(Ao Rodrigo Moita de Deus e aos demais socialistas da blogosfera)A mentalidade socialista, colectivista e estatista incorre sempre num pressuposto equívoco: o da existência de agregados humanos e de entidades colectivas dotadas de vontade própria, autónoma, responsável e independente dos indivíduos que as compõem. È vulgar a ideia, fundada na vulgata sociológica, de que «o todo transcende a simples soma das partes», assim como aquela outra de que esses conjuntos se movimentam por finalidades colectivas e nunca por meros interesses particulares.Daqui à convicção da bondade natural desses fins e da utilidade dos agregados que os representam, é um pequeno passo. Pois se o geral prevalece sobre o particular, o colectivo sobre o individual, o todo sobre as partes, é porque existirá uma racionalidade nesses agregados que só eles podem intuir e operacionalizar para bem de todos.A ideia do «interesse público» assenta nestes pressupostos. A autonomia deste valor sobre os interesses dos indivíduos, também. Em Portugal, país que há muito absorveu a mentalidade do colectivismo, este dado é adquirido ao ponto de se aceitar que o próprio «interesse colectivo» possa colidir com os interesses individuais e até mesmo os violente. Na nossa forma de ver as coisas o que é público é bom e o que é privado é mau. O que é público é de todos e o que é privado é só de alguns. O que é público representa o altruísmo dos grandes ideais abnegados e desinteressados, enquanto que o interesse privado é sinónimo de egoísmo movido pelo baixo escrúpulo e pela cega ambição de lucros desonestos.Esta visão mítica das entidades públicas sustentou-se, durante muito tempo, na divinização dos governantes, ou, pelo menos, daqueles que exerciam as funções de maior soberania. Quem tinha a seu cargo essa ciclópica tarefa de tratar da comunidade, não podia ser simplesmente humano, ou tão humano como os demais. Nas sociedades laicas dos nossos dias, os sinais de distinção da elite governante continuam bem visíveis e permanecem fundados na suposição de que quem nos governa está acima dos simples mortais que são governados. A velha máxima do «se soubésseis o que custa governar, queríeis ser governados toda a vida», representa o axioma do fardo que representa para o homem público a desinteressada tarefa de cuidar de todos nós e da nossa felicidade terrena. Porque, no céu, semelhante encargo cabe, como é sabido, a Deus Nosso Senhor.Em consequência disto mesmo, é característica das sociedades estatizadas a desresponsabilização do indivíduo. No seu paroxismo máximo, este esvaziamento da natureza humana levou à implosão dos sistemas comunistas. Em menor grau, conduz ao desinteresse e ao alheamento dos cidadãos em relação ao que poderiam ser os seus próprios interesses, porque a liberdade de ser ele a determiná-los e a escolhê-los se encontra extraordinariamente condicionada por entidades o substituem nessas funções. Quando o Estado (o governo e os entes públicos) impõe encargos aos cidadãos e lhes reduz a propriedade, está a limitar-lhes a sua liberdade e a possibilidade de serem eles a escolherem o que pretendem para si próprios e para o que deveria ser seu. Está a assumir que sabe melhor do que eles o que lhes é mais conveniente e, por consequência, a desresponsabilizá-los dos resultados efectivamente atingidos por essas decisões. Quando as coisas correm mal (como quase sempre sucede) o expediente comum é mudar de governo, ou seja, substituir o pessoal político velho por pessoal político novo. Os resultados deste tipo de operações (a que os mais ilustrados chamam paretianamente «circulação das elites») é conhecido e as últimas décadas de Portugal evidenciam-nos bem.Espantosamente, os estatistas raramente perguntam porque tudo corre invariavelmente mal e porque estranho motivo cada solução que se suceda costuma agravar a herança recebida. Alguns recorrem a explicações igualmente fundadas em entidades agregadas: à esquerda, o «sistema», os «ricos», os «patrões»; à direita, o «sistema», os «sindicatos», os «media». Alguns, mais sofisticados levando a mitificação da responsabilidade colectiva ao seu máximo expoente, alegam que a culpa de não resolvermos os nossos problemas vem de fora, do estrangeiro, da União Europeia, do Euro, do petróleo, dos «americanos» e dos «chineses». Ou seja, dos outros. Nossa (deles) é que nunca é.Na década de 40 do século passado, Ludwig von Mises tentou criar uma nova ciência que teria por finalidade a teorização geral da acção humana. Independentemente da fragilidade evidente de procurar encontrar uma explicação geral para fenómenos complexos (que, de resto, Mises acabou verdadeiramente por nunca enunciar) a sua Praxeologia (na qual a Economia teria lugar como um dos ramos específicos da acção humana) teve o imenso mérito de dissecar os comportamentos sociais e demonstrar que eles são sempre individuais e nunca colectivos.Efectivamente, como escreveu no seu principal tratado sobre Praxeologia (Human Action), «toda a acção humana é conduta deliberada»*, sendo que «o homem, ao actuar, aspira a substituir um estado menos satisfatório por outro mais satisfatório». Por outro lado, a acção humana baseia-se sempre em escolhas e preferências concretas, feitas racionalmente (não «sensata» ou «eticamente») pelos indivíduos. Não existem, por natureza, comportamentos ou acções colectivas. A exteriorização de uma «decisão colectiva» é sempre fruto de vontades individuais, na medida em que «os entes colectivos operam, iniludivelmente, por mediação de um ou de vários indivíduos, cujas actuações são, de imediato, atribuídas à própria colectividade». Ou seja: «a vida colectiva plasma-se nas actuações de quem a integra».Isto não significa, note-se, que a Praxeologia de Mises renegue a existência de evidências como o Estado, os partidos e as ideologias, as religiões, ou outras entidades agregadoras de indivíduos. O que quer dizer é que essas entidades não têm vida própria, decisão própria, nem interesses próprios. Os indivíduos que as compõem em cada momento, esses sim, têm vida própria, vontade própria, interesses próprios e tomam decisões que afectam universos indeterminados de indivíduos sem terem em consideração os seus verdadeiros interesses. Não necessariamente por má fé (o que também se verifica), mas pela natural incapacidade de os conseguir determinar e de encontrar os meios adequados para os satisfazer.É deste subjectivismo metodológico na análise dos comportamentos sociais, que também parte o liberalismo. Por compreender que a acção humana individual sustenta as relações humanas e a vida social, é que defende que qualquer intermediário que lhes possa ser aposto prejudica mais do que beneficia. Por isso, o liberalismo não reconhece ao Estado ou a qualquer outro conjunto sociológico, mais dignidade ou valor do que o de cada um dos indivíduos que os constituem. E, se assim é, mais vale que estes sejam livres para escolher, do que se vejam sistematicamente a seguir as escolhas que outros fizeram por si.Enquanto persistirmos em nortear a nossa vida social pelo colectivismo e pelo intervencionismo estadual, continuaremos a ser um pobre país triste e subdesenvolvido.* Nossa tradução.
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(Ao Rodrigo Moita de Deus e aos demais socialistas da blogosfera)A mentalidade socialista, colectivista e estatista incorre sempre num pressuposto equívoco: o da existência de agregados humanos e de entidades colectivas dotadas de vontade própria, autónoma, responsável e independente dos indivíduos que as compõem. È vulgar a ideia, fundada na vulgata sociológica, de que «o todo transcende a simples soma das partes», assim como aquela outra de que esses conjuntos se movimentam por finalidades colectivas e nunca por meros interesses particulares.Daqui à convicção da bondade natural desses fins e da utilidade dos agregados que os representam, é um pequeno passo. Pois se o geral prevalece sobre o particular, o colectivo sobre o individual, o todo sobre as partes, é porque existirá uma racionalidade nesses agregados que só eles podem intuir e operacionalizar para bem de todos.A ideia do «interesse público» assenta nestes pressupostos. A autonomia deste valor sobre os interesses dos indivíduos, também. Em Portugal, país que há muito absorveu a mentalidade do colectivismo, este dado é adquirido ao ponto de se aceitar que o próprio «interesse colectivo» possa colidir com os interesses individuais e até mesmo os violente. Na nossa forma de ver as coisas o que é público é bom e o que é privado é mau. O que é público é de todos e o que é privado é só de alguns. O que é público representa o altruísmo dos grandes ideais abnegados e desinteressados, enquanto que o interesse privado é sinónimo de egoísmo movido pelo baixo escrúpulo e pela cega ambição de lucros desonestos.Esta visão mítica das entidades públicas sustentou-se, durante muito tempo, na divinização dos governantes, ou, pelo menos, daqueles que exerciam as funções de maior soberania. Quem tinha a seu cargo essa ciclópica tarefa de tratar da comunidade, não podia ser simplesmente humano, ou tão humano como os demais. Nas sociedades laicas dos nossos dias, os sinais de distinção da elite governante continuam bem visíveis e permanecem fundados na suposição de que quem nos governa está acima dos simples mortais que são governados. A velha máxima do «se soubésseis o que custa governar, queríeis ser governados toda a vida», representa o axioma do fardo que representa para o homem público a desinteressada tarefa de cuidar de todos nós e da nossa felicidade terrena. Porque, no céu, semelhante encargo cabe, como é sabido, a Deus Nosso Senhor.Em consequência disto mesmo, é característica das sociedades estatizadas a desresponsabilização do indivíduo. No seu paroxismo máximo, este esvaziamento da natureza humana levou à implosão dos sistemas comunistas. Em menor grau, conduz ao desinteresse e ao alheamento dos cidadãos em relação ao que poderiam ser os seus próprios interesses, porque a liberdade de ser ele a determiná-los e a escolhê-los se encontra extraordinariamente condicionada por entidades o substituem nessas funções. Quando o Estado (o governo e os entes públicos) impõe encargos aos cidadãos e lhes reduz a propriedade, está a limitar-lhes a sua liberdade e a possibilidade de serem eles a escolherem o que pretendem para si próprios e para o que deveria ser seu. Está a assumir que sabe melhor do que eles o que lhes é mais conveniente e, por consequência, a desresponsabilizá-los dos resultados efectivamente atingidos por essas decisões. Quando as coisas correm mal (como quase sempre sucede) o expediente comum é mudar de governo, ou seja, substituir o pessoal político velho por pessoal político novo. Os resultados deste tipo de operações (a que os mais ilustrados chamam paretianamente «circulação das elites») é conhecido e as últimas décadas de Portugal evidenciam-nos bem.Espantosamente, os estatistas raramente perguntam porque tudo corre invariavelmente mal e porque estranho motivo cada solução que se suceda costuma agravar a herança recebida. Alguns recorrem a explicações igualmente fundadas em entidades agregadas: à esquerda, o «sistema», os «ricos», os «patrões»; à direita, o «sistema», os «sindicatos», os «media». Alguns, mais sofisticados levando a mitificação da responsabilidade colectiva ao seu máximo expoente, alegam que a culpa de não resolvermos os nossos problemas vem de fora, do estrangeiro, da União Europeia, do Euro, do petróleo, dos «americanos» e dos «chineses». Ou seja, dos outros. Nossa (deles) é que nunca é.Na década de 40 do século passado, Ludwig von Mises tentou criar uma nova ciência que teria por finalidade a teorização geral da acção humana. Independentemente da fragilidade evidente de procurar encontrar uma explicação geral para fenómenos complexos (que, de resto, Mises acabou verdadeiramente por nunca enunciar) a sua Praxeologia (na qual a Economia teria lugar como um dos ramos específicos da acção humana) teve o imenso mérito de dissecar os comportamentos sociais e demonstrar que eles são sempre individuais e nunca colectivos.Efectivamente, como escreveu no seu principal tratado sobre Praxeologia (Human Action), «toda a acção humana é conduta deliberada»*, sendo que «o homem, ao actuar, aspira a substituir um estado menos satisfatório por outro mais satisfatório». Por outro lado, a acção humana baseia-se sempre em escolhas e preferências concretas, feitas racionalmente (não «sensata» ou «eticamente») pelos indivíduos. Não existem, por natureza, comportamentos ou acções colectivas. A exteriorização de uma «decisão colectiva» é sempre fruto de vontades individuais, na medida em que «os entes colectivos operam, iniludivelmente, por mediação de um ou de vários indivíduos, cujas actuações são, de imediato, atribuídas à própria colectividade». Ou seja: «a vida colectiva plasma-se nas actuações de quem a integra».Isto não significa, note-se, que a Praxeologia de Mises renegue a existência de evidências como o Estado, os partidos e as ideologias, as religiões, ou outras entidades agregadoras de indivíduos. O que quer dizer é que essas entidades não têm vida própria, decisão própria, nem interesses próprios. Os indivíduos que as compõem em cada momento, esses sim, têm vida própria, vontade própria, interesses próprios e tomam decisões que afectam universos indeterminados de indivíduos sem terem em consideração os seus verdadeiros interesses. Não necessariamente por má fé (o que também se verifica), mas pela natural incapacidade de os conseguir determinar e de encontrar os meios adequados para os satisfazer.É deste subjectivismo metodológico na análise dos comportamentos sociais, que também parte o liberalismo. Por compreender que a acção humana individual sustenta as relações humanas e a vida social, é que defende que qualquer intermediário que lhes possa ser aposto prejudica mais do que beneficia. Por isso, o liberalismo não reconhece ao Estado ou a qualquer outro conjunto sociológico, mais dignidade ou valor do que o de cada um dos indivíduos que os constituem. E, se assim é, mais vale que estes sejam livres para escolher, do que se vejam sistematicamente a seguir as escolhas que outros fizeram por si.Enquanto persistirmos em nortear a nossa vida social pelo colectivismo e pelo intervencionismo estadual, continuaremos a ser um pobre país triste e subdesenvolvido.* Nossa tradução.