Empresas tentam agarrar o lado bom da pandemia

27-11-2020
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O impacto da covid-19 foi duro para as empresas exportadoras. Em apenas dois meses (abril e maio), o valor das vendas de bens caiu quase 80% e o dos serviços recuou quase 120%, com especial impacto no sector das viagens e turismo. Entretanto, houve uma recuperação, apenas nos bens, mas que pode agora ser minada pela segunda vaga. Ou seja, o futuro é tão incerto que não há bola de cristal nem mapa astral ou alinhamento de estrelas que possa prever o que vai acontecer nos últimos meses de 2020 e em 2021. Mas, curiosamente, o sector está bastante positivo em relação ao futuro e já começou a adaptar-se ao lado bom da pandemia. Porque, diz ao Expresso o economista-chefe do Novo Banco, Carlos Andrade, a covid-19 trouxe uma série de mudanças positivas à economia — como uma maior eficiência dos serviços públicos e outros organismos e uma consequente redução de custos para as empresas — e ainda aos padrões de consumo. Além de que também acelerou tendências que já se estavam a desenhar mas que não tinham ainda dado o salto definitivo.

A digitalização foi uma delas. De facto, desde março que há mais empresas a usar essas soluções e a recorrer mais ao comércio online. E as produtoras de calçado são um bom exemplo.“Elas já tinham recursos digitais, mas estavam subaproveitados, era só para o caso de o cliente pedir. E agora houve um esforço maior para estar no online”, diz ao Expresso o diretor-geral da Associação Portuguesa dos Industriais de Calçado, Componentes, Artigos de Pele e Seus Sucedâneos (APICCAPS), João Maia. Neste momento, estima-se que 30% dos sapatos portugueses já sejam vendidos online, um número que vai aumentar. “Por exemplo, no Reino Unido, que é um dos nossos principais mercados, o comércio online de calçado e vestuário representava 18% até fevereiro de 2020. Em abril e maio cresceu para os 50% e depois reduziu-se, estabilizando nos 28% ou 29%, ou seja, deu um salto de 50% face a fevereiro. Por isso, não me parece que vá demorar muito até ter 50% da nossa exportação de sapatos a ser vendida online”, conta João Maia. “As pessoas experimentaram e ganharam confiança no comércio online”, repara Luís Olazabal de Almada, administrador da Casa Santos Lima (produtor de vinhos).

Há uma clara evolução para o digital, mas segundo dados apresentados pela Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP) durante o Portugal Exportador (ver caixa), 77% das empresas exportadoras ainda não estão preparadas para estar neste tipo de plataformas. Foi por isso que, há dois anos, lançou o site Portugal Exporta e começou a dar formação às empresas, um processo que já estava a correr bem antes da pandemia mas que depois passou a correr ainda melhor. “As nossas iniciativas de formação estavam muitas vezes esgotadas, mas, de repente, apareceu março de 2020, o que fez aumentar ainda mais o interesse. Tivemos de adiantar algumas atividades e no início de julho lançámos o acelerador das exportações online, que estava previsto para o último trimestre do ano”, afirma o presidente da AICEP, Luís Castro Henriques.

Produtos ajustados ao novo consumo

Outra das tendências que a pandemia acelerou foi a atenção à sustentabilidade, diz Carlos Andrade. Por exemplo, “as bicicletas estão com exportações muito fortes, enquanto as de moldes para automóveis sofreram bastante”, repara. E haverá muitas viagens de trabalho que vão deixar de se fazer e que serão substituídas por encontros digitais, mesmo que não seja de forma generalizada. No calçado ou no vestuário, por exemplo, “o toque é muito importante, e assim que a covid passar voltará a haver reuniões presenciais”, acrescenta ainda o economista. A atenção à sustentabilidade não se esgota na mobilidade. Ela é também evidente nos produtos. “Vamos ter um crescimento muito maior daquilo que é sustentável e durável, porque um produto que dura mais é mais sustentável, e isso aplica-se bem ao calçado”, explica João Maia.

Nos produtos é também evidente a alteração que a pandemia trouxe aos padrões de consumo. “Há uma maior seletividade nas despesas, por exemplo, de janeiro a setembro, os bens alimentares foram os que mais cresceram”, repara Carlos Andrade. E o contributo dos bens de alta tecnologia quase duplicou entre 2010 e 2020, passando de 3% para 6%, adianta o administrador da AICEP, João Dias. E também no sector do calçado há agora uma maior procura por sapatos de conforto, de caminhada e profissionais, em vez da habitual procura por sapatos clássicos. Uma consequência do aumento do trabalho remoto e do facto de as fábricas, indústrias ou construção não terem parado durante a quarentena.

Tudo isto mostra que as empresas exportadoras de bens estão a adaptar-se melhor à pandemia do que as de serviços, mas ambas têm noção de que as exportações no geral só deverão voltar os níveis pré-covid lá para finais de 2021 ou início de 2022. Isto porque as viagens e turismo, o sector mais afetado pela pandemia, representam 19% dos 44% que as exportações pesam no PIB nacional. E, para estes dois sectores, o que é mesmo preciso é que haja um regresso ao normal.

“Distinguir o circunstancial do estrutural”

O Portugal Exportador, que decorreu na quarta-feira 18 de novembro, é considerado um dos eventos mais relevantes do sector, e este ano, por força da pandemia, foi totalmente em formato digital, através do YouTube. A ideia até era ser num formato misto, mas o novo estado de emergência alterou isso. Uma decisão que foi tomada no sábado e “que mostra bem a nossa capacidade de adaptação”, diz o CEO do Novo Banco, António Ramalho, fazendo um paralelismo com a capacidade de adaptação das empresas portuguesas à pandemia. Também ele está otimista em relação à recuperação do sector, porque, “em 15 anos, o peso das exportações cresceu de 27,5% em 2005 para quase 44% em 2019”, e isso foi possível porque “houve uma mudança substancial nas PME portuguesas”. É por isso que o ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, realçou por várias vezes na sessão de abertura que é “preciso distinguir o que é estrutural do que é circunstancial”, e os impactos da covid, ainda que alguns abalem a estrutura da economia, são mais circunstanciais. E dá como exemplo o turismo, que acredita que, apesar de “ser uma vítima do momento”, vai “continuar a ser um dos sectores mais internacionalizados”.

Bens recuperam, mas turismo não

Estatísticas

Depois de quebras de 41% em abril e 39% em maio, as exportações de bens recuperaram bem em setembro, para valores próximos dos de janeiro. Já nas exportações de serviços, cuja maior fatia é o turismo, as quebras continuaram. Só no número de dormidas de não residentes a quebra foi de 72%.

24%

foi a percentagem de estabelecimentos de alojamento turístico em Portugal que estiveram encerrados ou não registaram qualquer movimento de hóspedes durante todo o mês de setembro, segundo dados do INE; em agosto foram 22,8%

Os produtos alimentares e bebidas foram os únicos bens cujas exportações cresceram em 2020 face a 2019 e foi Espanha que mais os comprou

88,1%

foi quanto desceu o valor das exportações de combustíveis em maio face ao mesmo mês de 2019. De €407 milhões caiu €49 milhões. Foi um dos produtos mais afetados pela pandemia, a par dos materiais e acessórios para transportes

Textos originalmente publicados no Expresso de 20 de novembro de 2020

O impacto da covid-19 foi duro para as empresas exportadoras. Em apenas dois meses (abril e maio), o valor das vendas de bens caiu quase 80% e o dos serviços recuou quase 120%, com especial impacto no sector das viagens e turismo. Entretanto, houve uma recuperação, apenas nos bens, mas que pode agora ser minada pela segunda vaga. Ou seja, o futuro é tão incerto que não há bola de cristal nem mapa astral ou alinhamento de estrelas que possa prever o que vai acontecer nos últimos meses de 2020 e em 2021. Mas, curiosamente, o sector está bastante positivo em relação ao futuro e já começou a adaptar-se ao lado bom da pandemia. Porque, diz ao Expresso o economista-chefe do Novo Banco, Carlos Andrade, a covid-19 trouxe uma série de mudanças positivas à economia — como uma maior eficiência dos serviços públicos e outros organismos e uma consequente redução de custos para as empresas — e ainda aos padrões de consumo. Além de que também acelerou tendências que já se estavam a desenhar mas que não tinham ainda dado o salto definitivo.

A digitalização foi uma delas. De facto, desde março que há mais empresas a usar essas soluções e a recorrer mais ao comércio online. E as produtoras de calçado são um bom exemplo.“Elas já tinham recursos digitais, mas estavam subaproveitados, era só para o caso de o cliente pedir. E agora houve um esforço maior para estar no online”, diz ao Expresso o diretor-geral da Associação Portuguesa dos Industriais de Calçado, Componentes, Artigos de Pele e Seus Sucedâneos (APICCAPS), João Maia. Neste momento, estima-se que 30% dos sapatos portugueses já sejam vendidos online, um número que vai aumentar. “Por exemplo, no Reino Unido, que é um dos nossos principais mercados, o comércio online de calçado e vestuário representava 18% até fevereiro de 2020. Em abril e maio cresceu para os 50% e depois reduziu-se, estabilizando nos 28% ou 29%, ou seja, deu um salto de 50% face a fevereiro. Por isso, não me parece que vá demorar muito até ter 50% da nossa exportação de sapatos a ser vendida online”, conta João Maia. “As pessoas experimentaram e ganharam confiança no comércio online”, repara Luís Olazabal de Almada, administrador da Casa Santos Lima (produtor de vinhos).

Há uma clara evolução para o digital, mas segundo dados apresentados pela Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP) durante o Portugal Exportador (ver caixa), 77% das empresas exportadoras ainda não estão preparadas para estar neste tipo de plataformas. Foi por isso que, há dois anos, lançou o site Portugal Exporta e começou a dar formação às empresas, um processo que já estava a correr bem antes da pandemia mas que depois passou a correr ainda melhor. “As nossas iniciativas de formação estavam muitas vezes esgotadas, mas, de repente, apareceu março de 2020, o que fez aumentar ainda mais o interesse. Tivemos de adiantar algumas atividades e no início de julho lançámos o acelerador das exportações online, que estava previsto para o último trimestre do ano”, afirma o presidente da AICEP, Luís Castro Henriques.

Produtos ajustados ao novo consumo

Outra das tendências que a pandemia acelerou foi a atenção à sustentabilidade, diz Carlos Andrade. Por exemplo, “as bicicletas estão com exportações muito fortes, enquanto as de moldes para automóveis sofreram bastante”, repara. E haverá muitas viagens de trabalho que vão deixar de se fazer e que serão substituídas por encontros digitais, mesmo que não seja de forma generalizada. No calçado ou no vestuário, por exemplo, “o toque é muito importante, e assim que a covid passar voltará a haver reuniões presenciais”, acrescenta ainda o economista. A atenção à sustentabilidade não se esgota na mobilidade. Ela é também evidente nos produtos. “Vamos ter um crescimento muito maior daquilo que é sustentável e durável, porque um produto que dura mais é mais sustentável, e isso aplica-se bem ao calçado”, explica João Maia.

Nos produtos é também evidente a alteração que a pandemia trouxe aos padrões de consumo. “Há uma maior seletividade nas despesas, por exemplo, de janeiro a setembro, os bens alimentares foram os que mais cresceram”, repara Carlos Andrade. E o contributo dos bens de alta tecnologia quase duplicou entre 2010 e 2020, passando de 3% para 6%, adianta o administrador da AICEP, João Dias. E também no sector do calçado há agora uma maior procura por sapatos de conforto, de caminhada e profissionais, em vez da habitual procura por sapatos clássicos. Uma consequência do aumento do trabalho remoto e do facto de as fábricas, indústrias ou construção não terem parado durante a quarentena.

Tudo isto mostra que as empresas exportadoras de bens estão a adaptar-se melhor à pandemia do que as de serviços, mas ambas têm noção de que as exportações no geral só deverão voltar os níveis pré-covid lá para finais de 2021 ou início de 2022. Isto porque as viagens e turismo, o sector mais afetado pela pandemia, representam 19% dos 44% que as exportações pesam no PIB nacional. E, para estes dois sectores, o que é mesmo preciso é que haja um regresso ao normal.

“Distinguir o circunstancial do estrutural”

O Portugal Exportador, que decorreu na quarta-feira 18 de novembro, é considerado um dos eventos mais relevantes do sector, e este ano, por força da pandemia, foi totalmente em formato digital, através do YouTube. A ideia até era ser num formato misto, mas o novo estado de emergência alterou isso. Uma decisão que foi tomada no sábado e “que mostra bem a nossa capacidade de adaptação”, diz o CEO do Novo Banco, António Ramalho, fazendo um paralelismo com a capacidade de adaptação das empresas portuguesas à pandemia. Também ele está otimista em relação à recuperação do sector, porque, “em 15 anos, o peso das exportações cresceu de 27,5% em 2005 para quase 44% em 2019”, e isso foi possível porque “houve uma mudança substancial nas PME portuguesas”. É por isso que o ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, realçou por várias vezes na sessão de abertura que é “preciso distinguir o que é estrutural do que é circunstancial”, e os impactos da covid, ainda que alguns abalem a estrutura da economia, são mais circunstanciais. E dá como exemplo o turismo, que acredita que, apesar de “ser uma vítima do momento”, vai “continuar a ser um dos sectores mais internacionalizados”.

Bens recuperam, mas turismo não

Estatísticas

Depois de quebras de 41% em abril e 39% em maio, as exportações de bens recuperaram bem em setembro, para valores próximos dos de janeiro. Já nas exportações de serviços, cuja maior fatia é o turismo, as quebras continuaram. Só no número de dormidas de não residentes a quebra foi de 72%.

24%

foi a percentagem de estabelecimentos de alojamento turístico em Portugal que estiveram encerrados ou não registaram qualquer movimento de hóspedes durante todo o mês de setembro, segundo dados do INE; em agosto foram 22,8%

Os produtos alimentares e bebidas foram os únicos bens cujas exportações cresceram em 2020 face a 2019 e foi Espanha que mais os comprou

88,1%

foi quanto desceu o valor das exportações de combustíveis em maio face ao mesmo mês de 2019. De €407 milhões caiu €49 milhões. Foi um dos produtos mais afetados pela pandemia, a par dos materiais e acessórios para transportes

Textos originalmente publicados no Expresso de 20 de novembro de 2020

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