Grande Loja do Queijo Limiano

02-09-2020
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O discurso da Justiça é este que segue. Pergunta-se assim, aqui e singelamente, quem, de entre os "não técnicos", pode abranger todo o naipe de significados contidos neste texto.

Quem, de entre os jornalistas e comentadores de jornal, saberá destrinçar toda a gama de problemas que aqui se levantam e são debatidos na teoria e na prática de quem elabora e executa legislação.

Este problema aqui elencado, tem a ver com questões de recursos no processo penal, com incidência prática iminente em casos como o que foi julgado recentemente, alusivo a uma ex-funcionária da PGR e que foi anulado superiormente por causa de deficiente gravação dos depoimentos.

Como é que se podem expôr e explanar de modo corrente e simples para pessoas comuns e estranhas ao mundo da Justiça , o que também o pode e deve ser, sem o recurso ao jargão técnico, às teorias avulsas e às posições doutrinárias?

É a questão que fica, para reflexão. E este parece ser um tema simples: saber se se grava ou não em "cassetes" ( é o que há...) e se transcrevem essas gravações, do que se diz em julgamento em tribunal colectivo( três juízes) em primeira instância, para possibilitar a apreciação dos factos ( e não apenas o direito aplicado ou aplicável) pelo tribunal superior...

Como é que um tablóide pode reproduzir este discurso? Com um desenho? Uma foto? E qual?

O discurso foi produzido no blog Sine Die, por A J Latas.

"Minudências.Colegialidade e duplo grau de jurisidição em matéria de facto no processo penal

Uma discussão em aberto ?

1. - A revisão do CPP de 1998 veio admitir o recurso da decisão do tribunal colectivo em matéria de facto para o Tribunal da Relação, como forma de assegurar, com maior amplitude, o duplo grau de jurisdição em matéria de facto, implicando a obrigatoriedade de documentação das declarações orais prestadas perante o tribunal colectivo (tal como se previa já para o tribunal singular), as quais deverão ser transcritas dos suportes áudio para papel, na medida em que tal seja necessário para a decisão do recurso.Não obstante o grande alcance e relevância prática desta alteração, a discussão foi escassa e terão mesmo permanecido dúvidas sobre a efectividade da alteração legislativa, que explicarão a oposição de julgados sobre a mera recorribilidade da decisão do tribunal colectivo em matéria de facto, que deu origem ao Acórdão para Fixação de Jurisprudência (A.F.J.) nº 10/2005 de 20 de Outubro, e sobre a responsabilidade pela transcrição das declarações orais, decidida pelo AFJ nº 2/2003 de 16.01 no sentido de que a mesma incumbe ao tribunal.Quanto aos fundamentos e vantagens do duplo grau de jurisdição em matéria de facto quando o tribunal que decide em 1ª instância é o tribunal colectivo, o mínimo que se poderá dizer é que não se encontra demonstrada a sua necessidade e adequação aos problemas a que pretenderá dar resposta, tal como não se mostram ultrapassados os inconvenientes que boa parte da doutrina (e não só) aponta ao alargamento da sindicância da matéria de facto: “O segundo julgamento goza de piores condições que o primeiro” (F. Dias), “ A repetição integral da prova perante o tribunal de recurso seria inconcretizável” para além de haver razões “… para olhar com cepticismo os segundos julgamentos, necessariamente montados sobre cenários já utilizados e com prévio ensaio geral ( Cunha Rodrigues) para além de “ ser na verdade uma prova temporalmente mais distanciada dos factos e apreciada já em segunda mão” (Ac TC 322/93. A leitura ou a audição pelo tribunal de recurso de toda a prova produzida e gravada perante o tribunal colectivo – para além de se tornar pouco menos que insuportável – acabaria por fazer com que a prova se perdesse como prova, justamente porque lhe faltava a força da imediação (A.F.J. nº 10/2005).

Recentemente – em acção de formação permanente de magistrados que decorreu no CEJ – também Maria João Antunes e Anabela Rodrigues manifestaram as suas reservas à solução actual, lembrando, entre outros aspectos, os problemas de constitucionalidade que a solução actual pode suscitar, mercê da desigualdade de regimes entre o recurso de decisão do tribunal colectivo e de decisão do tribunal do júri, de que continua a poder recorrer-se apenas em matéria de direito para o STJ (per saltum), o qual apenas poderá sindicar a decisão de facto nos termos – tradicionais entre nós – do modelo de Revista alargada que, aliás, o Tribunal Constitucional sempre considerou suficiente para se ter por respeitado o princípio do duplo grau de jurisdição, o qual veio mesmo a ser expressamente inscrito na CRP com a revisão de 1997.

2. - Se são bem conhecidas estas e outras objecções à reapreciação da matéria de facto em 2º grau de jurisdição, o mesmo não pode dizer-se da sua refutação ou, em todo o caso, das razões que – não obstante elas – terão imposto o seu alargamento às decisões do tribunal colectivo.A este respeito, diz-nos Germano Marques da Silva que “ Da ponderação a que a Comisso de Revisão procedeu resultou-lhe a convicção de que era aspiração generalizada dos meios jurídicos a possibilidade do registo da prova produzida na audiência de julgamento e que esse desejo está intimamente relacionado com a quebra de confiança na qualidade da justiça administrada em primeira instância”, não permitindo ainda a actual organização judiciária que os tribunais colectivos adquirissem o prestígio que é pressuposto do regime de recursos [então]vigente, não sendo previsível que o adquira a médio prazo. Rematava o Prof. Germano, depois de reafirmar a sua fé nos jovens, que, ainda assim, “… não é ainda fácil fazer crer a velho que a juíza de soquetes ou o juiz de calções têm a experiência e a prudência quanto baste para julgarem os seus actos e decidirem sobre a sua liberdade, sobretudo nos casos mais graves”.Damião da Cunha, ao analisar criteriosamente as principais questões colocadas pelo novo sistema de recursos (RPCC 1998/2), afirmava que “ … a consagração de um efectivo recurso em matéria de facto parece corresponder a uma reivindicação mais ou menos persistente na prática e, em certo sentido, revelador de «algum mal-estar» quanto à administração da justiça penal”, que teria subjacente a ideia de que a “qualidade das decisões de 1ª instância parece merecer censura ”.Terá, sido, pois a partir deste tipo de razões – que já vi apelidadas de sociológicas ou histórico-sociológicas – geradoras de preocupações cuja seriedade não está em causa, mas que não podem deixar de reputar-se algo difusas, quer na sua delimitação quer, sobretudo, na sua origem e consistência, que o legislador de 1998 avançou afoitamente no caminho do alargamento da sindicância da decisão de 1ª instância em matéria, solução que – independentemente da aparente motivação pragmática – não deixará de ter o seu referente ideológico em autores como Cavaleiro de Ferreira (entre nós), mais próximos de uma concepção burocrática de justiça e de um princípio de autoridade hierárquica, que de soluções de colegialidade, com o que têm de manifestação do princípio democrático ( maxime quanto ao tribunal do júri).

3. - Em todo o caso, sempre se impunha ( ou impõe ?) a ponderação dos prós e contras da solução hoje vigente e das que no caminho já aberto poderão seguir-se-lhe. Ponderação que - para além da pela refutação das objecções opostas ao duplo grau de jurisdição em matéria de facto - não poderá deixar de passar pela demonstração da adequação da alteração legislativa à resolução dos problemas que a terão motivado, ficando as dúvidas a tal respeito bem ilustradas com o comentário de Damião da Cunha, que (no aludido texto de 1998) logo questionou se o remédio para a doença não deveria ser encontrado no processo de 1ª instância em vez do recurso, pois acreditar que é num juízo posterior, baseado numa análise parcial e documental ou mediata de prova produzida noutro local, que se pode precatar as deficiências do juízo de 1ª instância, é aspecto que suscita fundadas dúvidas; a uma decisão injusta apenas se segue outra que não garante melhor justiça, o que está em perfeita consonância com a ideia (igualmente não refutada) de que a qualidade da administração da justiça penal se «mede» nas decisões de primeira instância.

4. - Mas será que as omissões verificadas na discussão e fundamentação da alteração legislativa, não estão ultrapassadas por mais de seis anos de reforma ? - A prática demonstrou, afinal, a excelência e superioridade da solução de 1998, ou confirmaram-se antes os prognósticos dos que previam que não iríamos ter melhores decisões, mas antes decisões bem mais demoradas ? E que dizer da confiança dos cidadãos na justiça ? – Todos os que efectivamente se preocupam com tais minudências, podem dizer – sem corar – que as coisas estão melhores com o novo sistema e que tudo vai melhorar de vez com as alterações que se anunciam, umas, e que se adivinham, outras? - A extensão do regime de recurso da decisão do tribunal colectivo ao tribunal do júri (não obstante o fundamento politico da sua consagração constitucional), o fim das transcrições e a audição de toda a prova pelos tribunais da Relação (coisa breve) e - quem sabe se já, ou apenas na próxima reforma - a extensão do carácter facultativo do júri ao tribunal colectivo (apesar de tudo, mais coerente com um efectivo 2º grau de jurisdição em matéria de facto), arrastando a sua morte lenta em processo penal, à imagem do que sucedeu no processo civil, onde é hoje residual a sua intervenção.Fuga para a frente, como parece indiciar-se, ou tempo – ainda - de discutir as questões estruturais ?

Publicado por A J Latas (14:05

Publicado por josé

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O discurso da Justiça é este que segue. Pergunta-se assim, aqui e singelamente, quem, de entre os "não técnicos", pode abranger todo o naipe de significados contidos neste texto.

Quem, de entre os jornalistas e comentadores de jornal, saberá destrinçar toda a gama de problemas que aqui se levantam e são debatidos na teoria e na prática de quem elabora e executa legislação.

Este problema aqui elencado, tem a ver com questões de recursos no processo penal, com incidência prática iminente em casos como o que foi julgado recentemente, alusivo a uma ex-funcionária da PGR e que foi anulado superiormente por causa de deficiente gravação dos depoimentos.

Como é que se podem expôr e explanar de modo corrente e simples para pessoas comuns e estranhas ao mundo da Justiça , o que também o pode e deve ser, sem o recurso ao jargão técnico, às teorias avulsas e às posições doutrinárias?

É a questão que fica, para reflexão. E este parece ser um tema simples: saber se se grava ou não em "cassetes" ( é o que há...) e se transcrevem essas gravações, do que se diz em julgamento em tribunal colectivo( três juízes) em primeira instância, para possibilitar a apreciação dos factos ( e não apenas o direito aplicado ou aplicável) pelo tribunal superior...

Como é que um tablóide pode reproduzir este discurso? Com um desenho? Uma foto? E qual?

O discurso foi produzido no blog Sine Die, por A J Latas.

"Minudências.Colegialidade e duplo grau de jurisidição em matéria de facto no processo penal

Uma discussão em aberto ?

1. - A revisão do CPP de 1998 veio admitir o recurso da decisão do tribunal colectivo em matéria de facto para o Tribunal da Relação, como forma de assegurar, com maior amplitude, o duplo grau de jurisdição em matéria de facto, implicando a obrigatoriedade de documentação das declarações orais prestadas perante o tribunal colectivo (tal como se previa já para o tribunal singular), as quais deverão ser transcritas dos suportes áudio para papel, na medida em que tal seja necessário para a decisão do recurso.Não obstante o grande alcance e relevância prática desta alteração, a discussão foi escassa e terão mesmo permanecido dúvidas sobre a efectividade da alteração legislativa, que explicarão a oposição de julgados sobre a mera recorribilidade da decisão do tribunal colectivo em matéria de facto, que deu origem ao Acórdão para Fixação de Jurisprudência (A.F.J.) nº 10/2005 de 20 de Outubro, e sobre a responsabilidade pela transcrição das declarações orais, decidida pelo AFJ nº 2/2003 de 16.01 no sentido de que a mesma incumbe ao tribunal.Quanto aos fundamentos e vantagens do duplo grau de jurisdição em matéria de facto quando o tribunal que decide em 1ª instância é o tribunal colectivo, o mínimo que se poderá dizer é que não se encontra demonstrada a sua necessidade e adequação aos problemas a que pretenderá dar resposta, tal como não se mostram ultrapassados os inconvenientes que boa parte da doutrina (e não só) aponta ao alargamento da sindicância da matéria de facto: “O segundo julgamento goza de piores condições que o primeiro” (F. Dias), “ A repetição integral da prova perante o tribunal de recurso seria inconcretizável” para além de haver razões “… para olhar com cepticismo os segundos julgamentos, necessariamente montados sobre cenários já utilizados e com prévio ensaio geral ( Cunha Rodrigues) para além de “ ser na verdade uma prova temporalmente mais distanciada dos factos e apreciada já em segunda mão” (Ac TC 322/93. A leitura ou a audição pelo tribunal de recurso de toda a prova produzida e gravada perante o tribunal colectivo – para além de se tornar pouco menos que insuportável – acabaria por fazer com que a prova se perdesse como prova, justamente porque lhe faltava a força da imediação (A.F.J. nº 10/2005).

Recentemente – em acção de formação permanente de magistrados que decorreu no CEJ – também Maria João Antunes e Anabela Rodrigues manifestaram as suas reservas à solução actual, lembrando, entre outros aspectos, os problemas de constitucionalidade que a solução actual pode suscitar, mercê da desigualdade de regimes entre o recurso de decisão do tribunal colectivo e de decisão do tribunal do júri, de que continua a poder recorrer-se apenas em matéria de direito para o STJ (per saltum), o qual apenas poderá sindicar a decisão de facto nos termos – tradicionais entre nós – do modelo de Revista alargada que, aliás, o Tribunal Constitucional sempre considerou suficiente para se ter por respeitado o princípio do duplo grau de jurisdição, o qual veio mesmo a ser expressamente inscrito na CRP com a revisão de 1997.

2. - Se são bem conhecidas estas e outras objecções à reapreciação da matéria de facto em 2º grau de jurisdição, o mesmo não pode dizer-se da sua refutação ou, em todo o caso, das razões que – não obstante elas – terão imposto o seu alargamento às decisões do tribunal colectivo.A este respeito, diz-nos Germano Marques da Silva que “ Da ponderação a que a Comisso de Revisão procedeu resultou-lhe a convicção de que era aspiração generalizada dos meios jurídicos a possibilidade do registo da prova produzida na audiência de julgamento e que esse desejo está intimamente relacionado com a quebra de confiança na qualidade da justiça administrada em primeira instância”, não permitindo ainda a actual organização judiciária que os tribunais colectivos adquirissem o prestígio que é pressuposto do regime de recursos [então]vigente, não sendo previsível que o adquira a médio prazo. Rematava o Prof. Germano, depois de reafirmar a sua fé nos jovens, que, ainda assim, “… não é ainda fácil fazer crer a velho que a juíza de soquetes ou o juiz de calções têm a experiência e a prudência quanto baste para julgarem os seus actos e decidirem sobre a sua liberdade, sobretudo nos casos mais graves”.Damião da Cunha, ao analisar criteriosamente as principais questões colocadas pelo novo sistema de recursos (RPCC 1998/2), afirmava que “ … a consagração de um efectivo recurso em matéria de facto parece corresponder a uma reivindicação mais ou menos persistente na prática e, em certo sentido, revelador de «algum mal-estar» quanto à administração da justiça penal”, que teria subjacente a ideia de que a “qualidade das decisões de 1ª instância parece merecer censura ”.Terá, sido, pois a partir deste tipo de razões – que já vi apelidadas de sociológicas ou histórico-sociológicas – geradoras de preocupações cuja seriedade não está em causa, mas que não podem deixar de reputar-se algo difusas, quer na sua delimitação quer, sobretudo, na sua origem e consistência, que o legislador de 1998 avançou afoitamente no caminho do alargamento da sindicância da decisão de 1ª instância em matéria, solução que – independentemente da aparente motivação pragmática – não deixará de ter o seu referente ideológico em autores como Cavaleiro de Ferreira (entre nós), mais próximos de uma concepção burocrática de justiça e de um princípio de autoridade hierárquica, que de soluções de colegialidade, com o que têm de manifestação do princípio democrático ( maxime quanto ao tribunal do júri).

3. - Em todo o caso, sempre se impunha ( ou impõe ?) a ponderação dos prós e contras da solução hoje vigente e das que no caminho já aberto poderão seguir-se-lhe. Ponderação que - para além da pela refutação das objecções opostas ao duplo grau de jurisdição em matéria de facto - não poderá deixar de passar pela demonstração da adequação da alteração legislativa à resolução dos problemas que a terão motivado, ficando as dúvidas a tal respeito bem ilustradas com o comentário de Damião da Cunha, que (no aludido texto de 1998) logo questionou se o remédio para a doença não deveria ser encontrado no processo de 1ª instância em vez do recurso, pois acreditar que é num juízo posterior, baseado numa análise parcial e documental ou mediata de prova produzida noutro local, que se pode precatar as deficiências do juízo de 1ª instância, é aspecto que suscita fundadas dúvidas; a uma decisão injusta apenas se segue outra que não garante melhor justiça, o que está em perfeita consonância com a ideia (igualmente não refutada) de que a qualidade da administração da justiça penal se «mede» nas decisões de primeira instância.

4. - Mas será que as omissões verificadas na discussão e fundamentação da alteração legislativa, não estão ultrapassadas por mais de seis anos de reforma ? - A prática demonstrou, afinal, a excelência e superioridade da solução de 1998, ou confirmaram-se antes os prognósticos dos que previam que não iríamos ter melhores decisões, mas antes decisões bem mais demoradas ? E que dizer da confiança dos cidadãos na justiça ? – Todos os que efectivamente se preocupam com tais minudências, podem dizer – sem corar – que as coisas estão melhores com o novo sistema e que tudo vai melhorar de vez com as alterações que se anunciam, umas, e que se adivinham, outras? - A extensão do regime de recurso da decisão do tribunal colectivo ao tribunal do júri (não obstante o fundamento politico da sua consagração constitucional), o fim das transcrições e a audição de toda a prova pelos tribunais da Relação (coisa breve) e - quem sabe se já, ou apenas na próxima reforma - a extensão do carácter facultativo do júri ao tribunal colectivo (apesar de tudo, mais coerente com um efectivo 2º grau de jurisdição em matéria de facto), arrastando a sua morte lenta em processo penal, à imagem do que sucedeu no processo civil, onde é hoje residual a sua intervenção.Fuga para a frente, como parece indiciar-se, ou tempo – ainda - de discutir as questões estruturais ?

Publicado por A J Latas (14:05

Publicado por josé

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