas, outros animais e estes chegaram a arder. Foram muitas horas a olhar para as chamas e a pouco fazer. Tentava-se simplesmente apagar as fagulhas que eram projectadas a alta velocidade para perto. A escassez de bombeiros e de meios era evidente, a sensação de impotência era total.

Se se falou sempre sobre o incêndio ao longo dessas horas?

Não. Os vizinhos, alguns não se conheciam, ficaram a saber mais uns sobre os outros e contaram-se histórias.

É sempre assim; até na iminência de uma tragédia há espaço para pensar na vida e até espaço para dizer uma piada.

Assim seja. A extrema-direita quer chamar mato aos portugueses e quer fazer arder? Sim mas deve-se continuar a viver e, se possível, a aprofundar as reflexões que precisam de ser feitas.

Vamos dar passos em volta como escreveu o Herberto Helder.

Há muitos mundos mesmo num país tão pequeno como Portugal. Há o do que parece ser o pelotão vanguardista, o que acompanha todas as mudanças sociais e que defende e assegura conquistas fundamentais para as minorias. É graças a esse pelotão, e ao total apoio que tem tido de alguma esquerda, que pessoas do mesmo sexo podem hoje, por exemplo, casar e adoptar crianças.

Há outro pelotão que aceita as mudanças mas que não mexeu uma palha para elas acontecerem. Este pelotão importa-se mais com impostos e com o que possa afectar a acumulação de riqueza. Não faz grande distinção entre negros e brancos, homossexuais e heterossexuais. É mais entre ricos e pobres e preferindo os primeiros. Chamemos-lhe aliás o que é: um pelotão de liberais. É um grupo de direita mesmo que nele se consigam encontrar alguns indivíduos que se considerem socialistas. Seria outra conversa. Esta não é sobre partidos.

Outro é contra porque preza os valores tradicionais e pressente em cada uma destas mudanças o descalabro da família no sentido em que considera poder falar-se de uma. São os grandes guardiões desses valores e, na mesma gaveta daquilo a que chamam valores, guardam preconceitos. É um grupo de direita e opõem-se visceralmente a todas as conquistas similares às acima referidas.

Há ainda o dos que são de esquerda mas que embirram com as lutas e com os protagonistas das lutas. E ainda com o politicamente correcto. Também há uns assim de direita.

Na verdade esta descrição deveria ser muito mais exaustiva e seria obrigatório tratar de forma autónoma as minorias e, já agora, os da original social democracia, os da direita que se preocupa com o colectivo. Não neste exercício que segue um propósito.

Há sempre um outro pelotão, um maior, dos que estão na grande guerra pela sobrevivência, os que se deparam com dificuldades sérias para pagar a renda de casa, os livros escolares para os filhos e que não têm tempo nem disponibilidade para muito mais.

Este grupo não é homogéneo, e não é intenção caracterizá-lo assim, mas tem algumas características comuns: poucas habilitações académicas, inclui grande parte das minorias, aufere baixos rendimentos e sim tem muitas dificuldades (até falta de interesse) em acompanhar todas estas mudanças,

Este grupo pode ser de esquerda e pode ser de direita.

Este grupo representa uma grande parte dos portugueses e vive mal.

Quantos portugueses conhecem o significado de “LGBTQI+”?

Tenho dúvidas. Acredito que a maioria dos portugueses não está a par daquilo que é o resultado das justas reivindicações de quem luta por direitos iguais, sendo diferente.

As questões de género são um bom exemplo pela complexidade de que se revestem actualmente e pela importância do que está em causa mas não passam de um exemplo, há muitas mais.

Continuemos na missão dos pelotões. Será que a missão do primeiro pelotão cessa quando consegue o reconhecimento dos direitos pelos quais luta? Será que o pelotão dos que lutam pela sobrevivência, o pelotão dos pobres, tem vocação natural para acompanhar e aceitar tais conquistas?

Lembrar aqui o infernal autocarro guiado pela Sandra Bullock no “Speed”, o autocarro que nunca poderia ser desacelerado independentemente dos obstáculos que encontrasse e que assim atravessou as ruas de Los Angeles. Infernal e concentrado de adrenalina, tinha um pouco de ambos e há quem muito aprecie o segundo.

Não sei da importância da resposta àquela perguntas porque existem coisas que se sobrepõem: a certeza de que devemos encontrar formas de viver pacificamente uns com os outros e ainda mais a certeza de que a luta de classes não pode ser substituída por uma luta entre quem acompanha o speeding do autocarro e os restantes que não conseguem.

É que se assim for, o pelotão vanguardista deve reconsiderar. As lutas da esquerda não podem implicar a exclusão, seja de que forma for, dos mais desprotegidos e que não estão a conseguir acompanhar coisa nenhuma.

Se a esquerda falhar nisto, haverá quem apareça montado num autocarro vassoura disposto a simular abrigo para quem se sente excluído.

(Este abrigo é mesmo simulação; não é deste autocarro que virá o reforço do serviço nacional de saúde ou o do ensino público ou a luta pelos direitos laborais).

A esquerda tem que garantir que ninguém fica para trás. Todos fazem parte do colectivo mas o grande foco de atenção tem que ser para quem mais precisa dela.

A esquerda não pode fazer como fez o PAN que lutou, e bem, para que não houvesse animais no circo mas que depois se esqueceu de lutar por um apoio específico para todas aquelas famílias que já eram pobres e que, desde há várias gerações, não sabiam fazer mais nada que trabalhar num circo em números que envolviam animais.

Qualquer luta, seja a antirracista, seja a feminista ou outra que tenha a ver com igualdade ou reconhecimento de direitos cabe na grande luta de classes e nela deve ser acolhida. Isto é a esquerda. Uma ideologia que não separa causas como se de festas temáticas se tratassem: uma para cada freguês ou grupo de fregueses, um capitalismo de esquerda. Dar satisfação individualizada. Para isso já temos alguns clubes nocturnos. Peço desculpa, tínhamos.

Deixando os passos em volta e de regresso aos fogos:

Houve outro incêndio importante. Foi no verão de 2004 e nele ardeu a maior parte da serra do Caldeirão. Foi pior que assistir. Estava nos Estados Unidos. Mais tarde vi na televisão a minha mãe a tirar baldes de água de um tanque e a gritar.

Não consegui pensar em mais nada durante uns dias. Não estar é mais difícil.

Foi uma viagem da qual guardo duas coisas surreais: este incêndio, em que ardeu tudo o que rodeou a minha infância, vivido de longe e o preenchimento de um formulário quando chegámos a um aeroporto americano. Era perguntado a cada adulto se já tinha participado num atentado terrorista e ainda se planeava fazer um atentado terrorista nos Estados Unidos. Rimo-nos. “Estes americanos são tão ingénuos”.

Qual seria a utilidade de um formulário em que nunca ninguém responderia afirmativamente a questões que eram para os americanos as mais importantes e que tinham a ver com a segurança nacional?

São ingénuos e nós afinal também somos.

Olhemos então para a feroz frente de incêndio.

Será que para um partido político ser considerado racista ou fascista deve ser usado um formulário no qual se perguntará aos dirigentes: defende a ideologia fascista? pretende organizar manifestações antirracismo ou racistas?

E depois é fácil; se eles responderem “não” deixam de o ser, podem candidatar-se a eleições e vai ficar tudo bem.

E por fim:

O incêndio de Santo Isidoro apagou-se sozinho quando o vento mandou a frente para área já ardida. Qual a importância que teve terem-se apagado aquelas fagulhas, as bolas de fogo que voavam e que aterravam perto? Nunca se saberá mas ainda bem que foi feito. Fazer pouco é diferente de não fazer nada, fazer pouco pode mudar tudo.

Aconteceu no dia 15 de outubro de 2017, e entrou pela noite fora, o incêndio na freguesia de Santo Isidoro, concelho de Mafra. A frente de incêndio fez aquilo que tinha a fazer sem conhecer obstáculos: avançou, recuou, virou, sempre conforme o vento impunha. Esta volatilidade causou pânico e alívio às pessoas que assistiam e que tinham ali as suas casas mas o alívio foi sempre relativo. É certo que cada mudança de direcção iria pôr em perigo outras pessoas, outras casas, outros animais e estes chegaram a arder. Foram muitas horas a olhar para as chamas e a pouco fazer. Tentava-se simplesmente apagar as fagulhas que eram projectadas a alta velocidade para perto. A escassez de bombeiros e de meios era evidente, a sensação de impotência era total.

Se se falou sempre sobre o incêndio ao longo dessas horas?

Não. Os vizinhos, alguns não se conheciam, ficaram a saber mais uns sobre os outros e contaram-se histórias.

É sempre assim; até na iminência de uma tragédia há espaço para pensar na vida e até espaço para dizer uma piada.

Assim seja. A extrema-direita quer chamar mato aos portugueses e quer fazer arder? Sim mas deve-se continuar a viver e, se possível, a aprofundar as reflexões que precisam de ser feitas.

Vamos dar passos em volta como escreveu o Herberto Helder.

Há muitos mundos mesmo num país tão pequeno como Portugal. Há o do que parece ser o pelotão vanguardista, o que acompanha todas as mudanças sociais e que defende e assegura conquistas fundamentais para as minorias. É graças a esse pelotão, e ao total apoio que tem tido de alguma esquerda, que pessoas do mesmo sexo podem hoje, por exemplo, casar e adoptar crianças.

Há outro pelotão que aceita as mudanças mas que não mexeu uma palha para elas acontecerem. Este pelotão importa-se mais com impostos e com o que possa afectar a acumulação de riqueza. Não faz grande distinção entre negros e brancos, homossexuais e heterossexuais. É mais entre ricos e pobres e preferindo os primeiros. Chamemos-lhe aliás o que é: um pelotão de liberais. É um grupo de direita mesmo que nele se consigam encontrar alguns indivíduos que se considerem socialistas. Seria outra conversa. Esta não é sobre partidos.

Outro é contra porque preza os valores tradicionais e pressente em cada uma destas mudanças o descalabro da família no sentido em que considera poder falar-se de uma. São os grandes guardiões desses valores e, na mesma gaveta daquilo a que chamam valores, guardam preconceitos. É um grupo de direita e opõem-se visceralmente a todas as conquistas similares às acima referidas.

Há ainda o dos que são de esquerda mas que embirram com as lutas e com os protagonistas das lutas. E ainda com o politicamente correcto. Também há uns assim de direita.

Na verdade esta descrição deveria ser muito mais exaustiva e seria obrigatório tratar de forma autónoma as minorias e, já agora, os da original social democracia, os da direita que se preocupa com o colectivo. Não neste exercício que segue um propósito.

Há sempre um outro pelotão, um maior, dos que estão na grande guerra pela sobrevivência, os que se deparam com dificuldades sérias para pagar a renda de casa, os livros escolares para os filhos e que não têm tempo nem disponibilidade para muito mais.

Este grupo não é homogéneo, e não é intenção caracterizá-lo assim, mas tem algumas características comuns: poucas habilitações académicas, inclui grande parte das minorias, aufere baixos rendimentos e sim tem muitas dificuldades (até falta de interesse) em acompanhar todas estas mudanças,

Este grupo pode ser de esquerda e pode ser de direita.

Este grupo representa uma grande parte dos portugueses e vive mal.

Quantos portugueses conhecem o significado de “LGBTQI+”?

Tenho dúvidas. Acredito que a maioria dos portugueses não está a par daquilo que é o resultado das justas reivindicações de quem luta por direitos iguais, sendo diferente.

As questões de género são um bom exemplo pela complexidade de que se revestem actualmente e pela importância do que está em causa mas não passam de um exemplo, há muitas mais.

Continuemos na missão dos pelotões. Será que a missão do primeiro pelotão cessa quando consegue o reconhecimento dos direitos pelos quais luta? Será que o pelotão dos que lutam pela sobrevivência, o pelotão dos pobres, tem vocação natural para acompanhar e aceitar tais conquistas?

Lembrar aqui o infernal autocarro guiado pela Sandra Bullock no “Speed”, o autocarro que nunca poderia ser desacelerado independentemente dos obstáculos que encontrasse e que assim atravessou as ruas de Los Angeles. Infernal e concentrado de adrenalina, tinha um pouco de ambos e há quem muito aprecie o segundo.

Não sei da importância da resposta àquela perguntas porque existem coisas que se sobrepõem: a certeza de que devemos encontrar formas de viver pacificamente uns com os outros e ainda mais a certeza de que a luta de classes não pode ser substituída por uma luta entre quem acompanha o speeding do autocarro e os restantes que não conseguem.

É que se assim for, o pelotão vanguardista deve reconsiderar. As lutas da esquerda não podem implicar a exclusão, seja de que forma for, dos mais desprotegidos e que não estão a conseguir acompanhar coisa nenhuma.

Se a esquerda falhar nisto, haverá quem apareça montado num autocarro vassoura disposto a simular abrigo para quem se sente excluído.

(Este abrigo é mesmo simulação; não é deste autocarro que virá o reforço do serviço nacional de saúde ou o do ensino público ou a luta pelos direitos laborais).

A esquerda tem que garantir que ninguém fica para trás. Todos fazem parte do colectivo mas o grande foco de atenção tem que ser para quem mais precisa dela.

A esquerda não pode fazer como fez o PAN que lutou, e bem, para que não houvesse animais no circo mas que depois se esqueceu de lutar por um apoio específico para todas aquelas famílias que já eram pobres e que, desde há várias gerações, não sabiam fazer mais nada que trabalhar num circo em números que envolviam animais.

Qualquer luta, seja a antirracista, seja a feminista ou outra que tenha a ver com igualdade ou reconhecimento de direitos cabe na grande luta de classes e nela deve ser acolhida. Isto é a esquerda. Uma ideologia que não separa causas como se de festas temáticas se tratassem: uma para cada freguês ou grupo de fregueses, um capitalismo de esquerda. Dar satisfação individualizada. Para isso já temos alguns clubes nocturnos. Peço desculpa, tínhamos.

Deixando os passos em volta e de regresso aos fogos:

Houve outro incêndio importante. Foi no verão de 2004 e nele ardeu a maior parte da serra do Caldeirão. Foi pior que assistir. Estava nos Estados Unidos. Mais tarde vi na televisão a minha mãe a tirar baldes de água de um tanque e a gritar.

Não consegui pensar em mais nada durante uns dias. Não estar é mais difícil.

Foi uma viagem da qual guardo duas coisas surreais: este incêndio, em que ardeu tudo o que rodeou a minha infância, vivido de longe e o preenchimento de um formulário quando chegámos a um aeroporto americano. Era perguntado a cada adulto se já tinha participado num atentado terrorista e ainda se planeava fazer um atentado terrorista nos Estados Unidos. Rimo-nos. “Estes americanos são tão ingénuos”.

Qual seria a utilidade de um formulário em que nunca ninguém responderia afirmativamente a questões que eram para os americanos as mais importantes e que tinham a ver com a segurança nacional?

São ingénuos e nós afinal também somos.

Olhemos então para a feroz frente de incêndio.

Será que para um partido político ser considerado racista ou fascista deve ser usado um formulário no qual se perguntará aos dirigentes: defende a ideologia fascista? pretende organizar manifestações antirracismo ou racistas?

E depois é fácil; se eles responderem “não” deixam de o ser, podem candidatar-se a eleições e vai ficar tudo bem.

E por fim:

O incêndio de Santo Isidoro apagou-se sozinho quando o vento mandou a frente para área já ardida. Qual a importância que teve terem-se apagado aquelas fagulhas, as bolas de fogo que voavam e que aterravam perto? Nunca se saberá mas ainda bem que foi feito. Fazer pouco é diferente de não fazer nada, fazer pouco pode mudar tudo.

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